Cidade das Dunas



Capítulo I
Pedro Miguel Ferreira

Apartamento 501 do Potengi Flat
Vasco olhou pela enésima vez para o relógio, pousado em cima da mesa de cabeceira. Passavam poucos minutos das três da manhã. Deitada a seu lado, Patrícia dormia profundamente, ocultando o seu corpo nu com o lençol. Os longos cabelos negros espalhavam-se na almofada formando uma bizarra figura de aspecto quase geométrico. O silêncio do quarto era apenas interrompido pelo suave zumbido do ar condicionado. Vingança era a única coisa que ecoava, de forma ruidosa, na mente de Vasco.
Incapaz de adormecer, levantou-se vagarosamente para não fazer barulho e aproximou-se da janela do quarto. Uma forte luz de néon, anunciando uma tal Drogaria Globo no piso térreo do hotel, feriu-lhe a visão habituada à penumbra do aposento. A cidade estava deserta àquela hora, como que esmagada pelo forte calor que ainda se fazia sentir mesmo de madrugada. Apenas as luzes intermitentes dos semáforos conferiam um toque de vitalidade ao cenário desolador. Na linha do horizonte, ele conseguiu avistar os cumes das enormes dunas que cercavam a área urbana. Aquelas enormes massas de areia ficavam prateadas sob a luz do luar e transmitiam uma estranha sensação de claustrofobia. Podia-se facilmente imaginar que as dunas poderiam engolir a cidade e todos os seus habitantes a qualquer momento. Vasco pegou no maço de tabaco, acendeu um cigarro e aspirou profundamente. Tentou ordenar, mentalmente, a sequência de acontecimentos dos últimos dias.
Duarte, o seu irmão mais novo, residente no Brasil há quatro anos, tinha desaparecido em circunstâncias misteriosas. O seu jipe foi encontrado abandonado, nas imediações do forte dos Reis Magos. Um mês e meio de investigação policial não resultou em nenhuma solução para o caso e as autoridades diplomáticas tinham sido inoperantes até à data. Não tinha sido encontrado nenhum corpo nem havia registo de pedido de resgate. Três semanas após o desaparecimento do irmão, Vasco solicitou uma licença sem vencimento no trabalho, abandonou a pacatez da sua casa em Colares e viajou rumo a Natal, com a esperança de rastrear o paradeiro de Duarte e acalmar a angústia de toda a sua família. Rapidamente Vasco apercebeu-se que tinha mergulhado num labirinto, com imensas bifurcações que não conduziam a lado nenhum. As forças policiais não pareciam muito empenhadas na investigação. Para eles, tornava-se evidente que o desaparecimento do português estava relacionado com os habituais casos de estrangeiros residentes, que muitas vezes se viam envolvidos em problemas relacionados com drogas, turismo sexual ou branqueamento de capitais. A imprensa local alinhava pelo mesmo diapasão, lançando uma vaga de insinuações de teor xenófobo, sobre a recente vaga de estrangeiros que se tinham instalado no nordeste brasileiro durante os últimos anos. Ainda para mais, o seu irmão Duarte era sócio-gerente do Dom Café, uma conhecida casa nocturna da cidade, frequentada sobretudo pelos filhos das elites locais, facto que aumentava ainda mais o número de boatos em seu redor. O sócio do seu irmão era Giuseppe, um italiano natural de Lecce. Um homem de cerca de quarenta anos e com um vago aspecto de hooligan. Era alto, tinha o cabelo rapado e ostentava umas quantas tatuagens nos braços. Sobre a cintura pendia-lhe uma pequena barriga que dava os seus primeiros sinais de flacidez. O queixo quadrado e uns olhos verdes e felinos, encaixavam-se num rosto bronzeado, conferindo um toque de agressividade ao seu perfil. Inicialmente tinha sido apontado como um potencial suspeito, mas não tinha sido possível reunir provas suficientes contra ele. Vasco já tinha tido oportunidade de conversar com ele por duas vezes. Ficou com a ideia de que era um sujeito evasivo, que irradiava uma certa aura de maldade, tentando claramente ocultar factos relacionados com o estilo de vida que Duarte tinha no Brasil e que poderiam estar na base do seu desaparecimento.
Patrícia Dantas, uma jornalista de um canal de televisão regional, parecia ser, até então, a única pessoa disposta a ajudá-lo naquela busca frenética. Poucos dias após a chegada de Vasco a Natal, ela tinha ido procurá-lo no hotel, naquele tórrido início de Fevereiro. Ele tinha feito questão de que a sua estadia não passasse despercebida. Seria forma de atrair maior atenção para o caso, encetar contactos com a comunicação social, pressionar as autoridades competentes e abrir a possibilidade de obter informações de outras fontes. Também ela parecia impressionada com a lentidão da investigação policial em relação a um caso de contornos tão estranhos. Acabaram por se envolver de forma muito rápida e quase selvagem, após alguns dias em que se dedicaram a estudar o caso numa relação de bastante proximidade. A beleza, dinamismo e inteligência de Patrícia tinham seduzido Vasco de modo avassalador. No entanto, aquela noite tinha sido crucial para confirmar as suspeitas de Vasco em relação ao italiano. E uma das variáveis do enigma tinha surgido de forma surpreendente e dolorosa.
Vasco saiu da janela e avançou cautelosamente para o guarda-roupa. Procurou o revólver que tinha comprado clandestinamente no problemático bairro de Nazaré, localizado na zona oeste da cidade, para sua protecção e que ele tinha escondido no meio das suas roupas. Com a arma na mão, foi-se aproximando da cama enquanto relembrava os acontecimentos da noite anterior. Durante o jantar, num restaurante na Av. Afonso Pena, Vasco teve a estranha sensação de estar a ser vigiado. Um Ford Fiesta branco, com vidros escurecidos, tinha passado três vezes em frente do restaurante. Patrícia, que o acompanhava, parecia particularmente inquieta e estava pouco faladora. Após a refeição, ela retirou-se para a casa de banho e deixou o seu telemóvel em cima da mesa, após ter atendido um breve telefonema de uma colega da redacção. Erro infantil. Dois minutos depois, ele escutou o sinal sonoro de recepção de uma mensagem escrita. Vasco não resistiu à curiosidade e ao sentimento de desconfiança que o consumia. Com as mãos suadas pelo nervosismo, pegou no telefone e leu o conteúdo da mensagem.
- Já conseguiu descobrir quais as pistas que esse idiota anda seguindo?
Sentiu uma ligeira tontura ao descobrir que Giuseppe era o remetente da mensagem. Instintivamente, apagou a mensagem. Quando ela regressou para a mesa, ele preferiu não lhe dizer nada e optou por sair dali o mais rapidamente possível. Iria sentir-se mais seguro no hotel e necessitava de ganhar tempo para pensar sobre tudo aquilo. Porém, no regresso, ele sentiu falta de coragem para pedir explicações a Patrícia. Sentia um nó na garganta. Precisava de agir com frieza e delinear uma estratégia muito bem calculada.
Com o corpo a tremer, Vasco, subiu para cima da cama e encostou o cano da arma na nuca de Patrícia. A ansiedade e o desespero tinham tomado conta do seu raciocínio. Agora, ela iria ter muita coisa para lhe explicar.


