24/08/11

A Década De Todas As Suspeições - Parte 11


Tudo levava a crer que o único propósito daquele temporal infernal era endoidecer a pobre diabo da Susana. Lá amainou antes da madrugada, o céu desanuviou no dia seguinte e, assim que a maré vazou, também seria de supor que o passado mais recente assim o fizesse da sua mente.
A memória mais imediata foi a de Paulo deitado ao seu lado, arrojou largo o braço nessa direção para lhe sentir o calor do peito a pulsar, em vez disso, sentiu o vazio frio de um lugar amplo de nada. Foi o baque dessa surpresa o que a despertou em definitivo. Esperava tê-lo ali, junto dela, protegendo-a dos últimos resquícios da tormenta da noite anterior, e o primeiro embate da sua ausência crispou-lhe os sentidos em atenção.
- Um sonho! Terei sonhado tudo? – Desenhou-se-lhe a ideia nos interstícios do pensamento.
Levantou-se bruscamente e notou uma estranheza de novidade em tudo quanto observava. Aquele quarto não era o seu, não eram os seus objetos e roupas que o decoravam, e tudo em redor era novo, diferente do que ela lembrava ser. Saiu do quarto instigada pela curiosidade e a tensão do espanto acompanhava-a em cada passo que dava, aquela casa não lhe era familiar. Encontrou uma porta de vidro anodizada a alumínio lacado, abriu-a, e deparou-se-lhe um pátio luminoso, caiado a branco com remates de amarelo, um pequeno coberto ao fundo, de vigas fortes em madeira clara, que encimavam uma mesa e quatro cadeiras, e um pequeno nicho ao canto, em tijolo de burro, chamuscado num negrume de braseiro, ainda com a grelha do churrasco lá enfiada. No centro deste espaço rodeado a altas sebes de pinheiros-silvestres, jazia plácido, o fosso refulgente, azul turquês de uma piscina. Aproximou-se da água e observou a superfície ondulante salpicada de pequenos insetos e caruma. Imaginou terem sido arrastados pelos ventos fortes da noite anterior. Porém, tinha agora a certeza absoluta, de que aquela não era definitivamente a casa onde se deitara nessa noite.
Susana não foi nunca pessoa para ceder a medos, todavia, uma onda tímida de pânico começava a levantar-se no seu interior, apoderando-se do seu sentido analítico de senso comum. Retornou ao interior da casa e explorou cada recanto, chamando pelo seu nome enquanto o remexia. Nem se tomara conta de que o fazia num estado de nudez absoluta, mas não era o seu corpo exposto a maior das suas preocupações, mais a apoquentava o desconhecido daquela casa, e sobretudo, como havia lá chegado sem ter qualquer recordação disso.
Por fim encontrara um foco de interesse. Uma porta que ainda não devassara na sua demanda implacável pela descoberta da verdade. Entrou pela porta sentindo que penetrava nas fauces de um ser de pedra e sombras. Uma prensa apertava-lhe as têmporas ao rodar aquela maçaneta, e um perfume familiar revirava-lhe as tripas num medo primitivo que se sentia incapaz de explicar.
- Glória! – Exclamou ao vislumbrar o corpo descambado da mulher atirado ao abandono daquele quarto. – O que fazes tu aqui?
- Fala baixo. – Sussurrou-lhe a amiga em resposta. – Ele anda perto.
Susana tapou-se com as mãos, perplexa, refugiando-se no interior do quarto. Os seus olhos demoraram alguns segundos a adaptarem-se ao que viam. A conveniência de simplificar aquele organismo humano ali desterrado, parecia-lhe antiquado, com muitas funções inúteis ou repetidas, que nada pareciam ter a ver com a realidade.
As ideias más vem sempre aos pares, e não conseguiu suste-las na penumbra do quarto. Glória mirava-a como se lhe dissesse: Eu avisei-te!
- Quer dizer que era verdade? – Intuiu Susana, ainda que nenhuma pergunta se lhe tivesse sido colocada.
- Bem que te disse que não podíamos ser capturadas as duas. – Afirmava Glória confirmando-lhe os receios. – Agora já está. Não deverias ter confiado no Paulo.
- Oh, mas foi tão bom, não posso acreditar que não tivesse sido real. Não me vou entregar prematuramente a uma ideia disparatada... – A sua expressão alterou-se no passar de uma brisa momentânea. – Só queria divertir-me com ele, como nos velhos tempos. – Disse ela, expiando as emoções desgovernadas.
- Como?
- Tu sabes. – Replicou Susana. – Sentir-me feliz.
- Feliz como? – Questionou-a a amiga.
- Assim, assim como foi esta noite. Feliz.
- Devias ter cuidado. – Advertiu-a Glória.
- Por favor..logo tu.
- Muito bem, eu entendo a tua renitência, mas se assim o queres só te posso advertir para o perigo que corres.
- Quem, tu? – Interrogou Susana. – Tu alvejaste-me movida pelo ciúme. Podias ter-me matado! Vou lá agora fazer fé no que tu me dizes.
- Por favor.. – Insistia Glória. – Ouve-me com atenção, e devagar..
- Devagar?
- Sim, devagar. – Assentava a palavra. – Devagar! Porque o caso não é para menos. Lembras-te do que aconteceu em Lisboa?
- Sim.
- Eu disparei, é certo. Mas não eras tu o meu alvo. Queria por um fim neste pesadelo. Queria matar o Paulo.
- Querias matar o Paulo? Tu estás mesmo louca...
- Susy...tu continuas a não querer abrir os olhos. A não quereres acreditar.
O calor lá fora era uma tentação tão grande. Mas Susana foi obrigada a interromper-se na resposta que lhe dirigiria, a fingir-se de forte, por ambas.
- Vamos sair daqui as duas. Isto é uma loucura, recuso-me a acreditar que seja verdade.
O semblante de desalento de Glória revelava-lhe a futilidade da sua bravata.
- Acredita! – Dizia-lhe esta. – Estamos as duas aqui presas. Também eu confiei em quem não devia, e o resultado está à vista.
- Quem? – Inquiriu Susana.
- O Caetano. Lembras-te dele. Sempre teve um fraquinho por mim. Pensei jogar isso a meu favor, e quando dei por mim, estava aqui.
- Deus! – Exclamou Susana, já liberta da negação que alvitrava. – Toda aquela história dos clones, do Salazar, afinal era..
- Verdade! – Afirmava Glória, interrompendo-a. – Porquê que não acreditaste em mim?
- Impossível.
- Não, não é. De algum modo eles conseguiram-no. O meu padrinho..Meu Deus! O meu querido padrinho é o objeto das suas maquinações. Não sei como não me apercebi disso antes, mas é verdade. Aníbal Costa, para o bem ou para o mal, é o novo Salazar.
Casimiro Teixeira

3 comentários:

  1. Será que a nossa história deu mais um passo para a frente e outro para trás e não andarão as nossas personagens a sonhar demais em vez de se dedicarem mais ao romantismo? E os tiros de mudam de alvo!... Parabéns Casimiro pela escrita e pela descrição da casa "observou a superfície ondulante salpicada de pequenos insetos e caruma". Gostei!

    Dina

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  2. Bela saída. A história a prender-me de novo com mistério, parabéns Casimiro!

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