Entretanto,
no outro lado do Mundo, numa pesquisa frenética de sala de operações,
analisavam-se ficheiros, links, ‘spams’, imagens e tudo quando pudesse ser útil
para encontrar a password dos ficheiros encriptados. A expectativa pairava
ansiosa naquele sótão da Rua dos Contrabandistas nº 10 da Freguesia dos
Prazeres, em Lisboa. O Colaço, debruçado sobre a bancada e quase entrado pelo
monitor adentro, varria os ficheiros batendo sem piedade as PgUp e PgDn com uma
agressividade de militar.
Rara oportunidade
esta busca online no laptop dela, era de aproveitar e, embora a seis mil
quilómetros de distância, era ali, na ponta do dedo transpirado que podia estar
a magia de entrar no mundo da investigação jornalística e das suas fontes
ocultas.
A chuva
crepitava na vidraça com uma fúria cadenciada de rajada, enquanto ele empurrava
nervosamente as armações dos óculos grossos contra a testa enrugada e batia as
teclas. Estava a ficar sem cigarros, precisava descer aqueles noventa e cinco
degraus até à loja da esquina, o cubículo adensava-se de fumo e a noite
aproximava-se temerosa. Nada… tinha um dead line e, nada… não tinha encontrado
a password que abria os apontamentos da Patrícia e Giuseppe não aceitaria mais
falhas. Talvez com scroll lock utilizando o seu aplicativo velhinho que
destrancava os jogos todos. Foda-se! Já não tenho idade para estas merdas!
Estava um
velho o Colaço, um caco, tinha sido um bom técnico de comunicações da Marinha;
morava mesmo ali, na Rua da Correnteza de Baixo e estava “destacado” no
Tribunal Marítimo de Lisboa numa eterna comissão de serviço imposta. Imposta
porque presa às suas capacidades incomuns de detectar letras e algarismos fora
do lugar e deles ler coisas importantes. Presa, porque o Colaço, não existia,
como pessoa. Eternamente.
Medalhado
por relevantes serviços à Pátria várias vezes, tinha passado à disponibilidade
como Sargento-Mor e, por falta de solicitação e utilidade, dedicara-se à
informática e, daí a um ramo mais específico da informática, a pirataria, e daí,
levou com dois balázios, esteve quase morto, foi preso ainda nos cuidados
intensivos do São Francisco Xavier, julgado na enfermaria, pensava ele, e
remetido para o Hospital da Marinha em absoluto sigilo. Fora dado como morto.
O Correio da
Manhã anunciara em parangonas que “Um sargento da Armada, ex-operador cripto no
Ultramar, agora colaborante dum grupo de terroristas internacionais fora
apanhado e morto esta manhã na posse de material informático comprometedor” o
Diário de Notícias informava que “um sargento da Marinha Portuguesa baleado
ontem no Restelo desaparecera misteriosamente dos cuidados intensivos do
Hospital São Francisco Xavier, não se sabendo como, nem o seu paradeiro”, nas
televisões, após as aberturas estridentes sobre o último jogo Sporting-Benfica
onde se presumia o favorecimento deste por um trio de arbitragem onde o quarto árbitro
- bem, não interessa - “Faleceu esta manhã o S-Mor Joaquim Colaço de Albuquerque,
herói do Ultramar condecorado no último 10 de Junho com a Medalha de Serviços
Distintos grau bronze, em resultado de ferimentos provocados por dois tiros
desfechados à queima-roupa por dois indivíduos e…” - enfim, não se sabia nada…
De modo que,
‘O Colaço’, como era conhecido na Unidade, morrera.
Daniel
Albuquerque estacionara com todo o cuidado o seu jaguar XF na curva do Mónaco e,
presciente, ligou o número do seu irmão de leite. Atenderia sim, tinha a
certeza…
Conduzira
desde Sintra com um mau pressentimento, mas enfim, o Dantas queria o jantar
naquele dia e, porque não? Não podia dizer que não a quem tanto tinha ajudado o
Vasco e, principalmente o Duarte, o seu predilecto. Mas o Dantas, desde que se
ligara aquela malta do SIEDM tinha ficado estranho, menos comunicativo, menos
cordial, menos afectivo até; um dia disparara-lhe com esta desfaçatez, “Daniel,
eu sou pago para ser curioso, mas não me faças perguntas! Ouviste?”, não se
faz; tantos favores lhe devia e…
- Está?
Joaquim?
- Quem fala!?
