01/12/17

Em Busca da Verdade - Capítulo VI

Fotografia © Gastão Brito e Cunha

            O mar estava tão revolto quanto a sua alma. As ondas rebentavam nas rochas com a mesma intensidade que os flashes da visão de Sofia agarrada à mala lhe chicoteavam o pensamento. Nem tinha percebido o rumo que tomara, até ali chegar. Avançou, em passos ébrios, para a falésia que à sua frente segurava as investidas da natureza em fúria e fechou os olhos, sentindo o cheiro do último trovão. A tempestade repentina daquele final de tarde travaria qualquer um, mas a ele não. João estava tão enlouquecido de raiva que enfrentaria qualquer perigo, como se quisesse medir forças com o próprio destino.
            No último instante, parou à beira do precipício e num gesto reflexo sentou-se na pedra dura que, determinada, suportava a força das águas. Seria aquilo que lhe faltava? Determinação. Determinação para dar a volta ao estado a que chegara o seu casamento? É que nem sempre fora assim. No início, tinham vivido um interlúdio emocional permanente. Sofia era uma mulher intensa, absorvente até, mas ele amava-a e gostava do frenesim que era viver a seu lado. Era como se vivesse constantemente no fio da navalha, uma sensação de vida que só sentia com ela. Mas com o tempo esse frenesim começou a cansá-lo e a força para a acompanhar faltava-lhe, às vezes. Será que com Sofia só era possível viver naquela inquietude? Estava tão atormentado que já não sabia se o que estava a pensar fazia algum sentido.
            Levou a mão ao bolso e sentiu a carta que tinha tirado da mala. Não fazia nenhuma ideia do que pudesse estar escrito naquele pedaço de papel amarelecido pelo tempo, mas constrangeu-se ao tocá-lo e sentado no cume da escarpa, ali ficou com a carta a queimar-lhe nas mãos.
            Em casa, Sofia voltava a atenção, mais uma vez, para a mala. Sentada no chão do escritório, abriu-a à sua frente, tornou a remexer o conteúdo e pegou num maço de cartas amarrado com uma fita de cetim azul bastante desbotada. Curiosamente, tinha as letras viradas para dentro, impedindo qualquer pessoa de à primeira vista ver os nomes ou as direcções. Por minutos, ficou ali, com os dedos a segurar a ponta da fita, mas desviou o olhar para o caderno e com um gesto abrupto, largou o maço das cartas e agarrou-o.
            Abriu-o na primeira página e o que leu causou-lhe um choque.

Diário de Bordo
Travessia atlântica Brasil\Portugal
Raul Coutinho Cortez

Ela conhecia aquele nome! E até sabia de onde. Há coisas que as crianças jamais esquecem. Neste caso, era já uma pré-adolescente. Certa vez, ouvira uma conversa entre a avó e o avô, em que a avó mencionara o nome Raul Coutinho Cortez. Aquilo parecera-lhe envolver um certo secretismo, ainda assim arriscou-se a perguntar quem era a pessoa que falavam. A resposta da avó? Nunca mais a esquecera. Ficou lívida de raiva e proibiu-a terminantemente de pronunciar aquele nome à frente de fosse quem fosse. E é claro, isso incluía qualquer investigação por conta própria.
Esta descoberta só fez aumentar a ansiedade que Sofia sentia e a avidez com que se debruçou sobre a leitura do que agora sabia ser um diário de bordo. Não começou pelo início, abriu uma página ao acaso e leu:

12 de Novembro de 1911
Dentro de algumas horas, o navio atracará no porto de Lisboa. Estou ansioso para finalmente pôr os pés nessa terra que toda a vida deixou a minha mãe de semblante triste e saudoso. Já há quase um ano, que devia ter vindo. Quando o pai soube da mudança de regime político em Portugal – a 5 de Outubro de 1910 -, disse logo que tínhamos de vir a Portugal. Se pretendia ficar ou não, não sei… nunca o ouvi dizer, mas depois houve aquela tragédia e eu, sozinho no mundo, quase que me perdi de mim próprio. Ainda assim, este país corre-me nas veias, o apelo do sangue trouxe-me até aqui. Apesar do amor\ódio que toda a vida nutri pela terra dos meus pais, o destino foi imperioso. Agora, quase a terminar a viagem, ainda não tenho planos. Só há uma coisa que tenho certeza que farei de imediato: procurar os meus avós. Não sei se terei sucesso, mas pelo menos tenho um ponto de partida. Tenho um papel que encontrei entre as coisas de mamãe, com um endereço de Lisboa. Fica no Bairro da Graça…

As revelações jorravam na mente de Sofia a um ritmo estonteante. Não estava certa de estar a entender tudo o que ali se revelava, mas sentia que era importante. Por isso continuou a ler quase sem respirar.
O próximo texto datava de cinco dias mais tarde.
 