Capítulo II
Carolina Lemos

- Vasco?!? – Que estás a fazer? Larga-me, gritou Patrícia assustada, ao acordar com o toque frio da arma na sua nuca.
- Vá, minha querida, agora é tempo de explicares direitinho mas direitinho mesmo, qual é o teu papel nesta história! Não vim cá para fazer papel de palhaço nem para ser enganado por uma catraia como tu! – Disse vermelho de cólera Vasco, cuspindo as palavras bem perto do ouvido de Patrícia.
Maldito dia em que Duarte tinha tido a ideia de se mudar para o Brasil, pensava Vasco enquanto sacudia a cabeça de Patrícia numa fúria desenfreada. Mas Duarte sempre fora assim. Aventureiro, rebelde e um pouco inconsequente. E curioso, sempre tinha sido Vasco a safá-lo de todos os problemas que Duarte arranjava.
E novamente, Vasco tinha vindo tentar salvar o irmão…Se não fosse tarde demais já…
- Fala minha cabra, fala de uma vez. Diz-me lá como é que o Giuseppe te paga para lhe dares informações sobre as minhas investigações – vociferou Vasco.
- Não sei de que falas – titubeou Patrícia, debatendo-se contra as mãos pesadas de Vasco. Como podes acusar-me de uma coisa destas, se tudo o que tenho feito é para te ajudar? Eu não dou informações nenhumas ao Giuseppe, pelo contrário… Eu tenho conseguido informações valiosas para te ajudar!
- Sim, sim, não penses que me continuas a enganar. Eu vi a mensagem no teu telemóvel – e dito isto, Vasco encostou com mais força a arma, já carregada, agora bem perto do crânio de Patrícia.
- Não é nada disso. Deixa-me explicar por favor. Eu também quero descobrir o paradeiro do Duarte. Muito mais do que tu podes pensar. Eu estou fazer jogo duplo com o Giuseppe. Eu não te estou a enganar, juro. Juro pela saúde da tua sobrinha Eliana! – Respondeu já a chorar Patrícia.
Ao ouvir isto, Vasco largou-a em cima da cama e virou-a para cima, olhos nos olhos.
- O que é que disseste? Sobrinha? O que é que estás a inventar agora, não penses que te safas assim! – Vociferou novamente Vasco.
- É verdade, a minha filha é tua sobrinha, filha do teu irmão. Tem dois anos e adora o pai. Acima de tudo é por ela que o quero encontrar, porque sei que ele ainda está vivo. Eu sei! – Soluçou Patrícia.
Vasco saiu de cima dela e começou a andar aos círculos no quarto. Uma filha! Duarte tinha uma filha e ninguém sabia. Nem a mãe deles, que Duarte tanto adorava. Mas a verdade é que Duarte pouco falava da vida dele no Brasil e as notícias que dava não eram assim tão frequentes, enviava bastantes encomendas com presentes para a mãe e para as suas irmãs, e por vezes, para o próprio Vasco, mas nunca dizia muito nos telefonemas e emails que trocavam.
Seria possível Patrícia estar a falar a sério? Seria mesmo verdade?
- Explica lá essa história de uma vez mas acho bem que estejas a dizer a verdade, não estou com paciência nem tempo para mais mentiras. Se sei que me estás a enganar, eu juro que te enfio uma bala no meio dessa testa linda – gritou Vasco empunhando a arma bem na direcção da cara de Patrícia.
- Por favor, pousa essa arma. Eu estou do teu lado, acredita. Ou melhor do lado do Duarte, pai da minha filha. Vá, senta-te aqui e eu conto-te tudo. – Suplicou Patrícia.
E Patrícia começou a contar como tinha conhecido Duarte numa festa há três anos e que tinha ficado logo encantada por aquele sotaque tão portuguesinho, como ela dizia. Rapidamente tinham-se envolvido e tinham chegado mesmo a viver juntos. Patrícia nunca aprovara a ambição de Duarte e a vontade dele em ganhar mais e mais dinheiro. Nunca tinha achado bem a ligação dele com Giuseppe mas Duarte tinha-se tornado cego a conselhos mais racionais. A avidez de dinheiro e poder tornaram-no mais frio, mas não apagaram a sensibilidade que Duarte trazia consigo. Quando se separaram e um mês mais tarde Patrícia descobriu que estava grávida, Duarte fez questão de a apoiar em tudo e de acompanhar a sua gravidez o mais perto possível.
- Vasco, havias de ver o olhar doce do teu irmão quando ele pegou na Eliana pela primeira vez. Parecia um anjo deliciado com aquele bebé nos braços.
Vasco sorriu ao lembrar-se desse olhar tão característico do irmão, um olhar a que ninguém conseguia ficar indiferente.
- Não voltamos a ficar juntos – continuou Patrícia – mas ficamos sempre perto um do outro. O Duarte estava sempre com a filha e continuamos amigos. Conversávamos muito mas as conversas sobre o andamento dos negócios começaram a ser cada vez mais escassas. Sempre que eu perguntava como iam as coisas, Duarte desconversava. Comecei a ficar cada vez mais preocupada mas não havia nada que eu pudesse fazer. Com o desaparecimento de Duarte, um pedaço da minha vida ruiu… E eu não quero que a minha filha cresça sem pai. Isso não pode acontecer – e dito isto, Patrícia começou a chorar intensamente.
Vasco estava muito confuso. Aquela que ele pensava ser uma cúmplice de Giuseppe afinal era mãe da sua sobrinha.
- Leva-me já a ver a miúda. E é bom que ela exista mesmo, senão iremos voltar aqui para continuarmos a nossa conversinha. E dá-me o teu telemóvel, não confio em ti…ainda… - ordenou Vasco.
Vestiram-se rapidamente e saíram do apartamento. Patrícia avisou que tinham de ter cuidado. O Ford Fiesta iria estar à espreita para os seguir. Assim tinham sido as ordens de Giuseppe.
- Ah, afinal sabes muito bem quais são as ordens desse filho da mãe? - Disse Vasco apertando-lhe o braço.
- Tem calma, disse Patrícia. Agora vais ver a tua sobrinha e depois de finalmente acreditares que não te estou a mentir, conto-te o resto!
Patrícia agarrou pelo braço de Vasco e levou-o pela porta dos fundos onde poderiam apanhar um táxi. Não podiam sair no carro de nenhum deles, pois assim iam segui-los e a última coisa que Patrícia queria era que descobrissem que tinha uma filha e onde moravam.
Pouco tempo depois, o táxi seguia pela avenida fora, seguindo as direcções que Patrícia ia dando.


