19/07/11

A Década De Todas As Suspeições - Parte 7


Naquele momento, no limiar de uma ignorada porta, eram dois corpos no paradoxo de uma proximidade distante. Parecia que daquelas mulheres emanavam sensações padrão dos males do mundo. Uma amizade antiga feita de risos cúmplices, de segredos, de uma partilha de convivências como juras de sangue, a crerem-se mais eternas que a duração de uma vida. E, no entanto, a limitar o breve e instintivo trejeito de um sorriso, uma como que transparente névoa feita de ódio, de antagonismo, de traição. A gelar-lhes os lábios, a embaçar-lhes os olhos, os braços a caírem a tempo de não se apertarem. Por amor de um homem que uma esperava, e a outra roubara e ainda não devolvera. Susana não conseguia saber quanto tempo passara desde que abrira aquela porta. Àquela mulher que, sem pudor, a olhava com um misto de segurança e medo. Que parecia saber porque ali estava e o que pretendia. E que, por isso, falou.

— Venho para te falar do Paulo. – disse, decidida.

Susana sorriu sem poder saber o desdém contido nesse desajeitado sorriso.

— Não me interessa falar de alguém que em breve voltará onde pertence. De onde nunca teria saído em busca de uma felicidade apenas ilusória, que alguém falsamente lhe terá prometido. Por isso, não vou falar dele. Muito menos contigo.

O rosto de Glória manteve-se enigmático, impassível. Talvez denunciando algum cansaço ou impaciência num rosto firme e ansioso por ir directo ao assunto, pediu para entrar e sentar-se. O que fez, sem que Susana anuísse. Recostada, braços estendidos em descanso sobre o corpo do cadeirão, fechou os olhos com a certeza do choque que as suas palavras provocariam

— Não quero que o Paulo volte para ti.

Susana apenas tinha fechado a porta. Não dera um passo, não mexera um músculo. Mas agora sentia que devia voar e rasgar com as unhas aquele rosto tão belo e inteligente quanto descarado. Conteve-se na agressividade do corpo mas não no elevar do som da sua voz.

— É preciso ter descaramento. É preciso ter coragem de…

— Cala-te! – berrou ainda mais alto, Glória. E o grito foi gélido, firme, tenebroso. – Por favor senta-te, cala-te e, sobretudo, ouve-me. Não podes deixar que o Paulo se acerque mais de ti.

Agora as palavras proferidas exigiam silêncio. Mas esse silêncio denunciaria a estupefacção e a derrota de Susana, que se sentia sucumbir perante tamanho atrevimento.

— Acho melhor que justifiques tamanha estupidez. – disse, sentando-se – E que justifiques bem. Porque, caso contrário, te ponho porta fora num instante.

Esperou.

— Recordas-te de Aníbal Costa? – perguntou Glória – o meu padrinho Costa que se arrasta na doença de Alzheimer pelos corredores de um lar? Visitei-o, e… - as palavras pareciam agora ter mais dificuldade em sair. Parecia quererem construir-se no cérebro para que nascessem fortes. Susana via, finalmente, algo que fraquejava em Glória mas, uma vez mais, não esperava aquela pergunta – Que sabes de Salazar?

Salazar? Que tinha Salazar a ver com Paulo? A ex-amiga, a ex-amante do seu homem, seria agora uma ex-mente lúcida? Tentou manter a calma. Tentou que os seus gestos aperreados não denunciassem tudo o que lhe passava pela mente. Decidiu alinhar na loucura.

— Salazar? Um ditador que se achava pai da nação, com ideias retrógradas a não deixar que o país crescesse por si próprio…

— Bla, bla, bla… - impacientou-se Glória – Tudo isso é conhecido. Mas, e os amores de Salazar? Quem amou, quem teve, com que mulher se deitou?

— Ouve, Glória, não percebo onde queres chegar mas…

Mas Glória já se tinha levantado e parecia pisar com raiva a leveza do tapete. Esbracejava e parecia fora de si ao interrompê-la.

— O único amor que se lhe conheceu foi Christine Garnier. E que terá feito com ela? Amor? Ninguém acredita. Um beijo? Nem isso. E agora repara: quantos seguidores aquele homem tem ainda? Milhares? Milhões? Ninguém sabe. O que se sabe é que é idolatrado, há quem pense nele como uma espécie de Messias, o exemplo do homem de carácter, recto, poupado. O único com capacidade para governar este país.

