Foi escasso o êxtase do momento de
aparente alegria e divertimento. Um profundo e transtornante silêncio veio
sentar-se entre ambos, instalando-se para ficar. Um e outro procuravam quebrar
o súbito emudecimento, mas nada que parecesse oportuno lhes ocorria. O
mal-estar densificava-se, tornando o silêncio ainda mais carregado.
Incomodado, sem saber o que dizer, ou o que
fazer, Chêta (nomeemo-lo assim, por enquanto)
observava o enfezado gato, mais ávido de carinho do que de alimentos. Acariciou-o
levemente, temeroso de poder magoá-lo, tão magro ele estava, deixando transparecer,
ainda que por ínfimos momentos, uma inconfundível doçura no olhar que não
passou despercebida.
- Estou a ver que gosta de gatos -
murmurou o outro, numa tentativa de abertura ao diálogo.
E continuou, sem esperar
resposta.
- Chamo-me Marcelo. Nasci aqui no
Brasil, em Natal, mas já vivo em Canguaretama há vinte anos.
- Canguaretama ???!!!! - Questionou
Chêta num misto de espanto e
preocupação, pois nada lhe fluía ao ouvir aquele nome.
- Sim, Canguaretama. É onde eu
vivo, onde nós estamos... – Respondeu, algo irritado. - Não vai agora dizer-me
também que não sabe onde se encontra!
- Não, não sei. Não sei onde
estou, não sei quem sou, não sei como aqui vim parar - disse, o olhar vago e
distante como se quisesse vislumbrar algo que o pudesse esclarecer.
A angústia apoderava-se dele,
agora que começava a tomar consciência do absurdo da situação. Passou os dedos
lentos nos cabelos e levou-os atrás, numa tentativa de libertação de ideias.
Sentia-se vazio, completamente vazio de memórias. Não tinha qualquer dúvida e muito
menos qualquer certeza. Era “ninguém”, apenas um corpo e carne em busca de
respostas, junto de um desconhecido, e conforto, num gato enfezado.
- Disse que era de onde, Marcelo?
- Perguntou, num sutil esforço em manter a conversa.
- Sou brasileiro, filho de pai
português e mãe brasileira. Nasci em Natal e vim para Canguaretama em busca de
melhores oportunidades de vida. É uma longa história, se me quiser ouvir.
Mas já Chêta não ouvira as últimas
palavras. Natal, Natal. Porque lhe era aquele nome tão familiar? Natal, Natal…
e um turbilhão de ideias, nomes, rostos, locais, acontecimentos irromperam a
uma velocidade louca na sua mente. É claro, Natal, a cidade pela qual ele tinha
trocado Colares… o seu irmão mais velho, Vasco, a mãe e a sua tristeza ao vê-lo
partir… o Dom Café e Giuseppe, ostentando as suas tatuagens… Duarte, chamava-se
Duarte… Patrícia, nos seus longos cabelos negros, transbordando sensualidade
nos gestos, no andar, na voz quente que de imediato o seduzira… e Eliana. Como pudera
ele ter esquecido Eliana?
E os olhos adocicaram-se perante
a imagem afetuosa da menina.
Alheio a tais pensamentos, o gato
aproximou-se dele, no seu roçar do dorso, e contemplou-o com um olhar pesaroso,
mendigando a carícia esquecida e abandonada. Duarte estremeceu ao corte do
pensamento e, num gesto rápido e brusco, levantou-se, aturdido e confuso,
causando espanto no companheiro que continuava a sua história, persuadido do
interesse que esta estava a suscitar no hipotético ouvinte.
- Então, homem, que lhe
aconteceu. Não me diga que além de esquecido também sofre de tiques nervosos! -
Disse num tom jocoso e aparentemente amigável.
Duarte olhou-o indiferente e
distante. Não era momento para brincadeiras. Muito menos vindas de um estranho.
Olhou-o de alto a baixo, como se o quisesse radiografar.
Parou à imagem da barriga que se evidenciava.
E estremeceu novamente. Afigurava-se-lhe a figura imponente, de mau aspeto,
barriguda e estranha que lhe surgira ao primeiro pensamento do acordar de um
não sei o quê. Continuava sem perceber como viera ali parar e aquele homem
parecia-lhe, agora, alguém suspeito e perigoso.
- Ó homem, mas que raio lhe
aconteceu? - Insistia Marcelo, irritado com o seu silêncio.
Duarte forçou a imaginação,
tentando encontrar uma resposta que não levantasse suspeitas.
Fernanda Cadilha
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