Capítulo III
José Bessa

Entretanto, no outro lado do Mundo, numa pesquisa frenética de sala de operações, analisavam-se ficheiros, links, ‘spams’, imagens e tudo quando pudesse ser útil para encontrar a password dos ficheiros encriptados. A expectativa pairava ansiosa naquele sótão da Rua dos Contrabandistas nº 10 da Freguesia dos Prazeres, em Lisboa. O Colaço, debruçado sobre a bancada e quase entrado pelo monitor adentro, varria os ficheiros batendo sem piedade as PgUp e PgDn com uma agressividade de militar.
Rara oportunidade esta busca online no laptop dela, era de aproveitar e, embora a seis mil quilómetros de distância, era ali, na ponta do dedo transpirado que podia estar a magia de entrar no mundo da investigação jornalística e das suas fontes ocultas.
A chuva crepitava na vidraça com uma fúria cadenciada de rajada, enquanto ele empurrava nervosamente as armações dos óculos grossos contra a testa enrugada e batia as teclas. Estava a ficar sem cigarros, precisava descer aqueles noventa e cinco degraus até à loja da esquina, o cubículo adensava-se de fumo e a noite aproximava-se temerosa. Nada… tinha um dead line e, nada… não tinha encontrado a password que abria os apontamentos da Patrícia e Giuseppe não aceitaria mais falhas. Talvez com scroll lock utilizando o seu aplicativo velhinho que destrancava os jogos todos. Foda-se! Já não tenho idade para estas merdas!
Estava um velho o Colaço, um caco, tinha sido um bom técnico de comunicações da Marinha; morava mesmo ali, na Rua da Correnteza de Baixo e estava “destacado” no Tribunal Marítimo de Lisboa numa eterna comissão de serviço imposta. Imposta porque presa às suas capacidades incomuns de detectar letras e algarismos fora do lugar e deles ler coisas importantes. Presa, porque o Colaço, não existia, como pessoa. Eternamente.
Medalhado por relevantes serviços à Pátria várias vezes, tinha passado à disponibilidade como Sargento-Mor e, por falta de solicitação e utilidade, dedicara-se à informática e, daí a um ramo mais específico da informática, a pirataria, e daí, levou com dois balázios, esteve quase morto, foi preso ainda nos cuidados intensivos do São Francisco Xavier, julgado na enfermaria, pensava ele, e remetido para o Hospital da Marinha em absoluto sigilo. Fora dado como morto.
O Correio da Manhã anunciara em parangonas que “Um sargento da Armada, ex-operador cripto no Ultramar, agora colaborante dum grupo de terroristas internacionais fora apanhado e morto esta manhã na posse de material informático comprometedor” o Diário de Notícias informava que “um sargento da Marinha Portuguesa baleado ontem no Restelo desaparecera misteriosamente dos cuidados intensivos do Hospital São Francisco Xavier, não se sabendo como, nem o seu paradeiro”, nas televisões, após as aberturas estridentes sobre o último jogo Sporting-Benfica onde se presumia o favorecimento deste por um trio de arbitragem onde o quarto árbitro - bem, não interessa - “Faleceu esta manhã o S-Mor Joaquim Colaço de Albuquerque, herói do Ultramar condecorado no último 10 de Junho com a Medalha de Serviços Distintos grau bronze, em resultado de ferimentos provocados por dois tiros desfechados à queima-roupa por dois indivíduos e…” - enfim, não se sabia nada…
De modo que, ‘O Colaço’, como era conhecido na Unidade, morrera.
Daniel Albuquerque estacionara com todo o cuidado o seu jaguar XF na curva do Mónaco e, presciente, ligou o número do seu irmão de leite. Atenderia sim, tinha a certeza…
Conduzira desde Sintra com um mau pressentimento, mas enfim, o Dantas queria o jantar naquele dia e, porque não? Não podia dizer que não a quem tanto tinha ajudado o Vasco e, principalmente o Duarte, o seu predilecto. Mas o Dantas, desde que se ligara aquela malta do SIEDM tinha ficado estranho, menos comunicativo, menos cordial, menos afectivo até; um dia disparara-lhe com esta desfaçatez, “Daniel, eu sou pago para ser curioso, mas não me faças perguntas! Ouviste?”, não se faz; tantos favores lhe devia e…
- Está? Joaquim?
- Quem fala!?
- Ó pá! É o Daniel!... Há quantos anos!... Que é feito? Não de vejo desde que morreste…
- Hã… Olá Daniel. Como soubeste este número?
- Ó pá, eu sou pago para ser curioso, mas não me faças perguntas, eh eh eh… tomamos uma bica ou estás ocupado?
- Pois… Olha… Estou a acabar um trabalho e… Não sei. Talvez depois…
- Ó pá, ainda andas metido naquela coisa… Como é?... Esteganografia?
- Hum… quem te diz essas coisas? Isso é tudo mentira…
- Isso é o que te parece! Ouve só isto; vou-te ler “Solicitado amiúde para trabalhos específicos, uma vez que não tem equipamento, junta-se habitualmente a um grupo de rapazolas que se dedicam às cópias de filmes e jogos mesmo na rua ao lado da sua casa e perto do seu emprego cárcere”…
- Daniel…
- E mais; diz quem sabe que o teu último entretém para “umas determinadas pessoas” é exactamente aquilo, como é? Es-te-ga-no-gra-fia… mas que raio é isso Quim?
- Daniel…
- Diz lá!
- Como vão os meninos?..
- Olha Quim, também é para os ajudar, não te incomodaria por coisa pouca. Vou aí ter contigo agora e não me demoro. Está em casa?
- Estou a chegar, mas agora estou ocupadíssimo com um trabalho que…
- OK, daqui a quinze minutos estou aí e até te levo aquela fotografia que tanto me pediste e…
- Daniel…
- Até já!
Daniel e Joaquim nunca se tinham dado bem. Da mesma exacta idade, criados juntos na quinta de Colares até completarem a escola primária, foram separados cada qual para o seu mundo aos nove anos. Filho de patroa não vive com filho de criada; para mais bastardo. Deram-lhe o nome (a terminação, como lhe chama Colaço), cumpriram o dever mas, humilhações não. O catraio foi para Lisboa viver com a avó e a empregada, enquanto manteve o viço, ficou.
Encontraram-se no serviço militar, já colocados em Luanda. Joaquim na Marinha, como operador de comunicações, Daniel na Força Aérea, como controlador de tráfego aéreo. Foram falando em ondas curtas durantes as comissões, mas, de feitios antípodas encaravam-se com um amor-ódio alimentado pela exuberância dum e a competência do outro.
Já na Metrópole, em jeito de “angústia para o jantar” encontravam-se com alguma periodicidade fingindo afectos e argumentando as suas vidas. Joaquim mantivera-se solteiro, Daniel casara com a Beatriz, “a flor de Sá da Bandeira”, e tinham dois filhos que gostavam muito do tio Colaço.
Joaquim nunca perdoara ao Daniel ter-lhe roubado o amor da sua vida, e tinha sido ela, e só ela, que o mantivera vivo quando fora baleado. Só ela.
- Olá Joaquim! Está escuro aqui pá, quando mudas de casa? Sempre a mesma cave! Estás fino? Pega lá a foto. Já nem te lembras de ti assim hã?… em que ano foi?
- Olá Daniel… nem sei bem… só sei que me dá ecos de África. Então que te traz por cá?
- Olha, um amigo, bem, não te posso dizer quem é, tem um cliente que se esqueceu duma password e… bem, vê lá se descobres alguma relação com essas letras que o tipo está mesmo enrascado. És capaz, ou não?
- Não sei Daniel… isso não funciona assim, sabes, temos que ter uma relação, saber alguma coisa sobre o que motiva a pessoa, quem é e com quem se relaciona, algum hobby, sabes…
- Ó; lá está tu! Não compliques, aponta aí, “CHIAWITSWEL”.
- Daniel…
- Escreve lá essa porra homem. Posso dizer-te que a pessoa conhece Angola como nós e tem negócios no Namibe.
- Em Sá da Bandeira?
- Sim pá, na terra da Beatriz. Vá; quando chegares a uma conclusão apita. Mas não demores hã? Olha que parece ser um caso de vida ou de morte! Precisas de alguma coisa?
- Não… Vou tentar… Talvez com a Cifra de César ou com a Tabela de Vigenère… Não sei, um Quebra Cifras, talvez…
- Amanhã telefono-te. Talvez possamos beber uma bica. Resolve isso! Ouviste?