Fotografia © Gastào Brito e Cunha
17 de Novembro de 1911
Sempre achei que minha mãe pertencia a uma classe alta da sociedade portuguesa. A forma como me ensinava regras de comportamento e etiqueta e me obrigava a cumpri-las, deixava-me desconfiado. Agora tenho a certeza. Quando cheguei ao número daquela rua mencionado no meu papel, quase levei um susto. Aquilo não é uma simples casa, aquilo é um palacete. Aliás, é assim que vou designa-lo a partir de agora.
Quando toquei à porta, apareceu uma criada de farda bem engomada que foi a correr chamar a patroa, assim que eu disse o meu nome. A avó veio logo a seguir. Puxou-me para dentro e por algum tempo, ficou a observar-me em silêncio. Até que, finalmente me abraçou e disse algo estranho: “és tal e qual como imaginei”. Então ela sabia quem eu era? Antes que eu tivesse tempo de perguntar, levou-me para uma sala forrada de livros que conclui ser a biblioteca da casa. “O meu marido não está, vamos conversar aqui.”
A avó não é exactamente como eu pensava. Eu esperava encontrar uma senhora fina, bem cuidada, talvez fútil, como são as damas da sociedade. Ao contrário disso, a mulher que encontrei tem um aspecto descuidado e no olhar, uma tristeza profunda. Sinais de quem envelheceu antes do tempo.
Mas isso não me impediu de dizer o que fui lá dizer. Foram anos e anos a assistir à infelicidade da minha mãe e às acusações do meu pai. “A culpa é dos teus pais”, “agradece aos teus pais”, “se os teus pais me tivessem aceitado, não precisávamos de ter fugido”, são expressões que ainda hoje me atormentam. Ela precisava saber da infelicidade da filha. Quando era criança não entendia bem o significado daquelas palavras, mas à medida que fui crescendo, fui construindo a história. O meu pai foi para o Brasil contrariado e por isso afundou-se no jogo e no álcool.
Depois… depois houve aquela madrugada que jamais esquecerei. Como habitual, o meu pai chegou a casa embriagado. Ouvi-o entrar e ir para o quarto, onde a minha mãe já estava recolhida. Ao contrário dos outros dias, ela não o repreendeu, nem se lamentou da sua vida sofrida. E eu fiquei à espera naquele silêncio incomum. Até que se ouviu o estrondo. Não dava para confundir, era um tiro. Corri para o quarto onde os dois estavam e quando ia a entrar, outro tiro fez estremecer o meu corpo. Pois é, os meus pais se suicidaram no mesmo dia, praticamente à mesma hora.
Enquanto descrevia o momento a avó chorava. Até que desmoronou num pranto e gritou: “minha querida filha, eu sabia… eu sabia! Meu coração sentiu que algo de mal acontecera, quando as cartas deixaram de chegar”…

Sofia sentiu lágrimas escorrerem-lhe pelo rosto. Estava escuro. Tinha anoitecido, sem que desse conta. Ouviu João meter a chave na fechadura e num instante, estava ali, entre portas. Tinha uma carta na mão.


                                                                                                          Luisa Vaz Tavares 

6 comentários:

  1. Está a ficar cada vez melhor. O mistério adensa-se. Excelente capítulo, Luísa, parabéns!

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  2. Um bom aproveitamento de pontas soltas para que elas se atem ou desatem ainda mais. Como é normal, a Luisa está de parabéns :)

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  3. Não é um regresso. Raul, não é um de torna-viagem. Este, é um chamamento de sangue.
    Tudo se esclarecerá no passado. Estará o encontro futuro numa carta na mão?
    Excelente capítulo, onde destaco a fluidez da escrita.
    Parabéns Luisa!

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  4. Excelente desembolvimento da história presente passado.
    Adorei Luisa como sempre

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  5. Obrigada a todos, pelas simpáticas apreciações.

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  6. Luísa, passei uma semana sem tréguas, final de semestre letivo na escola, só hoje pude vir ler o teu capítulo! Que leitura gostosa e suave!! Parabéns! Gostei imenso!!! Vou a correr ler o próximo!

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