Por muito que se esforçasse, Susana não resistiu ao que a sua paciência lhe pedia. Num impulso saltou, também ela, da cadeira e quase gritou perguntando porque raio lhe contava ela tudo aquilo, quando era Paulo que entre elas estava em causa.

Glória olhou o relógio de pulso e, sem dele desviar os olhos, disse:

— O Paulo? A estas horas o Paulo deve já ter saído do Poço do Bispo.

— Poço do Bispo? – perguntou Susana lembrando-se de quando o tinha seguido. Dos dois homens. Do tiro. De repente pensou que aquela mulher poderia ter, afinal, muito mais para lhe contar.

— Como te disse – continuou Glória – há muita gente a desejar o regresso de um Salazar. O sábio, o génio, o homem de pulso, implacável, decidido e, em simultâneo, amigo dos lares e das famílias. E é nesse sentido que o grande homem/macho falha. Porque para os seus apóstolos da doutrina do antigamente, ele deveria ter tido uma mulher e, pelo menos, uma amante. E é aí que nós, tu e eu, entramos.

Susana sentou-se de novo. O que ouvia só podia ter origem numa partida dos seus ouvidos. Era tudo tão confuso que só queria fazer perguntas sem saber que perguntar. As duas? Entrar? Em quê?

— Mas o Salazar está morto!

— Está! Mas o seu clone está bem vivo.

— …

— O Estado acumulou tesouros sob o comando daquele homem. Que acreditava ser o salvador de uma Nação que, pela colocação estratégica, era apetecível aos olhos de qualquer país que nos quisesse subjugar. E que, por isso, numa absurda dose de narcisismo, não poderia nunca morrer. Assim, investiu tudo nos melhores cientistas, pagos principescamente, para que desenvolvessem investigações em teorias que, em segredo, davam os primeiros passos. Quando ele caiu da cadeira, era o momento oportuno para, numa simulação de tratamentos, lhe retirarem as células necessárias. O resultado final acaba de se concluir no Poço do Bispo. O clone de Salazar já respira, já ordena. E o Paulo é o seu fiel conselheiro, o seu lacaio, o seu apóstolo. Decidido a que todos os erros do ditador sejam agora corrigidos. E, para o Paulo, nós fomos, e por isso somos, as mulheres perfeitas. Qual vai ser a amante e qual a mulher do clone de Salazar, não sei. Mas sei que teremos de ser capturadas juntas para que possamos ser escolhidas.

— Mas como sabes tudo isso? – disse Susana, ignorando o arrepio que lhe percorria a espinha.

— O meu padrinho teve, por casualidade, um momento de lucidez. Momentaneamente a doença abandonou-o e contou-me tudo. Disse-me, inclusivamente, para me afastar de ti porque, como te disse, teremos de ser capturadas juntas. Mas, em nome de uma antiga amizade, não fui capaz de te abandonar. E por isso aqui estou.

— Mas que te garante que o padrinho Costa não mentiu? – perguntou Susana, alarmada e confusa.

— Penso que não. Agora o que pensei, na viagem para cá, é que o momento de lucidez dele, livre do Alzheimer que o assola, pode no entanto ter evidenciado uma loucura imaginativa que nunca ninguém detectou. Mas decidi não arriscar e aqui estou. Pronta para te levar comigo.

— Mas acabei de chegar.

— Um ponto de chegada é sempre um ponto de partida.


João J. A. Madeira

4 comentários:

  1. Mistéeeeeeerio!!! Tenho pena de quem virá a seguir... eheheh!
    Gostei! Estou em pulgas para ler o próximo capítulo!

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  2. Eu é que não quero estar a seguir, nem saberia por onde pegar!!! Gosto muito, muito João do rumo que a história leva...

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  3. Brilhante!!! :) adoro estar neste gurpo! :)

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  4. Gostei muito da continuação, saiu-se muito bem! Um Clone... quem se lembraria disso?
    Grande loucura imaginativa vai nos nossos personagens...
    Parabéns João Madeira!

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