Capítulo IV
Teresa Madeira

Enquanto isso, num qualquer ponto de uma qualquer cidade, a cara junto ao chão, o respirar pesado e sujo como quem bebe poeira há uns bons dias, anunciava o abrir das persianas daqueles olhos ainda tão nublados. A cabeça, essa, latejava fazendo com que cada som parecesse o ribombar de cinquenta tambores, enquanto, dentro dela, lá longe, ecoava a memória turva do que fora e até de qual seria o seu nome próprio. Lembrava-se apenas de uma figura imponente embora de mau aspeto, barriguda, estranha. Uma coisa era certa, tinha de sair daquela posição e tentar perceber que mundo novo era este que se lhe apresentava perante os olhos. Pouco a pouco foi sentindo o corpo, primeiro as mãos mesmo ali “à beira de semear”, a seguir os pés e oh! Não é que estavam mesmo metidos numa argola? Mas que raio era aquilo? Por momentos pensou logo numa algema, o que daria mais sentido ao vazio de identidade que nele habitava e aumentava a cada nuvem que afastava dos olhos. Mas rapidamente se apercebeu que nada tinha a ver com uma argola, pois se nem circular era! Tratava-se de facto de uma sarjeta, uma simples sarjeta daquelas bem recheadas das frustrações dos que por ali passam e para lá cospem, dos mal educados finórios que para lá lixo atiram e da incompetência dos que nunca as limpam. Finalmente levantou-se e pela primeira vez conseguiu vislumbrar o sítio onde estava e as borboletas no estômago começaram a dançar. Não reconhecia nada de nada. Pior, não se via vivalma, apenas um gato que dele se aproximou roçando o dorso nas suas pernas como quem pede uma identidade também. E então teve-a: nomeou-o Jêta como homenagem à sarjeta que iniciou este novo percurso da sua vida, para ele o primeiro. Lado a lado com Jêta, caminhou sem saber por e para onde, mas tinha de fazer algo. Estava cheio de fome e instintivamente olhou para o Jêta, mas foda-se….nem o raças do gato tinha bom aspeto! E algo lhe dizia que ainda havia de lhe ser útil… Ao longe viu um vulto, e uma esperança o inundou por dentro. Quanto mais se aproximava, mais certezas tinha de poder encontrar respostas junto daquele indivíduo, pois que era barrigudo, mal vestido e com um aspeto asqueroso lá isso era. Quem sabe não seria alguém que o conhecia?
Mas que raio…este eu não conheço! Donde é que apareceu? Não tem ar de ser de cá e muito menos de gostar de gatos. Que voltas terá acontecido na vida deste fulano para chegar a este ponto? E o homem com o gato continuavam a andar e vinham na sua direção, já o tinha visto e transparecia claramente uma ânsia de a ele chegar.
- Desculpe… diga-me por favor….quem sou eu?
Este gajo está a brincar comigo, já consegui mamar um copito hoje mas… Mando-o à merda ou aproveito para passar um bocado o tempo?
- Oh amigo eu mal sei o que fui ontem e o que serei amanhã, quanto mais quem você é… Como é que se chama?
- Sei lá!
- De onde é?
- Lá sei!
Tá bonita a festa, já há algum tempo que não me aparecia um caramelo destes. Vamos lá então ver o que sai daqui, cheira-me que vou ter mais uma história interessante para contar àqueles que me querem ouvir.
- Olhe, sente-se mas é aqui comigo que acho que tenho para aqui um kiwi algures que posso partilhar consigo.
Enquanto nos instalamos, olho para aquela criatura de olhar vago e cada vez mais a curiosidade me assalta. Já vi de tudo, mas…sem nome e sem terra? Nunca… Será Deus?.. palerma… ainda tens esperanças que ele exista….. Se assim fosse com toda a certeza não estaria aqui a passar o tempo com o Mr. “Sem Nome” que ainda por cima tem um gato que cheira pior do que nós os dois juntos! Deus… pff… deus.
- Ora diga-me lá… então você não sabe o seu nome?
- Eu não sei nada… não sei quem sou nem como vim aqui parar… - respondeu com os olhos vidrados desta vez não de nuvens mas de uma morrinha prestes a cair…
- Então se pudesse escolher um nome para si qual seria?
Eh lá! Já lhe arranquei um sorriso! Pelo menos já não se vai pôr para aqui a chorar como os últimos, era o que me faltava!
- Olhe… nome não sei… mas pode-me tratar por chêta.
- Chêta???
- Então, o gato chamei-o de Jêta, eu não tenho chêta… oh Jêta arranja chêta!!
E juntos, durante um bom bocado riram às gargalhadas como só aquele que se reduz a zeros é capaz de rir. Respostas não iriam haver…isso já ambos tinham percebido. Mas a incógnita partilhada sempre é melhor que a incógnita solitária de caminhar ao lado de um gato com um nome estúpido. Estúpido, é como quem diz… - pensou – deixa-me  estar calado… que eu ainda nem descobri o meu…


Capítulo V
Fernanda Cadilha

Foi escasso o êxtase do momento de aparente alegria e divertimento. Um profundo e transtornante silêncio veio sentar-se entre ambos, instalando-se para ficar. Um e outro procuravam quebrar o súbito emudecimento, mas nada que parecesse oportuno lhes ocorria. O mal-estar densificava-se, tornando o silêncio ainda mais carregado.
Incomodado, sem saber o que dizer, ou o que fazer, Chêta (nomeemo-lo assim, por enquanto) observava o enfezado gato, mais ávido de carinho do que de alimentos. Acariciou-o levemente, temeroso de poder magoá-lo, tão magro ele estava, deixando transparecer, ainda que por ínfimos momentos, uma inconfundível doçura no olhar que não passou despercebida.
- Estou a ver que gosta de gatos - murmurou o outro, numa tentativa de abertura ao diálogo.
E continuou, sem esperar resposta.
- Chamo-me Marcelo. Nasci aqui no Brasil, em Natal, mas já vivo em Canguaretama há vinte anos.
- Canguaretama???!!!! - Questionou  Chêta num misto de espanto e preocupação, pois nada lhe fluía ao ouvir aquele nome.
- Sim, Canguaretama. É onde eu vivo, onde nós estamos... – Respondeu, algo irritado. - Não vai agora dizer-me também que não sabe onde se encontra!
- Não, não sei. Não sei onde estou, não sei quem sou, não sei como aqui vim parar - disse, o olhar vago e distante como se quisesse vislumbrar algo que o pudesse esclarecer.
A angústia apoderava-se dele, agora que começava a tomar consciência do absurdo da situação. Passou os dedos lentos nos cabelos e levou-os atrás, numa tentativa de libertação de ideias. Sentia-se vazio, completamente vazio de memórias. Não tinha qualquer dúvida e muito menos qualquer certeza. Era “ninguém”, apenas um corpo e carne em busca de respostas, junto de um desconhecido, e conforto, num gato enfezado.
- Disse que era de onde, Marcelo? - Perguntou, num sutil esforço em manter a conversa.
- Sou brasileiro, filho de pai português e mãe brasileira. Nasci em Natal e vim para Canguaretama em busca de melhores oportunidades de vida. É uma longa história, se me quiser ouvir.
Mas já Chêta não ouvira as últimas palavras. Natal, Natal. Porque lhe era aquele nome tão familiar? Natal, Natal… e um turbilhão de ideias, nomes, rostos, locais, acontecimentos irromperam a uma velocidade louca na sua mente. É claro, Natal, a cidade pela qual ele tinha trocado Colares… o seu irmão mais velho, Vasco, a mãe e a sua tristeza ao vê-lo partir… o Dom Café e Giuseppe, ostentando as suas tatuagens… Duarte, chamava-se Duarte… Patrícia, nos seus longos cabelos negros, transbordando sensualidade nos gestos, no andar, na voz quente que de imediato o seduzira… e Eliana. Como pudera ele ter esquecido Eliana?
E os olhos adocicaram-se perante a imagem afetuosa da menina.
Alheio a tais pensamentos, o gato aproximou-se dele, no seu roçar do dorso, e contemplou-o com um olhar pesaroso, mendigando a carícia esquecida e abandonada. Duarte estremeceu ao corte do pensamento e, num gesto rápido e brusco, levantou-se, aturdido e confuso, causando espanto no companheiro que continuava a sua história, persuadido do interesse que esta estava a suscitar no hipotético ouvinte.
- Então, homem, que lhe aconteceu. Não me diga que além de esquecido também sofre de tiques nervosos! - Disse num tom jocoso e aparentemente amigável.
Duarte olhou-o indiferente e distante. Não era momento para brincadeiras. Muito menos vindas de um estranho. Olhou-o de alto a baixo, como se o quisesse radiografar.
Parou à imagem da barriga que se evidenciava. E estremeceu novamente. Afigurava-se-lhe a figura imponente, de mau aspeto, barriguda e estranha que lhe surgira ao primeiro pensamento do acordar de um não sei o quê. Continuava sem perceber como viera ali parar e aquele homem parecia-lhe, agora, alguém suspeito e perigoso.
- Ó homem, mas que raio lhe aconteceu? - Insistia Marcelo, irritado com o seu silêncio.
Duarte forçou a imaginação, tentando encontrar uma resposta que não levantasse suspeitas.


