Tudo levava a crer
que o único propósito daquele temporal infernal era endoidecer a pobre diabo da
Susana. Lá amainou antes da madrugada, o céu desanuviou no dia seguinte e,
assim que a maré vazou, também seria de supor que o passado mais recente assim
o fizesse da sua mente.
A memória mais
imediata foi a de Paulo deitado ao seu lado, arrojou largo o braço nessa
direção para lhe sentir o calor do peito a pulsar, em vez disso, sentiu o vazio
frio de um lugar amplo de nada. Foi o baque dessa surpresa o que a despertou em
definitivo. Esperava tê-lo ali, junto dela, protegendo-a dos últimos resquícios
da tormenta da noite anterior, e o primeiro embate da sua ausência crispou-lhe
os sentidos em atenção.
- Um sonho! Terei
sonhado tudo? – Desenhou-se-lhe a ideia nos interstícios do pensamento.
Levantou-se
bruscamente e notou uma estranheza de novidade em tudo quanto observava. Aquele
quarto não era o seu, não eram os seus objetos e roupas que o decoravam, e tudo
em redor era novo, diferente do que ela lembrava ser. Saiu do quarto instigada
pela curiosidade e a tensão do espanto acompanhava-a em cada passo que dava, aquela
casa não lhe era familiar. Encontrou uma porta de vidro anodizada a alumínio
lacado, abriu-a, e deparou-se-lhe um pátio luminoso, caiado a branco com
remates de amarelo, um pequeno coberto ao fundo, de vigas fortes em madeira
clara, que encimavam uma mesa e quatro cadeiras, e um pequeno nicho ao canto, em
tijolo de burro, chamuscado num negrume de braseiro, ainda com a grelha do
churrasco lá enfiada. No centro deste espaço rodeado a altas sebes de
pinheiros-silvestres, jazia plácido, o fosso refulgente, azul turquês de uma
piscina. Aproximou-se da água e observou a superfície ondulante salpicada de
pequenos insetos e caruma. Imaginou terem sido arrastados pelos ventos fortes
da noite anterior. Porém, tinha agora a certeza absoluta, de que aquela não era
definitivamente a casa onde se deitara nessa noite.
Susana não foi
nunca pessoa para ceder a medos, todavia, uma onda tímida de pânico começava a
levantar-se no seu interior, apoderando-se do seu sentido analítico de senso
comum. Retornou ao interior da casa e explorou cada recanto, chamando pelo seu
nome enquanto o remexia. Nem se tomara conta de que o fazia num estado de nudez
absoluta, mas não era o seu corpo exposto a maior das suas preocupações, mais a
apoquentava o desconhecido daquela casa, e sobretudo, como havia lá chegado sem
ter qualquer recordação disso.
Por fim encontrara
um foco de interesse. Uma porta que ainda não devassara na sua demanda
implacável pela descoberta da verdade. Entrou pela porta sentindo que penetrava
nas fauces de um ser de pedra e sombras. Uma prensa apertava-lhe as têmporas ao
rodar aquela maçaneta, e um perfume familiar revirava-lhe as tripas num medo
primitivo que se sentia incapaz de explicar.
- Glória! –
Exclamou ao vislumbrar o corpo descambado da mulher atirado ao abandono daquele
quarto. – O que fazes tu aqui?
- Fala baixo. –
Sussurrou-lhe a amiga em resposta. – Ele anda perto.
Susana tapou-se
com as mãos, perplexa, refugiando-se no interior do quarto. Os seus olhos
demoraram alguns segundos a adaptarem-se ao que viam. A conveniência de
simplificar aquele organismo humano ali desterrado, parecia-lhe antiquado, com
muitas funções inúteis ou repetidas, que nada pareciam ter a ver com a
realidade.
As ideias más vem
sempre aos pares, e não conseguiu suste-las na penumbra do quarto. Glória
mirava-a como se lhe dissesse: Eu avisei-te!
- Quer dizer que
era verdade? – Intuiu Susana, ainda que nenhuma pergunta se lhe tivesse sido
colocada.
- Bem que te disse
que não podíamos ser capturadas as duas. – Afirmava Glória confirmando-lhe os
receios. – Agora já está. Não deverias ter confiado no Paulo.
- Oh, mas foi tão
bom, não posso acreditar que não tivesse sido real. Não me vou entregar
prematuramente a uma ideia disparatada... – A sua expressão alterou-se no
passar de uma brisa momentânea. – Só queria divertir-me com ele, como nos
velhos tempos. – Disse ela, expiando as emoções desgovernadas.
- Como?
- Tu sabes. –
Replicou Susana. – Sentir-me feliz.
- Feliz como? –
Questionou-a a amiga.
- Assim, assim
como foi esta noite. Feliz.
- Devias ter
cuidado. – Advertiu-a Glória.
- Por favor..logo
tu.
- Muito bem, eu
entendo a tua renitência, mas se assim o queres só te posso advertir para o
perigo que corres.
- Quem, tu? –
Interrogou Susana. – Tu alvejaste-me movida pelo ciúme. Podias ter-me matado!
Vou lá agora fazer fé no que tu me dizes.
- Por favor.. –
Insistia Glória. – Ouve-me com atenção, e devagar..
- Devagar?
- Sim, devagar. –
Assentava a palavra. – Devagar! Porque o caso não é para menos. Lembras-te do
que aconteceu em Lisboa?
- Sim.
- Eu disparei, é
certo. Mas não eras tu o meu alvo. Queria por um fim neste pesadelo. Queria
matar o Paulo.
- Querias matar o
Paulo? Tu estás mesmo louca...
- Susy...tu
continuas a não querer abrir os olhos. A não quereres acreditar.
O calor lá fora
era uma tentação tão grande. Mas Susana foi obrigada a interromper-se na
resposta que lhe dirigiria, a fingir-se de forte, por ambas.
- Vamos sair daqui
as duas. Isto é uma loucura, recuso-me a acreditar que seja verdade.
O semblante de
desalento de Glória revelava-lhe a futilidade da sua bravata.
- Acredita! – Dizia-lhe
esta. – Estamos as duas aqui presas. Também eu confiei em quem não devia, e o
resultado está à vista.
- Quem? – Inquiriu
Susana.
- O Caetano.
Lembras-te dele. Sempre teve um fraquinho por mim. Pensei jogar isso a meu
favor, e quando dei por mim, estava aqui.
- Deus! – Exclamou
Susana, já liberta da negação que alvitrava. – Toda aquela história dos clones,
do Salazar, afinal era..
- Verdade! –
Afirmava Glória, interrompendo-a. – Porquê que não acreditaste em mim?
- Impossível.
- Não, não é. De
algum modo eles conseguiram-no. O meu padrinho..Meu Deus! O meu querido
padrinho é o objeto das suas maquinações. Não sei como não me apercebi disso
antes, mas é verdade. Aníbal Costa, para o bem ou para o mal, é o novo Salazar.
Casimiro Teixeira
Será que a nossa história deu mais um passo para a frente e outro para trás e não andarão as nossas personagens a sonhar demais em vez de se dedicarem mais ao romantismo? E os tiros de mudam de alvo!... Parabéns Casimiro pela escrita e pela descrição da casa "observou a superfície ondulante salpicada de pequenos insetos e caruma". Gostei!
ResponderEliminarDina
Adorei!!! :)
ResponderEliminarBela saída. A história a prender-me de novo com mistério, parabéns Casimiro!
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