Tenebrosa ironia aquela que
ditara que o fim da vida de Arturo fosse originado pela iminente chegada da sua
neta…
Nisto meditava Carlinda junto à
Nossa Senhora dos Ventos enquanto acariciava os caracóis dourados de Liberto,
aconchegado no seu colo, soluçante e desencantado com o rumo que aquele dia
tomara e que influenciaria o resto da sua existência…
Absorta em seus pensamentos, nem
ouviu o chamamento:
- Ó da casa! Ó da casa! – E
alguns segundos mais tarde - Então queres ver que não está ninguém?!
- Quem vem lá? – Respondeu por
fim. – Hoje não é um bom dia para visitas…
- Pois seja, mas venho de longe e
não posso voltar bem como preciso de lhe contar uma história…
- Não perca tempo que eu já sei
tudo…
- Sabe?! E não se importa?
- Que posso eu fazer e de que
adianta importar-me? Nada posso mudar e já não tenho forças…
- Não a choca o assassinato?!
- A morte foi natural, foi a
aflição… Se tivesse que culpar alguém, culpá-la-ia a si!
- A mim? Homessa!
- Pois claro, acabava de ler a sua
carta…
- Do que é que está a falar? Eu
era vizinha da mãe da Mariana, que Deus as tenha em eterno descanso, e venho
avisá-la em relação ao Rafael, esse assassino, que não descansou enquanto não
acabou com a vida da Marianinha, moça mais bonita e mais prendada da aldeia!
Podia ter tido quem ela quisesse mas tomou-se de amores por aquele bandido, que
foi a morte dela! E não há-de descansar enquanto não desgraçar a vida do
Alvinho, coitadinho…
- Mariana? Alvinho? Não conheço
ninguém com esses nomes! O que é que o Rafael tem a ver com eles? Pois se nem
tem família…
- Não tem família? Foi isso que
ele lhe disse? Em parte até tem razão, matou a mulher e o filho não o quer ver
nem pintado!
- Não estou a perceber e estou
muito cansada… O meu filho viu o avô morrer e adormeceu há pouco nos meus
braços, tenho preparativos para fazer, tenho que resolver a minha própria vida
e não tenho tempo para mexericos. A vida alheia não me diz respeito, por favor
terei que pedir que se retire.
- Olhe, eu vou à vila e de tarde
volto para falarmos, pois pelo que ouvi trata-se da sua vida e se esse menino é
seu filho, deve ouvir o que tenho para lhe dizer.
Entretanto Libânio, que estivera
ao telefone a tratar dos preparativos iniciais para o funeral e ouvira a última
parte, intervém:
- Que história é essa? Se diz
respeito ao Liberto quero ouvir do que se trata!
D. Cidália, que se preparava para
ir embora face ao fraco acolhimento de Carlinda, ganha novo alento:
- Sábias palavras, senhor…?
- Libânio, responsável comercial pela secção
de enchidos da maior empresa do sector, ao seu serviço! E tenho o prazer de
estar a falar com…?
- Sou a D. Cidália, vizinha da
família da Mariana, em Baião!
- E quem seria a Mariana?
- Então a Mariana é a falecida
mulher do Rafael, a mãe do Álvaro, pois claro! A sua senhora bem sabe de quem
falo, é do amiguinho dela, só pensei que andasse enganada e não soubesse como é
a peça, mas pelo descaso que faz quanto à segurança do filho, bem vejo que deve
ser tudo farinha do mesmo saco!
- O Rafael foi alguém que
encontrei quase desfalecido junto ao mar e cuja recuperação acompanhei, dado
sentir que o devia fazer. Tornamo-nos bons amigos mas pelo que sei não tem
família, pois foi o que me disse. Mais nada tenho a acrescentar, vou colocar
esta pobre criança na cama, pois hoje já passou por demasiadas provações. Se
quiserem ficar a falar, estejam à vontade, mas eu irei para casa, chorar a
morte do meu pai. – Dito isto, Carlinda retirou-se.
Em casa, após deitar Liberto,
prostrou-se a olhar para o retrato do pai, quando sentiu uma presença a seu
lado, junto ao piano. Ouviu-se uma bela melodia, tocada por uma jovem de
cabelos acobreados, que reconheceu como sendo a sua tia Bianca. Esta disse-lhe:
- O teu pai está bem Carlinda,
era tempo de nos reunirmos, tinha vindo avisá-lo disso e ele estava a contar.