Capítulo VI
Pedro Marques

Duarte, o irmão do Vasco e ainda há muito pouco tempo no Brasil e desaparecido agora, deixou o último rasto no jipe abandonado na praia. Daí para a frente, mais nenhum lastro da sua passagem; mais nenhum indício da sua presença. O jipe, abandonado na praia, era o único sinal de si. Num desaparecimento que poderia ter sido por afogamento, mas cujo corpo por de mais procurado, jamais foi encontrado. Procurado dias e dias por barco, avião, helicóptero ou outro meio de busca, nem rastos do Duarte. Devorado por animais marinhos o seu corpo?... Raptado?... Assassinado?...
Este Duarte era uma pessoa reservada. Parca de conversa com amigos. Quase um misantropo. Muito invertido e perdido nos seus pensamentos em contínuas meditações. Um jovem, de certo modo, desligado das apetências da vida e muito mergulhado na leitura das ciências genealógicas. De modo especial, na pesquisa dos seus antepassados mais remotos cuja recolha de elementos das gerações dos dois últimos séculos ele já tinha. E por isso foi até ao Brasil E por isso o Brasil deixou. De forma enigmática. Misteriosa… A genealogia era, de certo modo, uma obsessão que o distraía do todo que o rodeava. Nem irmãos; nem família; nem estabilidade profissional…Nada! E por isso, ele era uma espécie de andrajoso andarilho de biblioteca para biblioteca ou de “sítio” para “sítio” na net. Na busca de agulha em palheiro. E isto porquê?... Porque descobrira que o pai do início da sua geração também era Português com descendentes espalhados na diáspora dos quatro cantos do mundo. Descobriu, na poeira das pesquisas, que era oriundo das serranias de Montemuro, numa aldeia perdida nas fragas rochosas das terras do demo. Este seu antepassado era pastor de gado caprino e descobriu que havia muitas aventuras que dele se contavam de lutas com lobos. De que sempre saíra vitorioso. Mas com muitas cicatrizes. Que para ele eram condecorações que nenhum preço ou outro feito pagaria.
Fascinado pelo viver de isolamento nas serranias inóspitas, este seu primeiro ascendente criou no seu imaginário cenários empolgantes mesmo na frugalidade de um viver assim. Esquecido horas a fio na net, depois de encontrado o rasto deste seu progenitor de há séculos perdido no seio das montanhas, ele encontrou também o arquivo do seguinte episódio escrito pelo punho desse seu antepassado, com bico de pena de asa de pato e tinta do sangue das suas veias…
“(…). Era numa noite de Dezembro sem luar. E eu caminhava para casa pela serra do S. Macário e tive de atravessar o portal do inferno. Quando me apercebi, vinha a ser seguido por dois lobos. Os lobos não atacam logo. Os lobos apenas acompanham o homem… até ao momento em que o homem fraqueje, se desequilibre e caia desamparado. Em relação ao homem, o lobo sabe esperar pelo momento certo. No seu primeiro sinal de fraqueza… E eu estarrecido de medo e a pensar: vai ser aqui que eu vou escorregar!... E vou morrer esfarrapado pelos dentes dos lobos!.. Mas não! Mesmo em noite sem lua, eu fui caminhando… E perto de mim, os lobos também… E eles e eu passámos o Portal do Inferno… Até que apareceu uma luz de um outro pastor com o gado de regresso aos currais e bem protegido por matilhas de cães. A partir daí, os lobos deixaram-me. Ficaram para trás. Um susto, na minha vida!(…)”
Aqui, nem sequer houve luta. Escreveu ele. Mas em outros casos anteriores e depois deste, essas lutas eram corpo-a-corpo, sentindo ele na sua garganta o roçar dos dentes das feras que acabavam por se ir embora sempre que ouviam cada vez mais próximo, o latir frenético dos cães. Mas não saía dessas lutas sem rasgos profundos na sua carne. Depois, também estava escrito numa espécie de diário que esse seu antepassado, de nome Pedro, com a ajuda de outros pastores e protecção dos cães, dos lobos se vingava construindo os fojos para os quais atraía as feras. Os fojos eram covas circulares, fundas, numa espécie de poço largo e ladeadas por vários muros em forma de anéis intervalados por corredores. No fundo dos diversos patamares, este Pedro colocava carne de rês morta e cujo cheiro a sangue os atraía. E os lobos, saltando de muro em muro iam descendo até ao fundo na busca do alimento. Então o Pedro, que os espiava, aparecia, munido de cajado e de um bom punhal. Os lobos, vendo-se descobertos e encurralados tentavam galgar esses anéis de muros para se escaparem. Porém, sem êxito porque se os muros eram fáceis de saltar para baixo, impossíveis de subir por causa da sua altura. E também pelo punho deste Pedro, também escrita por tinta de sangue, histórias de uma serpente gigante que assaltava os moradores pela calada da noite… No lugar da Serpe…
Estas histórias de luta entre os homens e as feras entusiasmaram tanto o Duarte que ele, deixando o Brasil, ao arrepio de todas as formalidades de emigração e de comunicação aos familiares e da sua própria identidade e segurança, viajou clandestino nos vãos de um dos navios para Portugal. Todavia, com saudades e até um sentimento de ternura inesperado pela Patrícia… Gostava de a ver outra vez… Mas decidiu romper com passado e aventurar-se num futuro que só a Deus pertence…
E como um foragido aventureiro e iludindo todo o seu percurso de vigilância, por mar e por terra, chegou às inóspitas e duras terras do demo  e embrenhou-se na serra. E como um marginal de quem ao princípio todos desconfiavam, ele foi ganhando a confiança dos pastores da aldeia. E em pouco tempo, também já era vezeiro dos rebanhos. E consigo, além do farnel e do cajado e da companhia fiel dos cães, o que é que ele levava consigo?... Um IPOD touch de quarta geração, andando assim a par de tudo quanto se passava no mundo. E ao ver, pela net, as notícias das buscas da sua pessoa pelos cantos mais inesperados do Brasil, ria-se. Apenas lhe deixando saudades a Patrícia… E assim, enquanto vigiava as cabras nos tempos da Primavera ao Outono, sentava-se num dos muitos penedos entre a urze e o mato e deliciava-se a ouvir o sussurrar da brisa pelas arestas dos penhascos da serra enquanto seguia com os olhos o planar descontraído e vagaroso da águia de asas abertas, sob o azul do céu…
Se este Duarte já era misantropo e amigo da solidão, num ambiente destes de silêncio; de paz; de quietude, ele passou a viver uma vida de eremita. E a deixar ouvir os seus pensamentos. Que guardava numa espécie de outro diário… E no registo do seu IPOD, entre outros, estava este…
“No barulho; no meio do nervosismo; na confusão, muito dificilmente nos encontramos connosco próprios O encontro connosco mesmos, com a nossa interioridade, é no silêncio que acontece; no isolamento; num desligamento, momentâneo ou temporal, do mundo em que nos encontramos no nosso quotidiano.
Não significa isto uma fuga às realidades; aos problemas; às dificuldades que diariamente encontramos. A fuga às realidades não as elimina - antes nos enfraquece. Enfrentá-las, e se possível vencê-las, é um acto de coragem e de afirmação. E de necessidade também. Só isso, é já uma vitória sobre nós mesmos e da qual nos vêm energias e capacidades para enfrentar e vencer outros desafios.
A vida é uma luta constante, onde, porém, nem sempre a vitória acontece. O fracasso é também natural. Se a queda é um acidente, o levantar-se é um acto de coragem e de dignidade. Ora, para pensarmos também nisto, precisamos de repouso; de silêncio; de isolamento; de interiorização.
Na solidão da montanha, sobre as escarpadas fragas dos penedos, de onde a água brota abundante e cristalina; onde a fúria do vento fala uma linguagem áspera e selvagem mas também cheia de musicalidade; onde a fúria do vento ora verga até ao chão a crista da árvore, maleável, dócil, meiga; ou quebra a de porte altivo num ranger de estertor e de ecoar, dolorido, pelas quebradas, orgulhosa e ciosa do seu aprumo; da sua verticalidade; na solidão da montanha onde, ora a chuva cai forte e me encharca até aos ossos, ora o sol espreita, brilhante, por entre nuvens pesadas e carregadas de água; na solidão desta montanha onde sinto os pés colados à terra e respiro o fluido aromático da vegetação desde o musgo à erva do campo; neste universo de agressividade e doçura, de sons de vento e silêncios, é onde eu me sinto mais eu.
A vila, o movimento, o bulício, estão bem lá ao fundo, ao longe. De onde me chega, brando, apagado, o som do sino. Entre mim e a vila, esta distância de isolamento e silêncio; de pausa e de meditação.
Falei, atrás, na docilidade da árvore que o vento verga até ao chão. Como que num acto de submissão, de humildade. Como falei na árvore de antes quebrar que torcer, ciosa da sua independência, da sua verticalidade.
Será assim? Não estará nesta o símbolo do orgulho insubmisso e naquela o da despersonalização, da cobardia, da falta de coragem? Talvez estas dúvidas se pusessem, se fôssemos nós a árvore agitada pelo vento.
Todavia, estas árvores são elementos da Natureza e reagem naturalmente em gestos  inúteis e perdidos. Árvores, portanto, com a sua individualidade própria nem positiva nem negativa: de uma submissão e altivez que só existe no nosso imaginário.
Regressemos à minha identificação.
Neste ermo, onde o sol espreita, brilhante, por entre pesadas nuvens a rebentar de água; neste ermo, onda a água desce, cantante, da penedia; neste ermo onde o vento ora arranca harpejos da folhagem da árvore, ora gritos enigmáticos, é onde eu me sinto mais eu.
A minha interioridade é esta expressão da Natureza onde o belo e o medo se encontram e se plasmam formando uma realidade nova: de paz e inquietude, onde há gritos e há cânticos; onde há fúria e mansidão; violência e docilidade. Estes contrastes no ritmo de uma tensão constante…”.
Este Duarte, é isto o que está a ler nos textos guardados no seu IPOD enquanto os cães, a ladrar, lhe dão sinal de que há lobo por perto… E cada vez mais perto, também, o sítio onde morou o progenitor que procura da sua geração.
Enquanto, do outro lado de lá do Atlântico, já se estava num inferno de diligências de burocracias indispensáveis para a oficialização por morte do seu desaparecimento por afogamento identificado num outro cadáver que deu à costa e como sendo o seu, o Duarte monologou um “morri. Vão enterrar-me”… Mas não se abala nem fica apavorado e até desafia o futuro: “Veremos, agora, daqui em diante o que irá acontecer!.. Todavia, de tanto amar, agora, esta vida quase nómada de pastor da serra, este episódio da sua morte esquece para contemplar e se deliciar no paraíso de tanta liberdade e tanta paz…


