“Sei, como todos nós
sabemos, como pesa o tempo vencido sobre alguém que se aventura a descrevê-lo”
por José Cardoso Pires
em, Lavagante –
encontro desabitado.
Sebastião
Venceslau de Menezes era uma rotina. Quando a torre da igreja anunciava as
horas e ele já tinha passado, estava atrasada seguramente. Diariamente,
precisamente às oito, fosse qual fosse o tempo atmosférico, descia gotoso a rua
de empedrado com o chão a colar-se-lhe aos pés como quem o prendia à vida
monolítica. Vivia consigo mesmo. Fazia 90 anos.
Quem o olhava
na rua via um saco vazio atirado para um canto. Vizinho cumprimentador, sem
parcimónia mas ausente, tinha o bairro como um aglomerado de gente encastelada num
atropelo em busca da refeição diária e ele, que já não lutava por nada, passava
pela padaria, pelo mercado diário e, já com as compras no saco, sentava-se no
café da esquina a molhar uma torrada seca na meia de leite, enquanto sorvia as
notícias do jornal ou as cantadas pela televisão no primeiro diário do dia.
Tomava
conhecimento da desgraça e da alegria com o mesmo desinteresse com que o gato se
espreguiçava na janela do café lambendo os raios de Sol filtrados pelo calor da
vidraça. O Mundo era-lhe o que sempre fora e quase nada valia a pena da refrega;
era uma comédia transformada em tragédia por uma farsa.
Às dez em
ponto, autenticadas pelo relógio colectivo, levantava-se a custo, despedia-se
educadamente inflectindo e saía para o regresso a casa, agora mais esforçado.
Todos o ficavam a olhar naquela lassitude bem portuguesa de quem parece que
analisa mas não; aquele olhar sem ver, para mais tarde comentar sem jurar em
falso. A verdade é que ninguém sabia nada sobre Sebastião Venceslau de Menezes;
vizinho de sempre, o mais antigo do bairro. Os mais velhos eram catraios quando
o conheceram já adulto, os outros tinham-se já retirado por imposição da vida.
Era o único sobrevivente. Nem as casas que tinha dado origem ao local lhe
tinham resistido. Era o Sr. Sebastião da casa térrea. Ponto final.
Dizem que o
que conta é a primeira impressão, o impacto da primeira imagem; mas o que fica
para memória futura é a decadência dos últimos momentos dum homem; e hoje,
todos o olhavam com pena sem saberem bem porquê.
O seu Mundo era
uma invenção há muitos anos, uma espera, tempo de mais perdido. Desde que
deixara o emprego e se dedicara ao conforto da reforma, a vida prolongara-se-lhe
numa oleosa constância de ‘rien faire d’utile’, uma geleia sem consequência. Os
mesmos horários, as mesmas tarefas, as mesmas comidas e gostos, os contratempos
a tempo, as necessidades a destempo. Tudo sem tempo definido e indefinidamente.
Sentia-se num
moribundo Inverno reduzido a uma estante de carvalho velho onde alojava uma
biblioteca acumulada e quase um século de memórias próprias. Agora, a vida chegava-lhe
por palavras alheias e já nem as dele lhe pertenciam, tal era o adiantado da
idade e a descolagem do Mundo. Nunca pensara durar tanto, mas sentia-se bem,
mais pesado, enfim, mais dorido, esquecia-se das chaves na porta frequentemente,
mas, apesar de tudo, sentia-se bem. O problema é que, quando olhava o horizonte
para lá do muro do quintal nada lhe dizia respeito.
Relutava em
fazer parte do Mundo de hoje, que dizia não ser dele, e há mais de uma década
que pensava dedicar-se a folhear a sua vida e a escrever as memórias do que
vira e sentira quando vivera. Não sobre mim!,
o que haveria a dizer de interessante?, palavras dele, mas sobre o que vivera, quem conhecera, e sobre o que tinha sido a
relatividade do tempo. De outros tempos.
Finalmente, dedicara-se
a declamar para o papel as vivências extrospectivas e para isso, além duma
memória lavada, tinha todo o tempo que lhe restava e a vasta biblioteca que o
ajudavam a esclarecer alguma dúvida metódica ou circunstancial. De maneira que,
quando desesperava sentava-se mais uma vez a punir as teclas da velha máquina
de escrever que, ultimamente, não lhe falava, não lhe desenrolava o acontecido
surpreendente, não lhe ditava nada de jeito. Era uma aflição, um deserto de
ideias que lhe secava a garganta numa angústia medonha, e embora soubesse que o
tempo era o grande resolvente para a maioria dos problemas, os seus, urgiam agora
de impaciência.
