Numa nebulosa
que se adensava em sentimentos díspares, as sombras de fim de tarde
alongavam-se pesadamente negras em ocaso de conjunturas. Manchas anil, fogo e púrpura,
descaíam do céu absorvidas pela terra que as ia exalando, lentamente, em
minguantes de luminosidades que se transformavam em formas melancolicamente
escuras e tristes.
Até o banco
vermelho, descascando tinta, projetava sombras fantasmagóricas que deslizavam
sobre a relva já madura de entardecer.
Rafaelo,
absorto em libidinosos pensamentos, já não meditava no filho que não era seu
filho, nem em Mariana que tinha sido mulher em dias por inteiro, mas apenas em
Carlinda mulher inteira por um dia.
Arturo, irremediavelmente
defunto, era ainda mais sucumbido pelos prantos de Carlinda e Liberto que,
entretanto, tinha despachado o Dr. Luisinho ao ouvir os gritos lastimosos da
mãe.
Rimbaud,
voltando à cena da incontinência lacrimosa, uivava em desgostos de memória
canina transformando o ocaso, em caso ainda mais crepuscular.
A umas
centenas de quilómetros, Libânio repelia a filha que se lhe agarrava aos
joelhos, descarregando na mãe o peso do adultério que não era pretensão sua dar
a conhecer.
Toda a incomensurável
enormidade de atos e situações se conjugava e convergia para o final infeliz
que se fazia anunciar nos últimos capítulos.
Chipre não
tinha culpa, nem o Mediterrâneo Oriental, nem Nicósia que desconhecia
liminarmente o que se passava em Paphos. Apenas quem escrevia esta história era
o vero responsável pelos acontecimentos passados e os vindouros.
Exceptuando
(coloquei um p antes do t e o computador deu erro! Maldito acordo ortográfico
que nos retirou a individualidade e a dignidade linguística!) os chouriços e
alheiras (estas últimas que presumo terem sido os cipriotas, em agradecida
homenagem aos judeus portugueses, a fabricá-las, ou se teria sido Libânio que,
nas suas saídas libertinas de oferta de enchido, tivesse passado por
Trás-os-Montes), tudo se mantinha incongruente e sinistro, tal e qual uma
Troika em dissidência declarada com o FMI.
O Dr.
Luisinho, qual ministro da economia, já tinha arranjado solução economicamente
arrastada mas, a seu ver, viável para sepultar Arturo Zéfiro.
O Padre de Paphos, que dormitava
beatificamente antes de a sobrinha lhe servir o jantar, foi puxado pelo médico
para ministrar uma Extrema-Unção, já para além dos extremos da compreensão.
A umas
centenas de quilómetros e ainda empolado numa discussão com Lucinda, o
telemóvel de Libânio vibrou:
- O meu pai
faleceu! Que pena não teres sido tu em vez dele! – e a voz que ele tão bem
conhecia suprimiu-o imediatamente da linha.
E como uma
desgraça nunca vem só, a filha Aurora, que teimava em sentar-se nos seus
joelhos, embora com dois anos e sem usar fraldas sem a devida contenção,
urinou-o despreocupadamente em infantil sorriso. E Lucinda, já farta da
logorreia do amante, despejou-lhe a jarra com hortênsias azuis pela cabeça abaixo.
Inundado na
sua integridade de homem, sacudiu-se com petulância e abalou porta fora rumo à
carrinha dos enchidos, enfunado de orgulho ferido, mas pensando interiormente
se o velho teria deixado algo em testamento.
Deixando
Libânio em águas mornas, outra questão assaz importante e que não poderia ser
descurada, dizia respeito a Rafael:
- Por que
motivo não tinha falado a Carlinda do pseudo filho?
