24/10/13

Cidade das Dunas - Capítulo XI

É a desordem natural das coisas. Durante os anos em que morou na casa familiar, Duarte viu o pai a alinhar cartas na mesinha de jogo, num compartimento onde o ar estagnava nos reposteiros. Cego para tudo que não fosse o cão, o baralho e o filho mais velho, Vasco.
Nunca se esquecera das faias que tossiam ao vento do outro lado daquela janela escura, ou do cheiro da loção do seu cabelo, nas costas da cadeira.

 
 
No mês em que assorearam o rio, afastou-se definitivamente daquele lugar de memórias esquecidas de si. Três dias depois, o pai morria, estendido na mesa do jogo em cima de uma paciência inacabada. É a estranheza natural das emoções.
Vasco atirou a cancela do portão da rua, que saltou nos gonzos e só à noite, quando o choro das mulheres se desatou numa valsa de piano é que se lembrou do cão.
O bicho recusou a alimentar-se, e pouco tardou até que Vasco passeasse uma trela sem nada, detendo-se a cada passo como se transportasse um animal verdadeiro.
Só depois é que se lembrou do esquecimento do irmão.
Na manhã seguinte, sem vento, que reluzia de um Sol inclemente, depois de uma noite a despejar os intestinos, aos arrancos, tonto de vómitos, numa casa de banho arcaica com uma infantaria de formigas a marchar nos azulejos, é que se deu conta de tudo.
-     Senhor – questionava-lhe uma voz pequena nas suas costas, - senhor – continuava esta - tio? – Tocou-lhe ao de leve no cotovelo. – Está bem?
Ao seu lado estava uma menina vestida à marinheiro, como um macaco de realejo. Os seus olhos eram de órbitas azuis alemãs, mas fora isso, a garota, apertada na sua farda de carnaval era toda ela um dueto perfeito com a memória que ele tinha do irmão.
-       Não incomodes o tio, que ele se está sentindo mal?
-       Onde é que eu estou?
-       Está tudo bem. – Assegura-lhe Patrícia. – Estamos na casa da minha irmã.
-       O Giuseppe...
-       Não faz ideia onde estamos – interrompeu-o – A Eliana está a salvo.
-       Não sei o que se passa comigo. Tenho de..
-       Vasco.
-       Deve ter sido desta comida, não estou habituado..
-       Vasco tenho uma coisa muito importante para te dizer.
Pôs-se de pé e fez Eliana levantar-se também.
-       Ouviste o que te disse – insistia a mulher – o Giuseppe contou-me algo que precisas de saber.
Vasco bufou de raiva.
-       Tenho de apanhar esse filho da puta, dê por onde der.
-       Eliana vai para a sala brincar com a tia. Vai querida. – Ordenou-lhe a mãe.
-       Sobre o Duarte?
-       Sim. Sobre o Duarte.
-       O quê? O quê? Desembucha de uma vez mulher.
Incapaz de se suster, voltou a desabar, apoiando-se com o braço no rebordo da sanita.
-       Maldita comida. Tu envenenaste-me foi o que foi...
-    Cala-te de uma vez e ouve-me – gritou Patrícia. – O Duarte está bem. Está aqui no Brasil, em sítio incerto, mas bem, entendes? Ninguém o raptou nem lhe fez mal nenhum. Ele apenas quis desaparecer.
Não fazia muito sentido. Parecia que só ganhava esperança quando já não havia mais a que se agarrar. Tentou relembrar o passado para perceber porque estava ali. O Duarte fazia-lhe sempre aquilo. A catástrofe interior eram sempre os remorsos que sentia, por ter sido ele o preferido. Um dia, tinha ele dezanove anos, e o irmão doze, assistiu ao quase descalabro da harmonia familiar. O cão desaparecera misteriosamente. Voltou a aparecer, três semanas depois, magro, pêlo sumido de cor e um olhar sumido de medo intenso. A primeira vez que Duarte se tentou aproximar do cão, percebeu logo. Tinha sido ele quem o levara para longe, escondendo-o numa garagem abandonada, quase a dez quilómetros de onde viviam. Depois, nessa mesma noite, sentou-se para jantar, observou com atenção o desespero do pai, e chorou como se a dor fosse dele.
Não matou o pobre animal, pois não havia ponta de maldade em Duarte, apenas mergulhou numa realidade fantástica que passou a ocupar um compartimento de reserva na sua cabeça, e que substituía por completo a do mundo dos vivos. E nunca se soube o exacto instante da ocorrência deste fenómeno.
-   Nunca tinha contado isto a ninguém. – Diz. – Sempre me senti responsável por tudo o que ele fazia. Eu é que tinha de arcar as culpas. Tinha de ser.
-       Porquê.
-       Ora porquê. Por causa do nosso pai, claro. O Duarte metia-se em todo o tipo de sarilhos para lhe chamar a atenção, mas nunca lhe ligava nenhuma. Nem a ele nem às meninas, só tinha olhos para mim, e para o raio do cão. Um dia, acabou por desistir e foi-se embora. A culpa foi minha. Eu sei que foi. Deveria ter estado mais atento.
-       Tenho muito medo Vasco. – Inferiu ela, tremendo.

 
-       Então, eu estou aqui agora. Eu protejo-te, a ti e à menina. É isso que eu faço. Vou limpando as merdas que ele faz.
Ela soçobrou em lágrimas, abraçando-o com força. Tudo acontecera quase de repente. Os motivos podiam ser mais profundos, mas estaria ele disposto a se dar ao trabalho de os procurar?
-       Não quis dar a entender...
-       É uma merda sim! – Concluiu. – Apaixonei-me pelo homem errado.
-     Não digas isso. O Duarte é tão boa pessoa. Um pouco confuso talvez, mas bom no que importa.
-       Estás tão cego quanto o vosso pai Vasco. A única coisa boa que o Duarte me deu foi ela. A Eliana. E agora, por causa dele, posso perdê-la.
-       Não faz sentido nenhum o que me estás a dizer.
-    Eu sei da história toda. Sei naquilo que ele anda metido, e sei também porquê que o Giuseppe me procura.
-       Não percebo.
-     O teu irmão perdeu-se em coisas que tu nem fazes ideia. Coisas muito graves. “CHIAWITSWEL”. Isto diz-te alguma coisa?
-       Não, nada. Isso para mim é chinês.
-       Não é chinês não, mas, de um modo geral, é tão idiótico que, a forma como o vim a descobrir, me enche ainda mais de medo. Alguns tolos não fazem um mal por aí além, mas, se detêm poder e chegam a ser felizes em demasia podem tornar-se perigosos.
-       Continuo sem perceber nada. Diz-me tudo.
-     Não estou bem certa, mas creio que isto é um código, uma palavra-passe para desvendar a rede de negócios obscuros em que o Duarte se envolveu. Convêm que percebas uma coisa. O único tolo aqui é ele mesmo. Por pensar que podia se envolver com o Giuseppe e sair por cima. Anda um investigador independente a calcorrear esta mesma pista. Um português chamado Colaço, que trabalha para a Interpol, e que está muito perto de desvendar tudo.
-       E o Duarte?
-       Lamento Vasco, mas pouco me importa o destino do Duarte neste momento. A minha preocupação é com a Eliana. O Giuseppe anda desesperado para a encontrar porque sabe que, se a tiver em seu poder, pode chantagear o Duarte para este assumir todas as culpas. A situação é muito, muito grave. Amanhã mesmo, podemos estar ambos mortos, o Duarte até, e a menina posta numa situação impossível.

Casimiro Teixeira

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