Um impulso chamava-o para um
qualquer lugar. Eduardo não sabia para onde ia mas sabia que tinha que ir. Eva,
Madalena, as duas gritavam pela sua ajuda, como se fosse, ele, o salvador que
tinha a vida de ambas nas mãos. As ruas que desaguavam na foz encontravam-se absolutamente
devastadas pela tempestade que as assolara, tinha sido uma noite dos demónios.
Talvez por isso, também, o seu sono tivesse sido tão atormentado. Mas a verdade
é que a ansiedade continuava, apesar de já estar bem desperto. O bater das
ondas latejava-lhe nas têmporas… e Madalena…
- Não!... Madalena, não faças
isso!
Madalena sobressaltou-se com o
grito. Familiar e a tocar-lhe o coração. Só aquela voz tinha a força para a
despegar do apelo das marés. Hesitante, entre o magnetismo do mar e o olhar de
Eduardo, que naquele momento reflectia toda a inquietude da cor incerta das
algas, cambaleou para os braços do irmão. Querido Eduardo, tão frágil e ao
mesmo tempo tão forte, era a sua única tábua de salvação. Não lhe fez
perguntas, nem sequer lhe lançou um olhar recriminador, limitou-se a abraça-la
e a consumir-lhe as lágrimas. O que sendo tão pouco era tanto. Dos olhares de
soslaio, dos silêncios súbitos à sua passagem, estava ela farta. Ninguém…
ninguém tinha o direito de julgar os seus actos ou de questionar as suas opções,
quando era ela própria que se sentia uma perdida dentro de si mesma. Se podia
ter seguido por outros caminhos, claro que podia, mas a vida é feita de
escolhas e aquelas tinham sido as suas escolhas. Bem ou mal, a sua vida era o
destino do caminho que um dia havia escolhido. Mas, vendo bem, ainda tinha
muito caminho para percorrer. E o rumo poderia sempre ser alterado. Era tudo
tão mais claro, nos braços de Eduardo.
Indiferentes a tudo o que se
passava à volta, os dois deixavam fluir o seu entendimento perfeito, quando o
telemóvel de Eduardo saltou numa gritaria desesperada. Era Eva. O que quereria
ela àquela hora da manhã? Eduardo percebeu que apesar do alívio por ter
encontrado Madalena, a ansiedade que o tinha feito saltar da cama em
sobressalto continuava a corroer-lhe os sentidos. Desfez-se do abraço e
afastou-se para atender.
- Eva, estás bem?
Do outro lado, a voz de Eva soou
aflita. Disléxica e confusa, pronunciava palavras soltas que não davam para
Eduardo entender exactamente o que se passava, só percebeu que tinha acontecido
algo de grave com Alexandre. Um acidente.
- Eva, diz-me onde estás. Eu vou
ter contigo.
Era impossível a Madalena não
ouvir a conversa do irmão, ainda para mais que à medida que as palavras surgiam
do outro lado da linha a inquietação emergia em todo o seu corpo. Assim, quando
Eduardo desligou, a pergunta foi inevitável.
- Eva está bem?
- Foi Alexandre, ele teve um acidente
e Eva está no hospital. Madalena, tu estás bem? Eu vou lá ter com ela.
- Eu também vou.
Era a resposta que Eduardo menos
esperava, e não sabia se aquela era uma boa ideia, mas tinha pressa e sabia que
se tentasse demover Madalena iria perder bastante tempo e provavelmente não o conseguiria.
Eva esperava-o no átrio do
serviço de urgência e sentiu um choque quando viu Madalena, mas naquele momento
tudo o que precisava era o conforto dos braços de Eduardo e, sem sequer olhar
para a colega, correu a refugiar-se no peito do homem que agora sentia como seu.
Alexandre agonizava entre a vida e a morte e ela estava preocupada, claro, mas
era de Eduardo que ela precisava. Desde o reencontro, em Coimbra, que tudo se
tornara claro no seu espírito e na sua alma. Alexandre tinha sido um grande
engano na sua vida. Nunca a respeitara e, talvez, nunca a tivesse amado mesmo.
Tudo o que queria era ascender na sua carreira política e promover o próprio
ego. Ela, sim, ela tinha-o amado. Ou pelo menos assim o pensava. Tinha sido o
único a quem havia permitido que entrasse nas profundezas do seu íntimo. Mas
Eduardo tinha entrado sem permissão. Porque não precisava. Eduardo tinha
entrada natural em todo o seu ser, Eduardo era a metade que a preenchia na sua
total plenitude.
Alguém, na recepção, procurava os
acompanhantes do doente Alexandre Coutinho e Madalena, perante o alheamento de
Eva, apresentou-se, ela, como familiar. O médico esperava-a para lhe dizer que
não havia mais nada a fazer. O coração de Alexandre ainda batia mas iria parar
a qualquer momento. E ela pediu para estar com ele uma última vez.
Madalena aproximou-se da cama
onde Alexandre soltava os últimos suspiros, tensa e sem saber o que fazer.
Agarrou-lhe a mão.
Porquê Alexandre? Porquê este
desfecho tão mais que esperado? Sempre te achaste o dono do mundo e ele
largou-te como larga todos os comuns mortais.
A linha recta no monitor cardíaco
e o barulho dos alarmes indicou que tinha chegado o fim. Eva e Eduardo
esperavam-na, ainda no átrio.
- Sinto muito, Madalena. – As
duas encararam-se como que reconhecendo um mútuo engano de que ambas tinham
sido vitimas.
No velório, quase só as figuras
do partido e mais alguns amigos e inimigos da política. E Eva com Eduardo, e
Madalena. Que nem sabia ao certo porque ali estava. Eva tinha mencionado uma
eventual suspeita de atentado, e uma investigação que tinha como alvo um tal
Rogério Estorninho dos serviços secretos do governo central. Tinha de tirar
tudo a limpo, que a última coisa que precisava era ser implicada num crime,
àquela altura dos acontecimentos.
Eva aproximou-se e Madalena
ofereceu-lhe um sorriso lacónico.
- Tivemos os destinos cruzados
logo à nascença, não é Madalena?
- Pois… quem diria que, depois de
tudo, tu e o meu irmão seriam almas gémeas. Parece que vamos ser da família,
Eva.
- Nós sempre fomos da família,
Madalena. Temos o mesmo sangue a correr nas veias.
Madalena sempre havia nutrido uma
certa desconfiança relativa à permanência da mãe em Africa mesmo depois de o
pai ter regressado a Portugal, mas nunca tinha tido coragem para esmiuçar o
assunto. Na verdade, a possibilidade quase certa de ser irmã de Eva não lhe
agradava. Aquela sonsa de nariz empinado não podia ter tudo, enquanto ela não
tinha nada. Afinal, tinham sido geradas no mesmo útero.
- Como é que sabes?
- Era ainda criança. Ouvi uma
conversa entre os meus pais… quer dizer, entre o meu pai e a esposa dele. Ela
não podia ter filhos e então concordou em aceitar-me como filha desde que tudo
ficasse em segredo.
Madalena, impávida, não mostrava
qualquer reacção.
- Porque me estás a dizer isso
agora?
- Eu e Eduardo, vamos ter um
filho…
Luísa Vaz Tavares
Gostei do "remate" final! :)
ResponderEliminarGostei do final e da oportunidade de esperânca que a "vida" resolveu dar ao Eduardo
ResponderEliminarParabéns Luisa por mais este belo conto
Excelente :) mais um conto que foi um sucesso :)
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