Autêntica
trama de telenovela se, e digo se, a polícia não andasse de olho em Rafael por
suspeita de pedofilia. Aliás, outras suspeições circulavam relativamente a
Mariana e à sua morte, havendo vizinhos que afirmavam peremptoriamente (outra
vez o raio do p foi recusado pelo corrector, agora o c, também foi desprezado
pelo acordo ortográfico, à revelia instalado neste computador) que ela se tinha
suicidado devido à constante perseguição que o padrasto movia a Álvaro. Pois
Rafael, de olhos de mel, havia casado, após divórcio litigioso, com Mariana.
Sentindo-se acossado pela polícia e, mais tarde ou mais cedo, desmascarado, tentou
o suicídio como já foi lido em capítulo anterior.
Mas voltemos
a Paphos na precisa altura em que Libânio chega ao volante da carrinha de
enchidos, cheio de presunção e aparente aflição, mas com o veículo já vazio de
gasóleo devido à velocidade que imprimira na viagem.
- Linda,
Linda, que grande desgraça! E eu que gostava tanto do meu sogro, não havia
ninguém que se comparasse a ele a contar histórias! – e tentava lacrimejar sem
que uma única gota de orvalho em plena noite assomasse aos seu olhos.
Mulher e
filho olharam-no de alto a baixo, sem lhe mostrarem um dente ou simularem um
abraço. Voltaram-lhe as costas ostensivamente e o silêncio caiu com o
estrondear do desprezo. Até a Senhora dos Ventos, em milagre não presenciado,
lhe voltou as costas de madeira esculpidas por Pétros.
O funeral
constituiu um acontecimento não presenciado há muito tempo, com toda a
população habitante de Paphos e alguns emigrantes, em cortejo sentido e carpido,
de presidente de junta de freguesia à frente. Até o arcebispo Macário, se fosse
vivo naquela altura, gostaria de presenciar tão sentido préstito.
A acompanhar
o avô e amigo de eleição, Liberto transportava o papagaio de papel vermelho
suspirando para que uma rabanada de vento o elevasse cruzando os céus e
acompanhasse na sua ascensão a alma de Arturo. Este, durante toda a sua longa
vida tinha rido, vivido, amado, nostalgicamente sonhado e agora, apenas como
uma vela que se sopra, tinha-se apagado…
Rafael, de
óculos escuros e semi escondido por um cipreste, acenava um último adeus
agitando na mão as cuecas de Carlinda.
Quando a urna
descia à terra, uns acordes de piano, inicialmente muito ténues mas que foram
aumentando em crescendo, fizeram-se ouvir. Um dedilhado suave como brisa de
verão, soltava notas como folhas desprendidas de árvores que volteavam,
enlaçavam os sentidos, até esquecerem a força da gravidade que, suavemente
exercida, as fazia pousar delicadamente no chão argiloso e poeirento do
cemitério.
Bianca, em espírito, tocava um Nocturno em ré
bemol de Chopin. Todos ouviram e nunca ninguém soube explicar a origem da
melodia. Mentes mais supersticiosas atribuíram o facto a um milagre da Senhora
dos Ventos.
Após as
cerimónias fúnebres, na branca “vivenda italiana”, de mãos dadas e lágrimas que
ritmadamente caíam em sintonia no chão de madeira carcomida, Carlinda e Liberto
abriam o móvel indiano em madeira de sândalo, no qual Arturo nunca deixara
tocar. Na gaveta, por entre fotografias a preto e branco que quase se desfaziam
no pó em que se tinham transformado, apareciam Yannis, Bianca, Chiara, Pétros e
Maria, figurando também o recém-falecido. O pai deste e o marido daquela
incognitamente tinham desaparecido deste baú de recordações.
No fundo da
gaveta, bem escondida, encontrava-se uma velha sacola de trazer à tiracolo, em
couro já roído e usado pelo tempo com uma etiqueta onde se lia “Made in China”.
Abriram um
pequeno fecho rotativo em latão.
Sentiram no
seu interior um papel espesso enrolado como antigo pergaminho.
Retiraram-no.
Desenrolaram-no
e leram: -…
Fernando Magalhães
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