Libânio despia-a vagarosamente;
primeiro com os olhos, depois com as mãos, por fim, com os lábios. Entrou por
ela como um arado esgarçando a terra húmida, sentindo-lhe a pele por dentro,
suave, como um forro de cetim no vestido da sua nudez. Mas, Carlinda via coisas
fantasma nos seus olhos, e enfurecia-se com atroz frequência, rejeitando-lhe o
olhar, as mãos, o corpo. – O que foi que fizeste desta vez desgraçado? –
Libânio estremecia sem engano. – Linda, Linda, minha Linda...que tempo disponho
eu para fazer outra coisa senão trabalhar? – A sua voz acalmava os ouvidos
inquietos de Artur e Liberto nos quartos ao lado. – Linda, meu amor, mas se não
faço mais que encher chouriços, tu bem o sabes. E cada vez menos, minha
querida. Cada vez menos. – Ela não se convencia. Talvez porque o tempo junto
com o marido fosse curto, e necessitasse de lhe deitar todos os ingredientes
que compõem o amor de uma vez só, sem medir porções ou tirar prova de boca. Ou
talvez, precisamente por Carlinda tentar reter o tempo com as mãos, que ele se
lhe escapava quase por entre os dedos, como uma serpente por mãos molhadas.
Nunca evitou de ir afoita ao seu encontro. Corria sempre atrás dele de braços
estendidos, não lhe concedendo o repouso necessário, não o deixando apanhar um
pouco de sol. Acabrunhava-o de amor e depois recuava com ciúmes. Amor, amor,
depois desconfiança. Desconfiança acirrada, como se se assanhasse por algo sem
sentido. – Carlinda vivia era com medo.
Envelhecia mais por dentro do que
por fora, e a actual situação em nada ajudava. Tinha que ter sempre o tempo ao
pé de si, para lhe cantar ou contar qualquer coisa. Mas o tempo, como o amor,
deve fazer-se de calma, de paz e sossego, momentos de languidez, intercalados
com arremessos de paixão e loucuras, com carinhos infindáveis. O tempo, como o
amor, gosta de nos ver descansar vez em quando, estendidos na esteira só nossa.
Carlinda queria o marido em casa, mas os chouriços não se vendiam em casa.
Carlinda não queria perder o emprego, mas a filha do presidente escrevia à máquina
com as duas mãos. E além disso, era filha do presidente. Carlinda não escutava
as histórias do pai, como Liberto fazia, não lhes dava importância, nem lhes
fazia caso. Julgava-o já demente, estando ele tão são, e o filho, por seu
turno, um pobre de espírito sem entendimento dos males deste mundo. Era como se
a própria razão tivesse saltado uma geração inteira, e não se apercebeu ainda
do que o tempo é, nunca o compreendeu. Nem o amor, tampouco! - Carlinda era uma
tola!
No meio do caminho entre o oratório
e o fim da esperança, havia uma pedra porosa, resgatada de Paphos. Dava para
ver os seus grãos a olho nu. Chegando os olhos mais perto, raios finíssimos de
luz atravessavam a pedra. Mais perto ainda, um turbilhão, um pequeno redemoinho
se movia lá dentro, no leve corpo da pedra. Liberto saíra do quarto e fugira da
discussão para aí. Os olhos quase centenários de Arturo Zéfiro seguiam-lhe os
passos como perdigueiros, desde a janela do segundo andar. Liberto pegou na
pedra, acariciou-lhe os veios, seguiu-lhe o calor com as mãos, e arremessou-a
com raiva na direcção da janela dos pais.
Nunca o tempo nos deixou desesperados ou perdidos. - Se a algum de vós faltar tempo, que o diga, e já! – Gritou Liberto a eles virado. - Todos nós o possuímos na quantidade certa, não há que ter razões de queixa. Não precisamos de mais tempo do que o que temos, temos sempre tempo suficiente. – Liberto não era tolo nenhum, não senhor, e muito menos pobre de espírito. Ouvia com muita atenção as histórias do avô, que por sua vez o ouvia agora também, e com orgulho acrescido, sentado na escuridão do seu próprio quarto. Arturo Zéfiro ensinara-o bem a ser homem, o que apenas lamentava do cimo da sua velhice avançada, eram as dores inconstantes da sua filha, Carlinda. – Carlinda pisca os olhos ao ver a pedra no chão do quarto. Libânio avisa-a: -Tem cuidado minha querida, o tempo apanha-nos a todos. – Libânio faz uma pausa, satisfeito com as implicações filosóficas do seu dito, antes de dizer: - Mas vamos supor que o meu chouriço de pouco importa. Vamos supor que estas coisas só acontecem aos outros... – Carlinda tenta ocorrer a pegar na deixa, pelo segundo eterno que discorre do seu discurso desnudado. Mas ele não se detêm. – É tudo mentira, e tu bem o sabes. Quando eu chego, já tu começas a esquecer o pânico que sentias nos dias anteriores. – Libânio termina o raciocínio: - Esquecemos ambos o pavor que sentimos destes tempos incertos e fodemos o medo aqui na cama. Que mal pode isso ter? – Ela suspira. Libânio anota mentalmente o suspiro, com satisfação. Sabe o que ela pensa: Sou tola, e tenho medo de tudo. Ele acrescenta mentalmente: Menos de foder contigo! – Um toque leve