Vive a tua vida sem medo, rompe laços se te asfixiam, cria novos que te
permitam crescer e ser o que não foste até hoje por medo de convenções. Sempre
to quis dizer mas creio que só agora estás preparada para o ouvir. Fica bem
pequena.
Inexplicavelmente, Carlinda
sentiu-se leve após este encontro, e mesmo a tristeza que antes a oprimia
estava agora mitigada.
Resolveu ir até ao mar, para
pensar um pouco. A caminho viu mais uma forasteira no trajecto para sua casa.
Intuiu ser Lucinda Maria, e chamou:
- Lucinda?
- Sim, como sabe?
- Sou a Carlinda, presumo que
vinha falar comigo.
- Vinha sim.
- Acompanhe-me até à praia e
falamos lá, pode ser?
Caminharam um pouco, e sentadas
sobre as rochas, começaram a falar:
- Soube hoje mesmo que tu
existias, bem como a tua mãe, a tua avó e a tua filha! Sou tua tia-avó e tenho
um filho pouco mais velho do que a tua Aurora, pois nasceu tarde. Tem sete anos
e chama-se Liberto.
- Eu sei, o Libânio falou-me
dele, bem como de ti, embora ache, ao ver-te aqui, agora, que não te fez jus.
Descreveu-te como sendo desengraçada, desapaixonada, dependente e até um pouco
tola, mas a mulher que vejo a minha frente parece-me forte, inteligente,
determinada e muito bonita. Tenho pena de dizer que o que me traz cá implica o
colapso da tua família, pois pretendo conferir alguma solidez à minha própria
família. A Aurora tem dois anos e acha que um pai não vive normalmente com a
mãe, aparece e dá dinheiro, ficando só um ou dois dias de cada vez, e não é
essa a concepção de família que quero que retenha. Por outro lado para ti ele
não tem sido um marido leal, e sendo assim, creio que seria melhor para ambas
se ele assumisse a nossa família, apesar do mal que isso possa provocar-vos.
Compreendes o meu ponto de vista?
- Ontem dir-te-ia que não, hoje
digo-te que não sei. Estou a viver um dia surreal, sei apenas que quero mais do
que tive até hoje, e tenho pena que para o ter deixe de contar com um dos
pilares da minha vida…
- O Libânio?
- Não querida, o teu avô Arturo,
que faleceu…
- Faleceu? Queria tanto vê-lo,
falar-lhe… Contar sobre a minha mãe, mas sobretudo sobre a minha avó, que nunca
o esqueceu…
- Talvez o possas fazer, na nossa
família existem muitas surpresas, presenças que surgem quando mais precisamos…
Hoje vi a tia Bianca, talvez tu possas ver o avô Arturo, o futuro o dirá….
E assim regressaram a casa, onde
Libânio se despedia já da D. Cidália. Ao vê-las juntas em ameno diálogo,
Libânio ficou lívido, mas Carlinda rapidamente o sossegou:
- Não te aflijas e morras tu
também, basta um funeral por cada motivo!
- O quê, tu sabes?
- Sei da tua outra família sim, e
sei que foi por ler essa carta que o meu pai morreu, com grande pesar meu.
Preferia tê-lo sabido antes e tê-lo poupado a essa preocupação, vai fazer-me
tanta falta! Quanto a nós, interiormente já sabia que algo se passava e se
queres saber acho que já há muito deveríamos ter seguido caminhos diferentes.
Curiosamente se mo perguntasses ontem não o teria sabido dizer… como pode um
dia mudar tanta coisa?! Falaste com o mercado para entregarem as flores? A
igreja está pronta para o meu pai?
- Querida Carlinda, já o
enterramos, não te lembras? Foi no ano passado, uma homenagem linda, cheia de
gente…
E para a enfermeira:
- Coitadinha, foi um choque muito
grande para ela, eram muito apegados… Ainda bem que está aqui convosco, para a
cuidar e animar, bem como aos restantes pacientes.
O Rafael tem sido tão importante
para ela, dão-se mesmo bem…! Como tem estado ele? Tem tido episódios
esquizofrénicos?
Bem, está na hora, tenho que ir,
a Lucinda e os miúdos esperam-me, terminei hoje a rota comercial de Trás-os-Montes
e Alto Douro, Minho e Douro Litoral mas quis passar aqui antes de ir para casa,
para ver como estava. Até para a semana!
- Fica bem querida, para a semana
trago cá o Liberto para te ver, está bem?
Elisabete Gonçalves
Ufa! Que grande maratona de leitura que fiz agora. Acho que estão todos de parabéns! Gostei bastante.
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