Susana começava decididamente a ficar inquieta e
perturbada, nem sequer a leveza instantânea daquele beijo passageiro a
conseguia já demover das tremuras interiores que a abalavam. Fez questão de
desistir de todos os pensamentos díspares de romantismo, concentrando a sua
atenção inflexível em António, que soluçava descontrolado a seus pés.
Reteve a respiração, e, em seguida apontou-lhe
duas cadeiras no interior do quarto.
- Claro! – Responde-lhe ele decidido, tentando
esboçar um sorriso. – Temos muito que conversar.
Sentaram-se ambos, Susana ainda não abrira a boca,
observava aquele homem com uma atenção desmedida, parecendo contudo diminuída agora,
a confiança cega que inicialmente lhe depositara no seu olhar doce. Algo nele
se transfigurara, ou talvez se tenha dado em si o ponto de ruptura mental, o
exacto instante em que já não lhe era mais possível prosseguir sem uma
explicação. Desconcertada, já nem conseguia sequer formular novas perguntas, e
o descalabro estava iminente. A partir daqui, foi um dilúvio verbal! Gesticulando,
Susana passa do horror ao sorriso, da inquietude ao pânico.
António via nela um concentrado de sofrimento.
Agarrando-se à borda da cadeira, ela chega mesmo a berrar em puro desespero. A
sua explosão ressoa longa pela pousada do Anjo. Aqui e ali, António
apanhava-lhe o sentido. Palavras, momentos, expressões. Mudo, limita-se a
acenar-lhe com a cabeça, incentivando-a a continuar.
Por fim, esgotada, ela detém a purga. A sua boca
entreaberta faz um barulho de carne flácida, suspira num arfar imparável.
- Então? – Pergunta-lhe finalmente.
António engole em seco e tenta dar um bom sentido
à história, exorcizando os seus próprios demónios.
- Era preciso apagar tudo, compreendes? Afastar
todos aqueles que podiam estar informados, de perto ou de longe, sobre o
assunto. Destruí-los a todos, mesmo os mais inocentes.
Nova recordação dolorosa. Susana pega no seu
telemóvel e acaricia-o com nervosismo.
- A Isabel! – Exclama num grito apagado.
António limita-se a acenar.
- Desde então tudo se passa na sombra... – Continua
- Porque as coisas não acabaram...bem pelo contrário!
- A Isabel também?
- Todos! O Dr. Azevedo sabe muito bem onde eu
estou. Até deve saber que estamos juntos neste preciso momento. Para ele, nós
não somos nada. Meros pormenores...o que lhe importa é o projecto, somente o
projecto.
Susana forçou-se a afastar esse pensamento
terrível da cabeça e abanou o telemóvel tentando desesperadamente alcançar a
amiga.
- É tarde demais. – Diz-lhe António. – A esta hora
a polícia já a terá apanhado.
Com o aparelho colado ao ouvido, Susana
mostrava-lhe um olhar de incredulidade.
- O inspector. – Anuiu António, em resposta. –
Sim. O inspector Renato também faz parte desta trama hedionda. Foi companheiro
de Aníbal Costa no ultramar, foram colegas de companhia. Aliás, foi ele quem o
apresentou ao Dr. Azevedo quando ambos retornaram. O Aníbal era o sujeito
perfeito para a experiência inicial. Um fanático, capaz das maiores atrocidades
durante a guerra em África, mas ainda assim, nada comparado com o que se tornou
a seguir. Eu...eu próprio efectuei a cirurgia que o tornou naquilo que ele é
hoje. Mas isso nem foi o pior. Foi só o início de toda esta trama.
- Mas isso é ridículo. Com que objectivo? Torna-lo
no novo Salazar? – Inquiria a rapariga.
- A queda de uma civilização é o mais
surpreendente, e, ao mesmo tempo, o mais obscuro de todos os fenómenos da
História. Depois da morte de Salazar, depois das colónias quase perdidas, até
mesmo já depois de o próprio regime cair, em Abril de 74, um grupo muito
restrito de pessoas, todos eles fascistas fervorosos, nacionalistas, saudosos
dos tempos em que Portugal dominava metade do mundo, reuniram-se em segredo
numa casa perto de Sevilha. Viviam-se tempos perigosos e instáveis, e essas
pessoas estavam determinadas... determinadas percebes, a restaurarem aquilo que
para eles representava a glória do nosso país. E não eram somente portugueses,
os que ali se reuniam naquela noite fatídica, mas também espanhóis, italianos,
alemães.. de todas as frentes de um nacionalismo ousado e puro, os derrotados
da Europa, os escorraçados... os malditos! Entre eles encontrava-se o Dr.
Azevedo, e..eu também.
- Tu? Mas como pode isso ser? Tu não pareces nada
mais velho do que eu, como é possível que possas ter estado nessa reunião
secreta, que ocorreu há mais de trinta anos atrás?
António sucumbiu ao seu próprio relato, recolhendo
o rosto em constrangimento.
- Não fui inteiramente sincero contigo.
- Isso vejo eu. – Declara Susana. – Serás tu
também um clone? Então? Desembucha. – Remete-lhe a rapariga, em fúria.
- Eugenia!
Sabes o que significa?
- Eugenia? Não, não faço ideia.
- É o estudo dos agentes sob o controle
social que podem melhorar... ou empobrecer as qualidades raciais das futuras
gerações. O Dr. Hugo Von Venkell do
departamento de purificação racial do III reich,
trabalhou extensivamente nessa área no campo de Dachau, durante a guerra...fez experiências terríveis...eu mal sei
como te...