na porta do quarto. – Vistam-se! – diz Arturo Zéfiro do outro lado. – Vistam o pijama e os chinelos para fazermos todos a autópsia do que lá fora se passa. Vocês têm um filho, por amor de Deus! – Então agora fazemos autópsias? – Responde-lhe Libânio detrás da porta fechada. Carlinda observava-o intrigada. Revelava uma extensa fieira de dentes brancos e sólidos. – Já saímos pai. Espere um pouco, sim? – Dois segundos depois abria a porta, de roupão vestido a esconder a carne incomodada. – Evidentemente, isto é um grande progresso. – Diz-lhe o pai, tentando sorrir. Tapou depois a boca com a mão. – O que foi pai? – Um filho da mãe de um dente a dar-me a justiça dos anos. – Levamo-lo ao dentista então. – Quietos seus tolos! Então não vêm aquela criança lá fora a derrapar nestas horas más? – Oh, o Liberto está nos seus dias de emergência, só isso! – Exclamou Carlinda. - Dias de emergência? Este rapaz não tem outros dias que não sejam de emergência caralho! E vocês sois cegos como morcegos se não o vêm claramente à luz do dia. – Basta apenas mandá-lo chamar. – Disse o pai do rapaz. – Estamos mais do que prontos para conversarmos, todos. – De repente, um ruído de teclado produziu no corredor um ambiente de dinamismo que se repercutiu na consciência de Artur Zéfiro. Tirou do bolso do casaco de pijama um cigarro, que esfregou entre a palma das mãos antes de o acender. Depois, preparou a frase antes de a pronunciar: Agora é que estamos mesmo fodidos a sério! Só há uma pessoa que me lembra, que toca esta música assim. Bianca!
Nunca o tempo nos deixou desesperados ou perdidos. - Se a algum de vós faltar tempo, que o diga, e já! – Gritou Liberto a eles virado. - Todos nós o possuímos na quantidade certa, não há que ter razões de queixa. Não precisamos de mais tempo do que o que temos, temos sempre tempo suficiente. – Liberto não era tolo nenhum, não senhor, e muito menos pobre de espírito. Ouvia com muita atenção as histórias do avô, que por sua vez o ouvia agora também, e com orgulho acrescido, sentado na escuridão do seu próprio quarto. Arturo Zéfiro ensinara-o bem a ser homem, o que apenas lamentava do cimo da sua velhice avançada, eram as dores inconstantes da sua filha, Carlinda. – Carlinda pisca os olhos ao ver a pedra no chão do quarto. Libânio avisa-a: -Tem cuidado minha querida, o tempo apanha-nos a todos. – Libânio faz uma pausa, satisfeito com as implicações filosóficas do seu dito, antes de dizer: - Mas vamos supor que o meu chouriço de pouco importa. Vamos supor que estas coisas só acontecem aos outros... – Carlinda tenta ocorrer a pegar na deixa, pelo segundo eterno que discorre do seu discurso desnudado. Mas ele não se detêm. – É tudo mentira, e tu bem o sabes. Quando eu chego, já tu começas a esquecer o pânico que sentias nos dias anteriores. – Libânio termina o raciocínio: - Esquecemos ambos o pavor que sentimos destes tempos incertos e fodemos o medo aqui na cama. Que mal pode isso ter? – Ela suspira. Libânio anota mentalmente o suspiro, com satisfação. Sabe o que ela pensa: Sou tola, e tenho medo de tudo. Ele acrescenta mentalmente: Menos de foder contigo! – Um toque leve na porta do quarto. – Vistam-se! – diz Arturo Zéfiro do outro lado. – Vistam o pijama e os chinelos para fazermos todos a autópsia do que lá fora se passa. Vocês têm um filho, por amor de Deus! – Então agora fazemos autópsias? – Responde-lhe Libânio detrás da porta fechada. Carlinda observava-o intrigada. Revelava uma extensa fieira de dentes brancos e sólidos. – Já saímos pai. Espere um pouco, sim? – Dois segundos depois abria a porta, de roupão vestido a esconder a carne incomodada. – Evidentemente, isto é um grande progresso. – Diz-lhe o pai, tentando sorrir. Tapou depois a boca com a mão. – O que foi pai? – Um filho da mãe de um dente a dar-me a justiça dos anos. – Levamo-lo ao dentista então. – Quietos seus tolos! Então não vêm aquela criança lá fora a derrapar nestas horas más? – Oh, o Liberto está nos seus dias de emergência, só isso! – Exclamou Carlinda. - Dias de emergência? Este rapaz não tem outros dias que não sejam de emergência caralho! E vocês sois cegos como morcegos se não o vêm claramente à luz do dia. – Basta apenas mandá-lo chamar. – Disse o pai do rapaz. – Estamos mais do que prontos para conversarmos, todos. – De repente, um ruído de teclado produziu no corredor um ambiente de dinamismo que se repercutiu na consciência de Artur Zéfiro. Tirou do bolso do casaco de pijama um cigarro, que esfregou entre a palma das mãos antes de o acender. Depois, preparou a frase antes de a pronunciar: Agora é que estamos mesmo fodidos a sério! Só há uma pessoa que me lembra, que toca esta música assim. Bianca!
Casimiro Teixeira
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