O próprio edifício ressumava solidão pelas pedras húmidas das suas paredes. Um mundo construído com a argamassa do desespero e do isolamento. Era um lugar onde se entregavam os restos humanos que já pouco uso tinham, para aí os esquecerem para sempre. Cada canto guardava, parada no tempo, a quietude triste de um nicho momentâneo onde um velho se acoitava, tentando inutilmente escapar à inclemência constante dos negligentes auxiliares, e tantos cantos haviam naquele lar. Demasiados.
Glória tinha bem consciência disso, sabia que o padrinho tinha sido ali desterrado com o intuito de que a sua mente se esboroasse depressa das memórias do passado, mas também para ser ele próprio esquecido, por se ter tornado inconveniente. Desde o primeiro momento que ali deu entrada, nunca havia recebido nenhuma outra visita senão a dela. Por vezes passavam-se anos, sem que algum rosto familiar lhe reavivasse as lembranças como fogo da sua presença.
E naquele dia, Aníbal Costa, o padrinho Costa, como ela carinhosamente sempre o referia, deixaria de ser um indigente ao encargo do estado, lembrado por alguns minutos, e o exercício da memória ser-lhe-ia parcialmente reavivado.
Quando finalmente deu com ele, Glória descobriu-o quase catatónico, de roupão de flanela a esvoaçar solto diante a ligeira brisa da janela perante a qual se prostrara feito estátua de sal.
- Padrinho? – Chamou-o ela da soleira da porta. – Padrinho, sou eu, a Glorinha.
Silêncio. O quarto era um túmulo que ainda respirava vida, atafulhado com seis catres de metal onde mal dava para um homem poder passar de viés.
- Padrinho! – Tentou novamente, agora já soerguendo a mão sobre as suas costas. – Preciso tanto de si, da sua sabedoria, dos seus conselhos. Padrinho, por favor, olhe para mim! Sou eu, a sua afilhada.
Aníbal Costa sentiu o peso suave das suas mãos tocando-lhe, e despertou do seu transe por instantes.
- Não queria, eu não queria... – exclamou num sopro aterrador. – Eu tinha a certeza de que eram turras. Disseram-nos que haviam aliguerrilheiros... Eu não queria. – Prosseguiu num pranto lavado em lágrimas.
Glória agarrou-se a ele e abraçou-o com força, juntando-lhe as suas próprias lágrimas de desespero. Tomou conta naquele instante, que o seu herói já não existia, e em seu lugar ficara apenas aquele invólucro oco onde de tempos a tempos corriam imagens terríveis do seu passado durante a guerra.
O padrinho Costa rodou sobre si mesmo, libertando-se do seu abraço, e ergueu-se de face voltada à janela, voltando ao pasmo inicial com o qual ela se deparara.
- Eu sei que o padrinho já nem se lembra de quem eu sou, eu sei que nada que eu lhe diga terá algum impacto em si, mas... eu tenho de desabafar isto com alguém, e receio não existir mais ninguém com quem possa fazê-lo.
Fez uma pausa ligeira, sentou-se na borda da sua cama, e abriu o peito do tormento que lhe pesava.
- Não sei mais o que hei-de fazer. Entreguei-me de corpo e alma ao homem que amo, certa de podermos construir os dois uma vida feliz. Passei por cima de tudo e todos... A Susana, Meu Deus! O Padrinho lembra-se da Susana? Roubei-lhe o amor da sua vida, arruinei para sempre a nossa amizade, joguei tudo e perdi. O Paulo não me ama, mas sim a ela, e eu... Padrinho, eu não consigo viver sem ele! – Exclamou por fim. – O que faço agora Meu Deus, o que faço agora?
- Desfaz-te dela! – Afirmou Aníbal Costa com uma lucidez que a surpreendeu.
- O que foi que o Padrinho disse?
Mas Aníbal tornara-se uno com o vazio novamente.
- Repita o que acabou de dizer Padrinho. – Insistiu Glória. - Desfaço-me dela?
Susana regressara a Lisboa naquela mesma tarde. A pretexto de ter de comparecer na redação da revista a fim de cumprir o prazo de entrega urgente de uma peça, despediu-se de Isabel e arrancou bruscamente pela estrada.
Trazia uma raiva muda a queimar-lhe o olhar, um fito determinado de desgraça que mal disfarçou no desabafo que havia tido com a amiga. Resoluta, entregara-se à ideia de pôr um fim naquela história escabrosa que lhe moldara o espírito.
No entanto, e conforme planeara, o seu destino não seria a redação da ReporterMagazine, tinha outro intuito oculto.
