Conheci Arturo
Zéfiro na Páscoa de 1996. Vivia, e ainda vive, num casario branco - uma vivenda
italiana, como gosta de lhe chamar e como terá visto num filme antigo, apoiando
os seus argumentos no cristalino ribeiro que goteja pelo meio do jardim
plantado de cameleiras vermelhas e magnólias magrinhas, e na pedra cortada como
se artesanais tivessem sido as ferramentas que suavizaram os ângulos gerados
rudes pela natureza. Adorna o átrio da entrada um pequeno oratório circundado de
flores, umas naturais, cravos, cravetas e rosas brancas, e outras artificiais,
destacando-se uma hortênsia mortalmente azul: o oratório de Nossa Senhora dos
Ventos. “É uma espécie de oratório familar”, explicava acariciado pelo gentil
vento de oeste e pelo calor de um Maio primaveril. “Todos os meus irmãos e
irmãs”, continuava Arturo, “por aqui passam em rezas algumas vezes por ano”. Por
esta altura, tem quase 90 anos e a saúde teima em fugir-lhe dos ossos e das
carnes amarelas – amarelas como as poeiras que se levantam a oeste, rente ao
tranquilo Atlântico que espreita depois do muro.
Arturo gosta de
limonada, e é a beber limonada que o encontramos debaixo da pérgola de videira
americana. A seu lado, Rimbaud, o cão poeta, sacode as moscas com o rabo esquálido.
Arturo Zéfiro refere, muitas das vezes de forma inesperada a meio de uma
conversa, que o cão ladra rimando ou seguindo o ritmo de um obscuro sonetim
italiano. Na mesinha de nogueira, oferta de um tio cipriota já morto e desfeito
como a poeira amarela do fim da tarde – e de certo modo, ainda bem, porque
assim, morto como pó, ao piedoso cipriota não lhe dói assistir ao suicídio em
massa dos seus compatriotas, lançando-se de pontes, edifícios ou penhascos, já
desenganados do futuro -, descansa um carcomido livro de viagens, “Correr o
mundo”, de um desconhecido Giuseppe Aiuto. De acordo com Arturo Zéfiro,
trata-se de um clássico dos caminhos, e de alguns descaminhos também, do Médio
Oriente; um livro de viagens, em suma. Um exemplo, escrito assim na página 13:
“Depois de passear no Saara com Adara e com Aini pelas mãos, poderei dizer,
enfim, com toda a poesia e com toda a substileza de cada grão de areia que o
deserto encerra: foi o meu momento de eternidade, o meu momento no paraíso
destes e doutros mundos. O idílio morreu brutalmente assassinado por um maldito
escorpião que mordeu Ainia na coxa esquerda. A minha queridíssima Aini... Ainda
hoje choro por ela.”
Arturo tem uma
filha, chama-se Carlinda e trabalha na Junta de Freguesia como secretária do
Presidente. Nunca aprendeu dactilografia, refere-o com bastante mágoa, e os
computadores permanecem um mistério inexugnável, embora tais instrumentos não
lhe impeçam o mister do trabalho. Podemos vê-la correndo e sorrindo, correndo e
sorrindo, correndo e sorrindo, abrindo e fechando as portas da Junta de
Freguesia, transportando toda a informação, quer aquela exclusivamente
adestrita aos neurónios responsáveis pela memória, quer aquela a cuja memória
não chega e por isso faz-se transportar em papéis e dossiers intermináveis. Nos
últimos dias, todavia, o sorriso aparece menos nos olhos de Carlinda. O governo
quer despedi-la. Quando se imagina fora das portas da Junta chora como uma
Madalena despedida. “Ninguém sabe como sofro”, confessa ela a cada freguês que
lhe adivinha o sorrido apagado no rosto. O marido de Carlinda, Libânio,
responsável comercial pela secção de enchidos de uma grande empresa, ainda
tentou, muito anos atrás, ajudá-la a ultrapassar a dactilográfica falha, porém
sem qualquer sucesso. Nos tempos mais recentes, Libânio ausenta-se de casa
durante cada vez mais tempo. Se dantes um dia ou dois de descaso da casa
pareceria uma eternidade, nos dias que correm não é de grande relevo que uma
semana inteira passe longe dos ares da sua janela e do sorriso agora morno de
Carlinda. Cada vez o negócio vai mais difícil, e é preciso que se afaste mais e
mais, centenas e centenas de quilómetros, para que venda os mesmos chouriços e
as mesmas alheiras que dantes vendia em duas ou três aldeias em redor.
Carlinda deu à
luz tardiamente, com quase 50 anos, um milagre que o Dr. Luisinho do centro de
saúde - toda a gente o trata assim, e ninguém o faz por demérito ou escondida
maldade - tratou dos encómios auferir diante de eminentes geneticistas, como
tivesse soltado das suas mãos o sopro divino que aconchegou de boas esperanças
as entranhas de Carlinda. Liberto - eis o nome do menino. Neste preciso
momento, distrai-se, nas traseiras do casario italiano, com um papagaio
vermelho que teima em não subir aos céus.
Paulo Melo Lopes
Povo sofrido, os Cipriotas, a passar por maus momentos, como todos nós. Parabéns Paulo, pela escrita e pelo tema que promete
ResponderEliminarmuito bom!
ResponderEliminarGostei mesmo muito deste início :) uma escrita que me prendeu e agradou muitíssimo :)
ResponderEliminarAdorei o Rimbaud e o Liberto a brincar com o papagaio! Espero estar inspirado quando chegar a minha vez!
ResponderEliminarGostei...gostei...e gostei!
ResponderEliminarUm belíssimo começo a emprestar asas aos que se seguem.
ResponderEliminarUm inicio cativante que, certamente, dará aso a magnificos desenvolvimentos.
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