Capítulo VII
Estela Fonseca

Duarte não tem um lado obscuro. Duarte é obscuro! Com os outros! Calcula e ensaia gestos e passos e contabiliza atitudes de acordo com o seu benefício. Na sua quase mística realidade pastorícia ele sabe-se a si mesmo como sendo um homem gélido de personalidade cínica. Para si!
Desde criança que se sabe dissimulador e com facilidade leva a água ao seu moinho. Os seus enormes olhos negros puxavam facilmente as lágrimas fazendo ceder o raspanete mais bravo ou o castigo mais penoso. Fácil levar a mãe e as irmãs mais velhas. Menino de mimo e beicinho, Duarte imediatamente esquecia o pranto depois da vontade feita. Vasco, o seu irmão, não tinha a sua candura. Destemido e frontal representava, simultaneamente, um rival e uma admiração invejável a seguir. No entanto Duarte não tinha um lado direito e um lado esquerdo, uma razão e uma emoção. Duarte foi e é um traço contínuo de quereres obstinados. Sem barreiras, sem sentimentos ou arrependimentos. Esta sua forma escura de ser esbarrou com Patrícia. Não fazia parte dos seus planos ser pai. Nem amar. Nem prender-se. Patrícia foi diferente das outras mulheres pelo tempo de duração na cama. Mas como em todos os peões que vão passando na sua vida, Duarte soube mais uma vez jogar a seu favor. Claro que acompanhou a gravidez de Patrícia. Claro que olhou Eliane com os mesmos olhos que costumavam adocicar a mãe e as irmãs. E claro que foi com o mesmo gelo que deixou as duas!
Entre balidos e cheiro a hortelã, Duarte puxou de um cigarro. Chegava de introspeção e regresso a um passado que só assentava bem numa serra sem dono. Cinicamente imaginou o que se passaria do outro lado do oceano. Com toda a certeza Patrícia já se teria mudado para a casa da irmã e levado consigo a pequena Eliana. Duarte não podia esperar mais. O tempo tem custos. Aliás, o tempo é o seu maior custo e com toda a certeza Giuseppe já tinha ordenado a nova mercadoria.
Puxou de um último trago de nicotina e ligou o telemóvel que trouxe consigo de reserva. Bateria intacta e número desconhecido. Duarte está de volta. Do outro lado atende uma voz rude com sotaque siciliano e se fosse possível de visualizar, um rosto arredondado idêntico a uma pizza mozzarella! É Giuseppe. Ouve-se um «ciao amico» estridente e quase submisso!
Duarte sorri e pergunta com voz rouca:
- Quando parto para Palermo? Já tens a mercadoria?
Giuseppe engasga-se e não sabe bem como responder. Balbucia vocábulos incompreensíveis, de entre eles, Duarte apenas percebe a noticia com que não estava a contar. No seu trajeto tão linear, o irmão Vasco estava à sua procura no Brasil, como pedra no sapato que tem que descalçar!