O seu grande
tormento era reduzir à simples escrita a grandeza do sentir das emoções e seus
pensamentos. Sabia que era a emoção que o fazia sentir e pensar o que sentia
mas, como dizer? A tradução em símbolos dum conceito belo, podia ser
conspurcado pela má interpretação dum ignorante, ou mesmo, conscientemente, por
um ‘anti-esteta’, mas e principalmente, pela falta de destreza e sageza do
relator. Como conseguir a pureza da transmissão fidedigna?
Nunca tinha
sido notícia pública, destaque para além de algumas pessoas suas conhecidas,
mas vivera momentos, alguns tão prolongados na relatividade do tempo que até se
podiam nomear de felizes e notórios. Tinha alguma coisa a deixar! Porque vivera
uma vida… E naquele circunvagar lento da memória, escorria-lhe um tempo, onde
tinha criado, onde tinha amado, onde tinha vivido. Gostava que um dia lhe
viesse à cabeça um texto futuro. Tudo o que lera até ao momento, ou que
escrevera, lhe era passado, num pretérito muitas vezes imperfeito. Quem sabe um
dia conseguiria projectar um texto num futuro quase perfeito baseado nas suas
imperfeições e das que conhecia do Mundo.
Ontem, talvez
pelo que bebera no telejornal da manhã enquanto mastigava a sua torrada pensara
um pouco em política. Nunca fora monárquico porque não acreditava na divindade
da transmissão de poderes, cria no processamento eleitoral e consequente posse
administrativa dos governos, que preferia democráticos, no entanto sabia que as
ditaduras modernas tinham sido votadas por maiorias de pré-oprimidos e que liberdade
e justiça eram utopias que nos faziam esquecer o concreto e definido da
realidade com que nos batemos diariamente e que nos aprisiona sem razão
aparente. O ‘ser partidário’ era a sua parte etimológica, por isso, não tinha
partido político e via-os todos como um todo faccioso. Sabia bem que o Mundo
preferia a lantejoula ao forro; mas ele não, gostava de sentir o conforto de
enfiar um sobretudo deslizando as ideias em bons tecidos; por isso, quando o comentador
dissera em deferido que:
“- Somos
Portugueses, um clube de benévola tolerância para com os impostores, fadados
por uma existência cantada à guitarra e centramos a nossa actuação mais nas
potencialidades do acto desenrascado e na desculpa esfarrapada do que na caixa
craniana.”
estremeceu na cadeira.
Nunca fora,
nem básico, nem ácido, antes de feitio vincado; há muito que a sua maneira de
ser, moldada por anos de encontrões tinha uma serenidade bovina, de paz e em
paz; mas ali, perante aquela frase feita, dita por aquela entidade janota,
avivaram-se-lhe as urticárias despertando-lhe comichões antigas. Taurino,
pasmaram-se os comensais, atirou-se mesa afora desembolado e sem despedida
visível subiu a rua com um destino e uma desenvoltura de jovem. Disse-se à boca
pequena, que até parecia raiva.
Nos afazeres
domésticos da manhã percebeu que não se sentia bem, qualquer coisa, não sabia,
lhe palpitava o coração, uma inquietação, talvez mais, uma vontade irrequieta
para a qual já não teria idade e «tenho de falar com o médico» lhe mostrava uma
vontade para fazer qualquer coisa que nem sabia o quê.
Aquele dia
foi-se-lhe vertendo nervosamente; arrumada a casa não conseguia a serenidade
para escrever, estava revolto, sem concentrar as ideias numa provável história
interessante da sua vida para deixar a ninguém. Rabiscava aqui, cortava acolá,
pedia à memória que o deixasse contar, vagueava por, nem sabia, para voltar ao
papel e, divagava, voltava ao devaneio. Não se lembrava dum desassossego
daqueles.
Chegada a
noite, enrodilhou-se na lareira com um livro no colo para disfarçar, olhou o
borralho intensa e demoradamente, e adormeceu.
Entrou pelo
consultório adentro, cumprimentou a recepcionista e:
- O Manel
está?
