18/11/12

Madalena dos Olhos Cor de Algas - Capítulo 6


Que se fodam, pensou. Que fodam, copulem, como dois animais desprovidos de sentidos. Que as suas inteligências se reduzam ao encaixe de ponta de pau em passiva porta de prazer. Ela é que não alinharia em dramatismos, em teatros ignóbeis de gritos fendidos por ofensa, em ridículas atitudes numa sociedade machista. Ela, Eva de seu nome, primeiro nome de todas as mulheres, era uma senhora! Uma mulher de letra grande educada na sensibilidade dos afectos, nas carícias por carinho, na certeza de que só o amor levava ao sexo enquanto que o sexo apenas levava repetidamente a si próprio. Não seria personagem daquela peça. Não queria ver as costas do seu homem sobre aqueles olhos de…de… de putéfia.

                Tremia. Tremia de raiva, de frio, de gélida ira quando se afastou. Os passos pisando pensamentos vertidos na calçada. Ela tinha um homem sensível, inteligente e atencioso. Madalena olhos cor de puta tinha somente uma máquina oscilante de fugaz e efémero prazer. Eva vencia. Porque nunca o seu corpo se dera na busca de apenas corpo. Nunca o sexo pelo sexo. Nunca.

                Queria estar só. Só, destilando raiva pelos poros do silêncio. Mas porquê tanta gente nas ruas, hoje, logo hoje em que desejava para si um vácuo de pensamento? Porque se amontoavam as pessoas, mudas, tristes, à beira do passeio, se naquela noite a tristeza e o silêncio eram propriedade sua? “… a procissão”, sussurrou alguém. A procissão! Há quanto tempo tinha abandonado a paz celestial. A candura da catequese que em menina frequentara. Os ensinamentos de pudor e castidade. Oh! Quanto tempo havia de recordações que mais tempo apagara. Seria uma bênção aquela procissão? Uma dádiva para os pensamentos que tanto a mortificavam?

                Parou olhando o alcatrão ainda desocupado. Se pecara pelo afastamento aos ensinamentos de Deus, não era digna de se misturar com a multidão de crentes. Recuou. Até que as costas sentiram o frio da parede de um prédio. Conseguiria dali ver o desfile por entre a silhueta das cabeças à sua frente. Saberia ainda benzer-se?   

 

                Subitamente, um clamoroso mas ternurento “Oh!” denunciava a visualização das primeiras figuras.

 

                E encontrou-se, lá atrás, sozinha cada vez mais rodeada de gente. Que se empurrava disfarçadamente, se substituía subtilmente. Cada um querendo ocupar o suposto melhor lugar do outro. Pôs-se em bicos de pés tentando vislumbrar as primeiras imagens. E alguém se interpôs entre ela e a parede que fora sua. Alguém que não passou. Que apenas lhe roubou o lugar.

 

                Crianças. Meninas em lento passo, provavelmente traquinas certamente diabretes, faziam-se rosados anjos em simulada levitação, que as asas mal pregadas nas costas e os pés cobertos pelas brancas vestes simulavam. Nas mãozinhas, cotos brancos sustinham titubeantes chamas.

 

                Um calor, uma chama intensa lhe inundou o corpo. O lento erguer de algo duro atrás de si, ofensivo, abusador, como que forçando a costura das calças entre as nádegas, queimou-a, empurrou-a para onde não era possível ser empurrada. Com as faces fervendo, quis voltar-se, enfrentá-lo. Mas, naquele momento, Madalena agitaria como troféu o que a ela derrotava. Porquê fugir ao que a amante do marido se entregava? Não era sua a carne do marido. Não era sua a carne sedenta de prazer que a si se encostava. Só a sua própria carne lhe pertencia. Deveria permitir que essa sua carne fugisse? A fuga deixa mágoa, ofensa. E a entrega?

 

                No silêncio da multidão, o rufar tenebroso e sincopado dos tambores alternavam com o ranger do cabedal das botas dos bombeiros. Bum!...Bum!

 

                O coração vibrava-lhe a cada pancada, a cada estocada que um sexo perplexo pela submissão lhe forçava na justeza das calças cedentes ao mais forte. Sentia-o tão dentro de si como ao sangue bombeado por desnorteado coração. Subitamente, numa atitude estranha de coragem ou cobardia, forçou a que o seu corpo pressionasse quem até aí a pressionara.

 

                O primeiro andor. Do alto, o primeiro olhar triste e santo fixando o negro do alcatrão contrastado na alva pureza da sua aura. Andando lento. Numa lentidão subjugada ao andamento dos ombros que o sustêm.

 

                Já não sabia o nome dos santos. E só agora brevemente questionava que debaixo daquelas vestes fortes e pesadas o santo tivera carne também. Como ela. Como as mãos que suaves se meteram sob a camisola de riscas brancas e pretas e, em círculos, numa aproximação de carícias, foram subindo devagar, muito devagar, misturando poros e suor, desejo e medo, até ao abarcar dos seios rijos e incomodados pela asfixia do soutien. Há um temor de lascívia na sua mente. Desejo e repúdio. Querer gritar o grito que o corpo cala.

 

                Calam-se os tambores. Param acólitos de vestes vermelhas corridas ao longo do corpo sibilando mudas e ininteligíveis rezas sobre o aroma do incenso exalado pelo censer agora inerte. Detêm-se por instantes pernas castigadas por tão lento caminhar.

 

                Correm mãos para sul no desabotoar de botão de cós no correr de fecho no tocar da humidade de um sexo ávido de prazer na ponta de uns dedos hábeis, ultrajantes, invasores perdidos desde que outro sexo o fizera acordar. Eva quer rejeitar o que o corpo deseja por gosto. Perde-se ofega baixo no ritmo ofegante que lhe sopra o pescoço como bênção sobre o corpo que sente não ser já seu. Cedendo ele ao que ela não quer, que lhe restará depois? A memória do prazer? O pecado? A culpa de um sexo molhado entre frágeis pernas em que a mente fraquejara também?