- Continua. –
Expressou Susana com frieza.
António
admirou-se com a quietude impenetrável do seu rosto, julgou senti-la mais
chocada com o que lhe acabara de contar, e não pode deixar de se surpreender
com a sua postura estóica e calma. Prosseguiu depois com o seu relato, já ele
também mais recomposto da própria natureza aterradora do que lhe dizia.
- Von Venkell veio refugiar-se aqui, em
Portugal. Tomou residência em Sintra, e durante imensos anos, levou uma vida
aparentemente pacata como um médico de província. Mais tarde, foi incumbido de
implementar esse mesmo conceito de pureza racial, de domínio da raça, na nossa
população. A intenção era clara, diluir completamente as ideologias
reaccionárias, comunistas, anarquistas e substituí-las pela geração seguinte,
os eugénicos arianos. Afastar os “incapazes” os “mais fracos”, pois esses
constituíam uma ameaça, um perigo. De certa forma, o objectivo era, e continua
a ser, o de vencer a guerra por assimilação. Mais tarde ou mais cedo, a maioria
da população acabaria por ficar toda submetida ao processo de purificação, e o
país tornar-se-ia inteiramente homogéneo a esta ideologia, puro e grato por
seguir os líderes de outrora. Os membros daquele primeiro encontro em Sevilha,
e respectivas famílias, foram a génese do projecto, submetendo-se a ele de bom
grado, e em plena consciência e dedicação. Foi o meu pai, quem assistiu a esse
momento, mas, de acordo com o que te expliquei ainda agora, foi como se eu
próprio lá tivesse estado, percebes? Eu sou uma versão melhorada, purificada,
do meu pai, e tu também, Susana.
A cabeça de
Susana parecia prestes a implodir sobre si mesma com que ouvia. Os seus olhos
piscavam intermitentes, absolutamente incrédulos.
- Eu? Isso é um
disparate pegado. Eu conheço bem os meus pais, sei muito bem quem eles eram. O
meu pai foi militante do P.O.U.S., pelo amor de Deus! Ariano? Tu estás louco.
- Não, não
estou..Infelizmente é tudo verdade. Porque também tu estiveste presente naquela
reunião. Tu, a Glória, o Paulo, eu..todos nós estivemos lá, porque somos todos
frutos deste mesmo projecto, que já envolve meio Portugal. O que te lembras
exactamente sobre os teus pais?
- Eu?
- Sim Susana,
tu. Talvez já te tenhas questionado do porquê de não existirem fotografias da
tua infância em lado algum. Como é possível existir um casal que não guarda uma
única foto da sua filha quando esta foi criança, ou bebé. Achas isso normal?
- Sei lá eu
porquê..mas isso não invalida que..
- Porra Susana!
– Interrompe-a António. – Tu viste os corpos ali naquele laboratório, eu sei
que os vistes. Tu e o Paulo, uma outra Susana e um outro Paulo, e quantos mais
não haverão por aí, já lhes perdi a conta. Moldes! Somos moldes todos nós..eu,
tu, a Glória..eu.. eu já nem bem sei quem sou verdadeiramente! – António apoia
os cotovelos sobre os seus joelhos e encobre o rosto com as mãos. – Mas, o pior
de tudo ainda não te contei..
- Sobre o Dr.
Azevedo?
- O Dr. Azevedo
é Von Venkell. Hugo Von Venkell assumiu a identidade do Dr. Azevedo, são uma e a
mesma pessoa.
- A Isabel? Ela
está a ligar-me. – Responde-lhe Susana.
- Não atendas,
não é a Isabel, garanto-te. A Isabel está morta, assim como o Paulo que tu
conhecias, e a Glória, o Aníbal Costa, e todas as pontas soltas que nasceram
nessa década de todas as suspeições. Tu tens estado a ouvir-me com atenção? A
experiência ainda não terminou, a prova disso, são as tuas dúvidas e os teus receios,
é o próprio relato que te acabei de fazer. Ainda não somos puros, puros como
eles o desejariam que fôssemos. É por isso que não nos resta muito mais tempo.
Pousa o telemóvel e escuta-me com atenção, só tenho mais uma coisa para te
dizer, mas é a mais importante de todas, tu não és..
O estrondo avassalador
da porta do quarto sendo dobrada sobre as próprias dobradiças pela força
certeira de um pontapé, interrompeu-lhe de imediato o discurso, e antes mesmo
que qualquer um deles pudesse esboçar reacção que fosse, acabaram tolhidos por
dois tiros certeiros e silenciosos, alvejando-os mortalmente no centro da
cabeça.
António parecia ainda
ter feito tenção de protegê-la no instante derradeiro, pois tombou sobre si
mesmo, para a frente, de rosto virado ao chão. Susana, por seu turno, completamente tomada de
surpresa, permaneceu sentada na cadeira, de olhar vazado, aberto num espanto
eterno, para sempre desconhecedora do seu verdadeiro destino.
No dia seguinte,
estranhamente cedo para o que era o seu costume, entrava descontraidamente pela
porta da redacção da ReporterMagazine,
trazia o capacete debaixo de um braço, uma mão cheia de rolos fotográficos e um
sorriso zombeteiro a iluminar-lhe o rosto.
Casimiro Teixeira
FIM?
Em primeiro lugar, parabéns a todos os autores do conto, fizeram um brilhante trabalho!
ResponderEliminarEm segundo lugar, parabéns ao Casimiro pelo bonito desfecho desta história! O último parágrafo está o máximo! E tudo volta à vida normal...com "um sorriso zombeteiro a iluminar-lhe o rosto."