Arturo virou a carta e sentiu-se tentado a
abri-la. Nunca fora curioso, muito menos intrometido em assuntos que não lhe
dissessem respeito mas havia algo naquela carta que parecia chamá-lo.
- Não, não posso fazer isto. A carta é para
Carlinda. Mas uma voz interior falava mais alto e Arturo pegou no canivete que
sempre o acompanhara e que tinha sido prenda do seu querido tio-avô Petros e
sem hesitar mais, rasgou a parte de cima do envelope. Começou a ler a confissão
de Lucinda e as suas mãos começaram a ficar trémulas. Uns minutos depois,
Liberto apareceu saltitando, com Rimbaud atrás e só viu o avô estendido no
chão, com a mão no peito.
- Avô, avô…fala comigo! – gritou aflito o menino.
Rimbaud viu na mão do patriarca a carta e num instinto animalesco, arrancou as
folhas e começou a mordê-las com uma vontade que parecia demonstrar que aquele
cãozito sabia o mal que continham aquelas linhas escritas no meio de uma crise
de ciúmes. Rasgou, mordeu, puxou e as folhas começaram a desfazer-se. A letra
simples de Lucinda começou a esvoaçar imitando o papagaio vermelho e os
pedacinhos de papel subiram, subiram e ganharam altitude, semeando o drama no
jardim de Arturo.
- Avô fala comigo… - chorava Liberto, sem saber o
que fazer. Onde estarão os meus pais?
- Tu fizeste o quê? – vociferou Libânio,
esbofeteando Lucinda na cara, com um ódio que ela nunca tinha visto. – Como te
atreveste a fazer tal coisa?
- Tu nunca mais tomavas uma atitude. Estou
cansada de esperar, Libânio – gemeu Lucinda agarrada à cara que ainda doía.
- Tu não tinhas esse direito. Eu disse-te que ia
sair de casa, que estava para breve, mal voltasse à terra, ia arrumar as minhas
coisas e não punha mais lá os pés. Mas não era preciso a Carlinda saber de
tudo. Ela pode não ser a mulher que desejei mas não merecia tal sofrimento! Não
tinhas esse direito – gritou mais uma vez Libânio, pronto a esbofetear Lucinda
novamente.
Nesse momento, uma voz frágil e inocente fez-se
ouvir na porta do quarto.
- Papá, porque estás “ xangado” ?– choramingou de
forma quase imperceptível Aurora, com um ar assustado, uma linda menina
loirinha de dois anos.
As horas passaram depressa naquele jardim, à
beira-alma plantado. O mundo parecia ter-se tornado apenas de Carlinda e Rafael
mas as horas e o entardecer deixavam adivinhar que o mundo depressa voltaria a
ter mais nomes.
- E agora Rafael, que faço eu? –perguntou
Carlinda, suplicando por uma frase que a ajudasse a resolver a tempestuosa
indecisão que ia dentro do seu coração. Carlinda não queria separar-se daquele ser
que lhe trouxe uma luz que desconhecia até então.
Nada se tinha passado entre eles até aquele
momento, a não ser um encostar de ombro, terno e tranquilo e um ouvir de ambas
as partes que tinha dado aquele momento de partilha, um sentido de
confessionário e intimidade que Carlinda jamais pensara ter na vida. E agora de
repente, de um momento para o outro via-se a revelar também o seu rosário, em
contas agrestes de mágoas e ilusões.
- Não quero que vás, respondeu Rafael de lágrimas
nos olhos. Para ele, que sempre tinha sido um homem altivo, de poucas falas, um
pouco duro até, devido ao ambiente em que crescera, toda aquela comunhão de
sentimentos e o toque da mão daquela mulher, tinham-no deixado mais frágil.
- Mas e o meu filho, o meu pai? Como posso eu não
voltar? – perguntou Carlinda em voz alta mas falando com a sua própria
consciência.
- Terás de voltar, ambos sabemos. Mas não já, não
agora –afirmou de forma decidida Rafael, levantando-se e pegando nas mãos da
sua salvadora. - Há uma coisa que não te contei, eu não estava a pescar.
Desculpa, se te menti, foi por vergonha de mim mesmo.
- Então que fazias ali?
-Eu tinha decidido terminar com a minha vida.
Agora que já sabes grande parte da história da minha vida, talvez percebas
porque tenha decidido pôr um fim aos meus dias de solidão. Assim, naquele dia,
eu estava quase pronto a deixar-me cair mas algo me fez arrepender, no último
segundo. Mas escorreguei e o destino
quis que fosse parar aquelas rochas. Mas afinal não foi uma tragédia, foi um
presente que os Céus me ofereceram. – E
dito isto, Rafael ri-se. Soa tão estranho eu dizer isto, nunca fui romântico,
muito menos poético.
E ri-se de
novo, escondendo a cara no ombro de Carlinda.
Carlinda toma a cara de Rafael nas suas mãos e
num despertar instintivo, dá-lhe um beijo. Desta vez é ela que se ri, com um
riso límpido, livre e sonoro. – E eu nunca tinha beijado ninguém. Sempre
esperei que os lábios do outro viessem ao meu encontro. Este é o meu primeiro
beijo – e cora, baixando a cabeça.
Ao longe uma música começa a tocar. Não se
percebe de onde vem, mas tem uma sonoridade quente, com um ritmo vibrante, soa
a acordes latinos e a paixão.
- Queres dançar? - pergunta Rafael.
- Mas eu não sei…- responde envergonhada
Carlinda.
- Eu também não – ri-se novamente Rafael,
começando a pegar na mão de Carlinda e avançando para a frente, sem saberem
nada do que estavam a fazer mas com um brilho no olhar que ambos estavam a
saborear.
Um grupo de jovens parou a olhar para aquele
casal inusitado a dançar assim no meio do jardim, e começou-os a gozar, daquela
forma tosca e brusca tão característica dos jovens a descobrir ainda a união
dos sexos.
- Não ligues, eles vão saber daqui a uns anos
como é boa esta sensação – E dito isto, Rafael beijou Carlinda mas desta vez,
não foi um beijo simples, foi um beijo longo, tão longo quanto os dias em que
ambos tinham esperado um pelo outro.
-Humm- gemeu Carlinda. – O que foi? – perguntou
Rafael.
- Não sei, senti um aperto no peito, e nesse
instante veio-me à ideia o meu pai. Será isto um sinal, Rafael? Será que devo
voltar já?
Nesse instante, a música mudou de tom, e as notas
de um fado começaram a percorrer os céus. Era um fado que falava de traição,
abandono e partida. Carlinda agarrou-se a Rafael e um medo súbito percorreu-lhe
a alma.
- Avô, avô fala comigo -continuava a suplicar
Liberto. Rimbaud latiu, como se quisesse alertar Liberto que era necessário
fazer alguma coisa.
- Rimbaud, fica aqui com o Avô. Eu vou chamar o
Dr. Luisinho –e dito isto, Liberto sai disparado a correr, pelo meio dos
pedaços da carta de Lucinda que continuavam a esvoaçar ao vento.
Carolina Lemos
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