Capítulo VIII
Hélder Magalhães

Assim que o avião aterrou na pista do aeroporto internacional Augusto Severo, Duarte expirou longamente, como se o corpo aliviasse toda a árdua carga acarretada ao longo dos últimos meses. Agora, ali, na capital do Rio Grande do Norte, esperava que a sua vida tomasse um novo curso, feito de águas de um azul cristalino.
Volvido o primeiro mês, passado entre o extenso e dourado areal da praia e os lençóis do quarto de hotel e as noites de loucura interminável, não necessariamente por esta ordem, Duarte procurou um part-time, algo que o absorvesse durante algumas horas, antes que caísse em um qualquer pântano, uma vez que já começava a sentir-se caminhar sobre areias movediças.
O Dom Café abriu-lhe as portas, como servente às mesas, entre as dezanove e a hora do fecho, mas ao fim de dois meses, a astúcia e a discrição de Duarte aos olhos de Giuseppe, o proprietário, resultaram em uma proposta de sociedade. Daí em diante, Duarte passaria a gerir o movimento do Dom Café, libertando Giuseppe para outros negócios um tanto ou quanto ocultos.
Num ápice, o Dom Café passou a clube noturno de referência, tanto na cidade, como no estado, sendo frequentado por uma elite do mundo dos negócios e profissões liberais. Pela primeira vez na vida, Duarte sentia-se ao leme do seu destino, orgulhoso, ainda que comedido pela recente ascensão, e respeitado no seio daquela comunidade.
A estabilidade profissional e emocional despertou em Duarte as primeiras sensações e impressões de paz e afeto a um lugar e, em particular, às suas gentes. Esta novidade de pertença levou-o a procurar uma casa, que pudesse chamá-la sua. Rapidamente, tropeçou naquela. Talvez fosse o porte elegante e tropical da planta plantada na lateral direita da fachada, que mais tarde descobriu ser uma mamoneira, que o fez apaixonar-se à primeira vista. Mudou-se na manhã seguinte.
Anoitecia e chovia e o cheiro a terra elanguescia e envolvia os corpos em uma voluptuosa humidade, quando Duarte sentiu a incandescência da voz dela adentrar-se-lhe na boca de um martini seco. Ao fim de uns minutos, soube ser uma jornalista, ainda que sob a maquilhagem de acompanhante de luxo, uma vez que investigava uns rostos ocultos da máfia que, supostamente, frequentavam o Dom Café.
A sensualidade envolta naquele mistério arrebatou Duarte numa paixão desenfreada, daquelas que se sabe à partida apenas resultarem num abismo, mas à qual não resistiu aventurar-se. Somente soube o nome dela no relâmpago do estou grávida – Patrícia Dantas.
Agora, depois de mais de dois anos alucinantes, em que se envolveu como intermediário nos negócios obscuros de Giuseppe com a máfia, a fim de desbloquear qualquer tipo de informação para a Patrícia, e o medo pela segurança da sua filha, Duarte decidiu colocar um ponto final em toda aquela trama. Todo o seu fascínio pela mamoneira, fez com que descobrisse que, além do seu principal produto, o óleo de rícino, a sua semente é tóxica, devido à presença da ricina. Aquelas pequenas doses mortais, infiltradas nos cubanos, seriam decisivas no próximo encontro.



Capítulo IX
Fátima Veloso

- Depois da próxima rotunda, vire à direita - indicou Patrícia, num tom de voz que oscilava entre um nervosismo miudinho irritante, e uma ansiedade e medo inexplicáveis. – É … uma rua deserta, estreita … e íngreme … de sentido único! – Gaguejou.
Estavam finalmente prestes a sair da longa avenida que lhes parecia interminável. As dunas, ao fundo, cresciam grotescas à medida que o táxi onde seguiam, se aproximava do ponto de viragem. Pareciam querer barrar-lhes o caminho e aprisioná-los nos abismos das suas gargantas sem fundo.
- Que raiva! – Murmurava Vasco, impaciente, entre dentes. - Apanhamos os vermelhos todos! Nem de propósito!
Patrícia, inquieta, olhava regularmente o trânsito à sua volta, na tentativa de descobrir algum carro suspeito, pois a hipótese de estarem a ser seguidos, não estava totalmente posta de parte. O facto de terem saído pelas traseiras nada garantia que não pudessem ter sido vistos e que, por isso, estivessem em segurança.
E depois se alguém os perseguia, descobriria, por fim, a existência da filha que, ao que lhe parecia, ainda ninguém suspeitava, dado que Patrícia, meses antes, tinha tudo planeado para o momento em que o seu estado de grávida não desse mais para ser ocultado.
Assim, sob o pretexto de cuidar da mãe em estado crítico de uma doença incurável, pediu licença sem vencimento por tempo indeterminado e ausentou-se da cidade, para não mais ser vista até à altura certa de entrar de novo em cena.
Até àquele momento, Patrícia pensava que não dispunha de informações suficientemente relevantes sobre Duarte que fizessem dela um alvo a perseguir ou a abater. Até essa altura, Patrícia achava que Duarte ainda não se tinha envolvido a sério em negócios tortuosos e obscuros. No seu inocente entender, o espírito ambicioso, aventureiro e inconsequente de Duarte começava apenas a dar os primeiros passos, agora que se libertara dela, grávida.
Isto era o que pensava Patrícia, mas depressa Duarte deu-lhe a saber que as suas vidas corriam perigo, dada a sua envolvência com traficantes, lavagens de dinheiro e outras paradas ilícitas, por isso, Patrícia teria mesmo de sair da cidade, antes que fosse tarde demais. Ele, por sua vez, arranjaria o lugar certo para ela se ausentar, com a promessa de que no dia do nascimento da bebé, ele tentaria estar presente e sempre que pudesse, pois amava-as.
Assim a separação de ambos, apesar de dramática, acabou por ser vista como natural e os seus planos também à primeira vista pareciam ter resultado… até ao dia em que Duarte desapareceu e Patrícia se vê atirada para as malhas de uma imensa teia de perigos que desconhece, culminando com o aparecimento de Vasco.
Patrícia sentia-se vulnerável e frágil ao pensar em tudo isto. De repente, parecia que o mundo lhe tinha caído todo em cima. Envolvida num jogo duplo com Giuseppe, na tentativa de recolher o máximo de informação para descobrir o seu amor, acabava forçosamente por se envolver com o seu cunhado Vasco e por se ver ameaçada de morte por ambas as partes.
Chegados ao fim da rua estreita, viraram novamente à direita, passaram por cima de uma ponte, contornaram pequenas rotundas e percorreram ruas que se entrecruzavam, num verdadeiro labirinto que confundiu Vasco de tal forma que este voltou agarrar o braço de Patrícia, ameaçando-a de que se o estava a enganar ou a confundir, não sairia dali viva.
Finalmente, o táxi parou, por ordem de Patrícia, num bairro amistoso, de varandas floridas e portinholas de madeiras de um castanho-escuro que contrastava harmoniosamente com a brancura das fachadas das casas, todas elas duplex.
No parque em frente, Eliana brincava com outras crianças, na companhia de Celine, irmã de Patrícia.
Enquanto Patrícia apontava com o dedo a sobrinha que Vasco tanto ansiava conhecer, o telemóvel dela dá sinal de mensagem escrita.
Era Giuseppe.