Estacionou a moto no rebordo de uma curva, na Rua daVerónica nº 746, e quedou-se montada sobre o motociclo, observando pelo breu do visor os movimentos daquele endereço em particular. Conhecia-o bem, e tinha bem noção de que o seu rosto não era estranho aos residentes daquela zona, de modo que preferiu não se expor em aberto, nem tampouco retirar o capacete.
Esperou aí nesse ponto, durante um longo período de tempo, quase infinito assim lhe pareceu, e por fim, logrou vingar a sua perseverança.
Paulo chegava nesse momento, reconheceu o carro e o rosto que seguia lá dentro como se fosse o seu, e recuou um pouco mais para a cobertura da esquina evitando ser detetada.
- Não me viu. De certeza que não me viu. – Pensou.
Paulo sinalizou à esquerda na direção da rampa de acesso ao parqueamento do edifício. No instante seguinte o carro desaparecia já no fecho lento do portão, deixando a Susana duas alternativas: ou revelava a sua presença e ía ao seu encontro, ou deixava-se estar na penumbra do seu esconderijo na expectativa do que estivesse por vir.
Encolhida na fúria do ciúme, escolheu a segunda a contra-gosto. Queria desesperadamente certificar-se de que as suas últimas abordagens haviam sido sinceras. Que Paulo ainda a amava, como lhe enunciara nos últimos tempos, e que este cortara em definitivo o cordão umbilical que o ligava àquela mulher. A sua lógica não lhe permitia outro rumo de ação, precisava de saber. Não estava disposta a apostar de novo no mesmo número de azar sem quaisquer garantias de sucesso. E esperou. Esperou até que a noite caiu, e a sua vontade indómita quase vacilou, mas ainda nenhum sinal de Glória.
- Será mesmo verdade? Eles já não vivem juntos.
O recorte de uma silhueta familiar desenhou-se na janela do quinto andar, o apartamento deles. Susana desembainhou a sua câmera e fotografou-o assim mesmo, um vulto perdido nas sombras que não se desentranhavam da sua alma, por muita força que ela fizesse.
A luz apagou-se e poucos minutos depois, Paulo voltava a sair da garagem, fazendo-a retirar-se à pressa para trás.
Após este ter alcançado o fim da rua, ela ligou a moto e seguiu-o por um bocado a uma distância segura. Não conseguia ficar longe, não podia ficar sem saber.
Desceram meandros de ruas na direção do rio, e depois prosseguiram pela marginal até atingirem a doca do poço do bispo. Ela, sempre dois ou três carros atrás do dele, ocultando-se, esquivando-se, evitando com mestria que ele a reconhecesse num breve relance do olhar.
Conseguiu ver o local para onde ele se dirigiu, contornando o rectângulo incompleto da doca, até à reta que bordejava o rio, um ponto estranho no mapa, entrecortado apenas pela cadência suave das embarcações que ondulavam na doca interior, um ponto muito distante de qualquer um que tivesse em tempos sido de ambos.
- O raio andas tu a fazer por estas bandas? – Inquiriu-se.
Paulo estacionou o carro, e atravessou a passarela de acesso a um dos enormes batelões ancorados ali. Dois homens, um deles muito alto e afilado, e outro mais entroncado, esperavam-no no convés, recebendo-o com um aperto de mão.
- Em quê que tu te meteste Paulo?
Quase uma hora transcorreu desde esse momento, e Susana ainda não estava disposta a desistir. Pelo contrário, a sua natural curiosidade quase a impeliu a uma perigosa aproximação, para que ouvisse o que aqueles três homens conversavam dentro daquele barco.
Paulo escrevia uma crónica social para a revista, uma amálgama de lixo sem interesse à qual, mesmo assim, e por ser tão bom escritor, ele conseguia dar algum conteúdo de interesse.
- Que vieste tu aqui vasculhar esta noite meu querido? – Perguntava-se Susana dilacerada pela curiosidade.
Um som abafado rompeu o calmo silêncio daquele lugar. Podia ser o espadanar de um casco contra a água, mas Susana conhecia bem aquele som, ouvira-o muitas vezes nas suas viagens no estrangeiro, enquanto fotografava cenários de guerra, ou de agitações sociais.
- Um tiro!
Casimiro Teixeira
Isto está a ficar entusiasmante, está...
ResponderEliminarParabéns Casimiro, belissima prestação!
Obrigado Casimiro pela herança que me deixou... um tiro!...Lá consegui sair ilesa desta história, sempre é preferível morrer no Algarve do que no Poço do Bispo porque se a água é mais quente, a terra também deve ser!
ResponderEliminarCasimiro, gostei da sua parte!