- Ó pá! É o
Daniel!... há quantos anos!... que é feito? Não de vejo desde que morreste…
- Hã… Olá
Daniel. Como soubeste este número?
- Ó pá, eu
sou pago para ser curioso, mas não me faças perguntas, eh eh eh… tomamos uma
bica ou estás ocupado?
- Pois… Olha…
Estou a acabar um trabalho e… Não sei. Talvez depois…
- Ó pá,
ainda andas metido naquela coisa… Como é?... Esteganografia?
- Hum… quem
te diz essas coisas? Isso é tudo mentira…
- Isso é o
que te parece! Ouve só isto; vou-te ler “Solicitado amiúde para trabalhos
específicos, uma vez que não tem equipamento, junta-se habitualmente a um grupo
de rapazolas que se dedicam às cópias de filmes e jogos mesmo na rua ao lado da
sua casa e perto do seu emprego cárcere”…
- Daniel…
- E mais;
diz quem sabe que o teu último entretém para “umas determinadas pessoas” é
exactamente aquilo, como é? Es-te-ga-no-gra-fia… mas que raio é isso Quim?
- Daniel…
- Diz lá!
- Como vão
os meninos?...
- Olha Quim,
também é para os ajudar, não te incomodaria por coisa pouca. Vou aí ter contigo
agora e não me demoro. Está em casa?
- Estou a
chegar, mas agora estou ocupadíssimo com um trabalho que…
- OK, daqui
a quinze minutos estou aí e até te levo aquela fotografia que tanto me pediste
e…
- Daniel…
- Até já!
Daniel e
Joaquim nunca se tinham dado bem. Da mesma exacta idade, criados juntos na
quinta de Colares até completarem a escola primária, foram separados cada qual
para o seu mundo aos nove anos. Filho de patroa não vive com filho de criada;
para mais bastardo. Deram-lhe o nome (a terminação, como lhe chama Colaço),
cumpriram o dever mas, humilhações não. O catraio foi para Lisboa viver com a
avó e a empregada, enquanto manteve o viço, ficou.
Encontraram-se
no serviço militar, já colocados em Luanda. Joaquim na Marinha, como operador
de comunicações, Daniel na Força Aérea, como controlador de tráfego aéreo. Foram
falando em ondas curtas durantes as comissões, mas, de feitios antípodas
encaravam-se com um amor-ódio alimentado pela exuberância dum e a competência
do outro.
Já na
Metrópole, em jeito de “angústia para o jantar” encontravam-se com alguma
periodicidade fingindo afectos e argumentando as suas vidas. Joaquim
mantivera-se solteiro, Daniel casara com a Beatriz, “a flor de Sá da Bandeira”,
e tinham dois filhos que gostavam muito do tio Colaço.
Joaquim
nunca perdoara ao Daniel ter-lhe roubado o amor da sua vida, e tinha sido ela,
e só ela, que o mantivera vivo quando fora baleado. Só ela.
- Olá
Joaquim! Está escuro aqui pá, quando mudas de casa? Sempre a mesma cave! Estás fino?
Pega lá a foto. Já nem te lembras de ti assim hã?… em que ano foi?
- Olá
Daniel… nem sei bem… só sei que me dá ecos de África. Então que te traz por cá?
- Olha, um
amigo, bem, não te posso dizer quem é, tem um cliente que se esqueceu duma password
e… bem, vê lá se descobres alguma relação com essas letras que o tipo está
mesmo enrascado. És capaz, ou não?
- Não sei
Daniel… isso não funciona assim, sabes, temos que ter uma relação, saber alguma
coisa sobre o que motiva a pessoa, quem é e com quem se relaciona, algum hobby,
sabes…
- Ó; lá está
tu! Não compliques, aponta aí, “CHIAWITSWEL”.
- Daniel…
- Escreve lá
essa porra homem. Posso dizer-te que a pessoa conhece Angola como nós e tem
negócios no Namibe.
- Em Sá da
Bandeira?
- Sim pá, na
terra da Beatriz. Vá; quando chegares a uma conclusão apita. Mas não demores
hã? Olha que parece ser um caso de vida ou de morte! Precisas de alguma coisa?
- Não… Vou
tentar… Talvez com a Cifra de César ou com a Tabela de Vigenère… Não sei, um
Quebra Cifras, talvez…
- Amanhã
telefono-te. Talvez possamos beber uma bica. Resolve isso! Ouviste?
José Bessa
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