- Bom dia
senhor Menezes; tão cedo por cá?
- É verdade
menina, é de manhã que se começa o dia e atacam as preocupações. O Manel?
- O senhor
doutor chegou agorinha mesmo, vou dizer-lhe que o senhor chegou. Faça o favor;
sente-se um pouquinho...
Ainda não
tinha medo da morte, no entanto, consultava com regularidade o seu médico de há
mais de trinta anos. Um velho amigo de competência e boémias reconhecidas por
toda a cidade, o que lhe atestava credibilidade e distinção não só sobre as
maleitas do corpo como no aconchego das do espírito. Estava, e sentia-se, por
isso em segurança tendo em conta a longevidade das práticas e alguns sucessos
proclamados. De mais a mais, o médico escrevia num periódico da cidade sobre as
moléstias do mundo carnal e existencial tendo em conta as oncologias da vida
urbana. Era para isso também que o consultava hoje.
- Olá senhor
Menezes. Que cara e essa? Não estou a gostar dessas olheiras. Dormiu mal?
- Olha Manel,
tu ainda escreves naquele jornaleco… como se chama?
- No Paladino,
chama-se Paladino, senhor Menezes. Dê-me cá o braço para medir as tensões…
- Não é
preciso homem, estou tão antigo que já nem lembro da velhice.
- Hum… mas,
sobre o semanário da terra, precisa de alguma coisa?
- Sabes que,
de vez em quando, tenho umas enxertias de pensamento, zango-me como as pessoas,
por assim dizer, e pensei que… quem sabe… eles não precisam de ninguém para
escrever lá?
- Senhor
Menezes, o senhor tem as tensões em modo explosivo, tem tomado os medicamentos?
- Às vezes
incomodo-me, tenho idade para um viver feliz de menino mas ontem, olha, deixa
lá; com quem falo lá no jornal?
- Senhor Menezes…
tem de ter mais cuidado consigo, não pode deixar os medicamentos para quando
lhe dá jeito, a medicação é uma rotina de vida, o senhor…
- Mas quais
rotinas de vida rapaz!, as rotinas são todas de morte, tu sabes lá o que é a
vida!, diz lá; tens alguém lá no jornal com quem possa falar?
- Tenho senhor
Menezes, tenho. Vou dar-lhe um cartão de recomendação ao director, será um
prazer tê-lo como colunista, mas só se me prometer que vem cá amanhã medir as
tensões e que continua com a medicação disciplinadamente.
- Está bem…
está bem…
- Mas o que se
passa homem? Não me lembro de o ver tão agitado…
- Olha; ando a
escrever umas coisitas… enfim, por vezes lembro-me de cada uma que, mesmo
escritas, ninguém se acredita; pronto!, lá está o velho, dirão; coisas,
passagens, imagens, que queres que te diga, vivências, pronto. E agora, veio-me
tudo à cabeça em catadupa, como quem vê um filme todo numa fotografia só,
vários planos de vida, e isto à noite, tudo chapado numa só imagem, esparramado
num quadro sem ordem e de nexo duvidoso. Pelo menos parece-me. E, a partir de
agora, já sei, que eu conheço-me, hão-de vir todas aquelas noites que nunca
mais amanhecem.
- Tomou os
seus comprimidos para dormir?
- Nada, homem!
Então, não achas que estarei brevemente a dormir em definitivo; queres acelerar
o processo? Agora? Que tenho tanta coisa para contar! Tens cada uma…
O médico, que
vivia aplicando-lhe a sua experiência vaticinando silenciosamente finais
calendarizados de consulta em consulta e, felizmente, errando com persistência
graças à robustez e tenacidade da esperança de vida, escreveu num seu
cartão-de-visita “sr. dr. Elídio, o cavalheiro que lhe apresenta este cartão é
meu amigo desde sempre e era-o já do meu pai. Gostava que o recebesse como um
amigo também. É um homem vertical, quase centenário.”
José Bessa
Gostei, gostei muito e espero voltar a desfrutar de tão boa escrita, obrigado
ResponderEliminarMano!!! Que começo estimulante!!! Vim cá ver os contos e comecei por este, sem saber de quem era o primeiro capítulo. Só vi que era teu ao chegar perto do fim. Wow!!!! Doida pra ler o resto! (Um por dia!)
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