05/11/12

Madalena dos Olhos Cor de Algas - Capítulo 4

 
E a chuva desabou como um corpo morto, pesado e rombo caindo sem cordas sobre o asfalto, sobre as árvores e sobre os carros. Um batalhão de setas ferozes foi disparado em direcção ao carro de Eva. Ligou os dois piscas e abrandou a marcha. No dia anterior sonhara um sonho estranho, denso e lúcido. Uma tempestade, tal como a que agora se abate sobre o seu BMW, à passagem por Aveiro, surpreendera-a à beira de um poço, um poço escuro e sem fundo. Do outro lado do poço, Alex, vestido como uma criança, enfeitado de rendinhas, de touca branca na cabeça e bibe azul às risquinhas, ria inocentemente de uma centopeia que lhe trepava pela perna esquerda. Atrás dele, mas separada por uma cancela de madeira com 3 metros de altura, Madalena, sentada a uma mesa de madeira, talvez mogno, de mãos atadas atrás das costas, olhava surpreendida uma máquina de escrever antiga que trabalhava sem ser tocada por mão humana. Noutro plano mais distante, delimitado por árvores de fruto - pessegueiros, nogueiras, laranjeiras e nespereiras -, a sua mãe brindava com um velho inglês de monóculo enfiado dentro do olho. Reconhecia a casa – um velho palacete na Foz do Porto onde fora baptizada por entre o frufru das titis e o alfinete dourado na lapela dos avós. Num canto mais escuro resguardado por ciprestes, o avô Lúcio desembainhava uma espada em serrilha com a qual decepava um corvo azulino, e a avó Maria Rosa, sentada numa cadeira de marfim, desfolhava um malmequer preto. Todo o sonho obedecia, certamente, a um plano qualquer que desconhecia. De cada vez que Alex se ria da centopeia que lhe trepava pela perna esquerda, Madalena abria mais a boca – até quase toda ela ser apenas boca -, a sua mãe brindava com o velho inglês, enquanto no canto dos ciprestes o avô decepava um corvo e a avó arrancava uma pétala preta – a última das quais à dentada. A tempestade, galopante como um cavalo em fúria, acabaria por liquefazer Alex. Ficaram os restantes elementos, contracenando como se de uma gigantesca farsa se ocupassem. Quando acordou do sonho, os seus pés estavam gelados. Eva não conseguiu captar a essência do sonho. Todavia, uma impressão negra como a que agora actualizava na tempestade entranhara-se na sua pele – uma sensação de que algo catastrófico estaria eminente. Provavelmente, sorriu Eva, ainda vou ter um acidente e é desta que morro. Riu alto. A morte, essa velha amiga, murmurou levando a mão à cabeça. Encostou o carro à berma, a chuva impossibilitava a viagem. Olhou pelo retrovisor, um enorme fila de carros desfocados pela chuva parava na berma, alguns aventureiros prosseguiam, a maior parte deles tacteando a estrada, apenas um ou outro desafiando o temporal. Desligou a música, recostou-se e adormeceu. Maldita sonolência, amaldiçoou.

Mais a sul, em Coimbra, Eduardo bate à porta de um gabinete escuro.

- Faça favor - ouve-se de dentro.

Eduardo roda a maçaneta, baixa a cabeça e entra encostando-se à porta. No gabinete, e ao fundo, mesmo ao lado da ocupante, um quadro de cortiça alegra-se com fotografias, gráficos, desenhos, pioneses coloridos e fotocópias; à esquerda, uma fotocopiadora antiga Xerox morre contra a parede; à direita, um amontoado de caixotes com produtos da oficina de artesanato - galinhos de Barcelos multicolores, cadernos de papel reciclado enfeitados com madeira e penas de todas as espécies de aves, caixinhas pequeninas para guardar recordações ou jóias, sacos de sarapilheira bordados com motivos florais – sobe até ao teto. Eduardo conhece-os perfeitamente: todas as suas terças e quintas-feiras são ocupadas nas oficinas, de volta dos galinhos e dos cadernos.

- Então, Eduardo, já respondeu a todos os anúncios de emprego?

- Sim, senhora doutora – respondeu Eduardo de cabeça baixa.

- Já falou com os elfos da Quinta das Lágrimas?

- Sim, senhora doutora.

- E como estão eles?

- Zangados, senhora doutora, muito zangados – responde com tristeza.

- E já foi ao restaurante do seu pai?

- Sim, senhora doutora.

- E como está ele?

- O meu pai está muito bem, senhora doutora, obrigado.

- E o que vai ser a ementa?

- Arroz com bifes, sim senhora.

- Muito bem, Eduardo…

 
O silêncio nasce no gabinete sombrio, apenas entrecortado pelo matraquear nas teclas do computador e pela chuva furiosa na vidraça. Celestina, a técnica de serviço social, acaba o registo de assiduidade, tira os óculos baços, deposita-os na secretária de mogno e olha na direcção de Eduardo. Eduardo tivera o primeiro surto psicótico bastante tarde, aos 35 anos, em plena floresta do Congo, África. Sem meios de controlo, os companheiros de missão viram-se obrigados a amarrar Eduardo a um mogno gigante, enquanto ele gritava aterrorizado que formigas gigantes lhe roubavam os intestinos para os entregarem aos gorilas, e que a mãe se transformara em leoa e lhe comia as mãos, e que os pés não eram seus mas de um crocodilo, e que um guaxinim lhe roía as entranhas, e que os companheiros de viagem lhe queriam roubar o cérebro. Quando deu mostras de acalmia, Eduardo era um homem diferente. África terminara para ele. O tímido professor de Latim era apenas uma sombra do homem que antes fora - o homem que dormira com Eva. Agora deambula pelos departamentos do Psiquiátrico – a rouparia, a cozinha, os serviços administrativos, a associação de recuperação, as oficinas de trabalho, o núcleo de emprego protegido e a sala de informática -, rumina que os feiticeiros africanos lhe roubaram o emprego e o entregaram a um departamento americano especial que opera no coração de África. Amargura-se imenso por estar desempregado e consulta o Sr. Pereira dos serviços administrativos várias vezes ao dia para perguntar se tem resposta aos anúncios de emprego, como se estivesse nos CTT; assim como pergunta a Célia, a desengonçada monitora das estufas, se os novos cursos já saíram. Pelo caminho, e enquanto se dirige à “Quinta das Lágrimas”, um par de árvores mirradas num canto do hospital, Lúcia do emprego protegido, que o trata com deferência por Sr. doutor, lança-lhe um olhar apaixonado enquanto varre, com a energia que os comprimidos lhe permitem, a entrada do pavilhão A.

- A Eva vem visitar-me - diz Eduardo abruptamente e sem aviso.

Um relâmpago alaga de luz o gabinete. Celestina franze o sobrolho e aguça o olhar em direção a Eduardo.
- A Eva, Eduardo? – Pergunta-lhe com inquietação.
Paulo Melo Lopes

3 comentários:

  1. Oh! Xiiiiii!!! Mas que volta que a historia deu! Gostei da escrita, especialmente dos pormenores do sonho... :)Boa sorte para o proximo! :)

    Fátima Ribeiro

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  2. Isto é que foi uma reviravolta... :) Excelente escrita e surpreendente o rumo da história. Parabéns, Paulo.

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