 

                O hissope agita-se nas mãos do prior. Asperge benzendo de humildade castigadas cabeças caídas subitamente leves de culpa, de peso, de maldade evaporada no escuro dos céus que se iluminam em estrondos estrelados de júbilo. Expelem-se finalmente foguetes da alma aflita por oprimida dos homens.

 

                Quando o seu corpo cai, desamparado, Eva sabe que tudo acabou. Que alguém a liberta e se perde misturado na multidão. Terá um rosto que nunca conseguirá identificar enquanto que o seu será, onde quer que esteja, reconhecido pelos olhos desse mesmo rosto. Sem forças, as pernas o corpo a alma tremendo, ergue-se. Quando acima dos vultos vislumbra um outro semblante. Estático, triste. Incluirá Ele o seu pecado nos pecados do Mundo?

 

A multidão ajoelha.

 

Só Eva permanece de pé.

 

Eu sei, Senhor. O teu reino não é deste mundo. O meu é. Transmitiste-me a faculdade de perdoar ou castigar. Madalena e Alexandre. De recuperar amores perdidos ou apenas adormecidos. Eduardo. Mas têm os amores perdidos recuperação? Ou são apenas rosto desconhecido de alguém que se dilui na multidão? Que nos conhece sem que saibamos quem é.

 

Fechou os punhos. Sorriu. Obrigada, Senhor. Pela resposta.

 

Finalmente ajoelhada, benzeu-se.           
 


 
João J. A. Madeira

8 comentários:

  1. Fantástico momento de fervor religioso... e não só! Muito bom, ou não seria escrito pelo João J. A. Madeira! :))

    Fátima

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  2. Uau... com a qualidade de escrita a que o João já nos habituou e um rumo surpreendente no desenrolar da história, este capítulo deliciou-me.

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  3. Quente, inteligente e excelente. Quem assim escreve sabe bem aquilo que sente. Muito, muito bom João.

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  4. Um capítulo hipersensitivo e com uma forte atmosfera de erotismo mesclado de mistério...

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  5. Que posso eu dizer?
    a escrita, a história, os sentimentos aqui narrados. Fantástico João
    Adorei!!!

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  6. João, a tua escrita, para mim é perfeita. Uma escrita que Cativa, lê-se bem, não é preciso ir buscar o dicionário para saber o que querem dizer as palavras, as frases e a pontuação está tudo no sítio certo, mas isso já todos sabemos. Agora com este capítulo tu surpreendeste-me. Começaste logo com um palavrão, que sinceramente eu não gosto de ler, assim tão explícito e logo a abrir o capítulo, mas depois continuei a ler o texto e até esqueci a palavra. Soubeste definir bem o que estava a sentir uma mulher traída, a contradição entre os seus valores e os sentimentos de vingança pela traição. Mas será que não ousaste demais com a cena do sexo na procissão? Porque é que tinha de ser numa procissão com santos, andores e anjos? Esta foi muito forte! Só tu como autor sabes a resposta No geral gostei!

    Dina

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  7. Só mais uma coisa(eu quando me zango, também sou capaz de dizer asneiras, mas é sem escrita e sem gravação).

    Dina

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  8. Comecemos pelo início. Como afirmas, também dizes asneiras quando estás zangada. Se eu fosse escritor e quisesse mostrar o que te vai na alma, teria de referir essas mesmas asneiras. Porque a obrigação do autor é trazer à mente de quem lê todas as incongruências que atravessam o espírito da personagem. Repara, imagina que o texto começava com "que chatice, o Alexandre é meu marido e agora está lá em cima com outra". Achas que teria o mesmo impacto? Soaria real? Mostraria a ira que naquele momento lhe vai na alma? Não me parece. Escrever é, quando necessário, não ter medo das palavras quando essas palavras melhor definem a acção. A Eva é uma pessoa educada. Como tu também és. E no entanto tu, quando zangada...Agora, a procissão. Como sabes a vida é composta do ser e seu contrário. Mulher, homem; dia, noite; bem, mal; terra, mar...o capítulo começa com raiva, com a frustração que qualquer traição nos causa. Depois vai-se diluindo no texto. Porquê? Porque novas sensações, imediatamente antes negadas, se sobrepõem às iniciais. Mas, pelo meio, encontraram a candura da santidade. Se vires isso como um gráfico, verificarás que a descoberta da procissão representa a tal virtude central que, como sempre, apenas é ponto de passagem para outro estado. Imagina que a tinha posto num centro comercial a ver montras ou até às compras. Que sensações transmitiriam a quem lê? A de uma mulher fútil, apenas. Enquanto que aqui, com a procissão - ou eventualmente uma ideia parecida - se faz o contraponto de sexo (o tema maior do capítulo) e castidade. E agora, para acabar, vou talvez ser ainda mais polémico. Eva cede pelo fraquejar do corpo às dúvidas da mente. O homem, atrás dela, aproveita-se disso embora sem o saber. E a procissão? Não haverá um aproveitamento também ao dar como santas as imagens feitas de barro misturadas com crianças que desfilam a pensar em apenas brincar? Não estará a mente do povo espectador a ser violada com simulacros de santidade? Não estará o hissope a benzer com provável água da torneira? Diz-me agora: digerindo o texto, não terá sido a procissão uma boa escolha? Gostava de ser escritor. Mas hoje estou contente. Pelo teu comentário. Tê-lo-ias feito se não tivesse mexido contigo? Não. E escrever é isto. Doce beijinho, Dina.

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