Capítulo X
Margarida Piloto Garcia

Quase 13h quando Giuseppe vê o relógio pela terceira vez. Puxa um cigarro e observa as espirais de fumo a dissiparem-se no ar quente e quase sufocante do dia. Salvatore já devia ter chegado e o atraso do braço direito desperta-lhe suspeitas e receios.
Pensa em dar uma volta na Piazza del Duomo, ao abrigo de alguma arcada que corte o calor que àquela hora se faz sentir em Lecce. Sente-se cada vez mais apreensivo e com a mente a fazer cálculos desordenados e caóticos. O telefonema de Duarte dita-lhe raivas e sufocos.
Não foi para se agastar que se meteu com o português! Duarte pareceu-lhe ter uma dose de loucura necessária ao empreendimento e ao mesmo tempo uma certa perigosidade no trato, algo nebuloso e negro que lhe agradava. Tudo correra bem até certa altura e não fora Duarte ter-se metido com Patrícia e Giuseppe ainda acreditava que os negócios iriam de vento em popa.
Mas agora, a polícia brasileira estava bem encaminhada nas investigações e começava a ser difícil gerir os empreendimentos de Natal.
Por outro lado,  a Interpol estendera os braços até às suas operações, preocupada sobretudo com o tráfico de armas. Gerir tudo não era fácil e o facto de ter de confiar noutros gerava-lhe azias.
O suor pinga-lhe da testa e sente cada vez mais a arma que traz consigo. Está quente e pressiona-lhe o corpo como se de um aviso se tratasse. Dentro de si tudo se agita enquanto a mente se debate com os inúmeros problemas das suas operações. São grandes os negócios no Brasil e o tráfico de mulheres é um maná. Pensa no entanto, que é absolutamente necessário  coordenar  o da droga e Duarte estava a ser importante nessa área antes das embrulhadas amorosas onde se tinha metido.
Não que Giuseppe não prezasse a família, ou não fosse ele italiano. Mas os conceitos familiares do português eram diferentes e menos arcaicos do que o seu. Negócios eram negócios e não permitiam falhas. As mulheres faziam apenas parte da diversão e nunca deviam ser um empecilho. Caramba! Aquele português de olhar velado e triste parecia um íman a chamá-las, isso já ele tinha visto há muito.
Enquanto se entretém a desfilar raivas avista ao longe Salvatore. O siciliano é baixo e magro de face afiada. Tem em si o porte de uma faca cortante, que o tom moreno e o olhar escuro e fugidio ainda acentuam mais.
Não trocam palavras, apenas olhares e desconfianças. Giuseppe está furioso e agastado com a demora. Caminha apressadamente para a Trattoria di Nonna Tetti, a poucos passos da Piazza.
Agora não quer ouvir as desculpas e os motivos que Salvatore irá invocar. Apenas lhe apetece sentar numa mesa e banquetear-se com um prato de orecchiette com legumes, ao mesmo tempo que degusta um belo vinho Salice Salentino.  Primeiro necessita satisfazer prazeres básicos e essenciais, dos quais só a cozinha de Puglia sabe o segredo. Tem tempo, agora que o outro chegou, para falar dos assuntos que lhe moem a mente e as entranhas.
Sentado à mesa, pega no telemóvel e marca o número de Duarte enquanto Salvatore o observa com a agudeza e a acuidade de uma ave de rapina.
Duarte olhava tranquilamente as pessoas que lhe cruzavam o caminho enquanto aspirava em golfadas os cheiros à sua volta.
Tinha um nariz de perdigueiro ganho nas observações feitas na serra, onde todo o mato tinha em si ervas e flores a despertar-lhe o sentido. Tinha feito bom uso dele quando aconselhava o chef do Dom Café. Aquele não lhe levava a mal a intromissão na nobre arte de cozinhar e até agradecia o dom do patrão.
Misturado no ar envolvente, Duarte aspirava um outro perfume que tinha guardado em si: o de Patrícia.
Não queria recordar todos os pormenores do seu envolvimento nem as dúvidas que o assolavam. Tudo se complicara com aquela relação. Primeiro fora uma paixão galopante, noites quentes e esfaimadas, um andar na corda bamba pelos perigos a que se sujeitava com aquela duplicidade. Por um lado o negócio com Giuseppe, por outro a relação com Patrícia. Patrícia investigadora, Patrícia jornalista e agora Patrícia mãe da sua filha, a meter o nariz  em toda aquela escuridão.
Não sabia o que fazer. Pior, não sabia o que queria fazer, nem o que sacrificaria. Os negócios com Giuseppe eram por demais recompensadores, além de desafiantes. Sair deles nunca seria fácil e com o mafioso não se podia brincar. Em contrapartida estavam os sentimentos, embora não necessariamente por Patrícia. Com ela tudo fora intenso mas esporádico. As noites de cio tinham sido arquejantes e fogosas mas ele não tinha sentido por ela aquele amor que se lembrava de ver entre os seus pais. O corpo não lhe pedia  fidelidades  nem suspirava  por uma só mulher.
O problema era Eliana. Aquela filha que pouco conhecia tinha conseguido esgueirar-se para dentro dele, reclamando de Duarte um afecto que só tinha par no que sentia pela mãe. Detestava sentir-se dominado por sentimentos de carência e de ternura. Eram como algemas a roer-lhe a sua tão solitária e egoística liberdade.
Fecha os olhos, aspirando mais forte o ar poeirento do dia. Sente-se como uma mosca no meio de uma teia à espera de ser devorada.
O telemóvel toca e ele sobressalta-se  num estremecimento que o rouba à paz do ar quente que o envolve. Olha o número e o semblante escurece enquanto os lábios se descerram e parecem murmurar esconjuros: é Giuseppe.
Cabelos ao vento ela cruza a zona verde que a leva até à sua casa no bairro Vila Rosa em Goiânia. O cheiro das mangueiras entra-lhe pelas narinas e explode-lhe na boca, odorífero e pungente.
Lentamente, numa recusa tácita de fugir ao sonho, Cristiana  reabre os olhos quase cerrados das lágrimas soluçadas nas últimas noites. Olha em volta e encerra-se mais numa posição fetal. Aconchega mais os trapos reluzentes do lamé dourado que mal a cobrem. Por entre os rasgões, a carne morena denuncia os golpes que embora ligeiros sangram um pouco. Um salto partido jaz no meio do cubículo para onde a atiraram. Os cabelos emaranhados envolvem-na e são a única sensação de conforto que lhe resta. O sonho dói agora que acordou. Como pode um sonho trazer tanta felicidade e depois ferir tão cruelmente?
Já arquitectara mil maneiras de se evadir mas acabava sempre ali, moída de pancada. Pouco lhe importava! Esperava um dia não despertar dos golpes para não sentir mais o corpo vendido e promiscuamente usado. Mas depois,  pensa que não se pode permitir o luxo de não acordar mais. Tem de seguir em frente com o que lhe resta e esperar um milagre. Febrilmente reza em silêncio porque não perdeu a fé e é ela que apesar de tudo ainda a aconchega nuns braços que se assemelham aos da mãe.
Tudo agora lhe parece distante e de contornos nebulosos.
Aquela noite com Lauro tinha transformado a sua vida num enorme pesadelo. Mal se lembrava, de tão drogada, como tinha cruzado o Atlântico e  desaguado ali, naquele antro em Sevilha.  La Latina era agora a sua casa e o seu corpo não passava de um enxovalho diário de sevícias de todo o tipo.
Naiara governava o negócio com mão de ferro e era impossível sobreviver naquela engrenagem sem uma absoluta submissão, que Cristiana não tinha. A sua origem basca dava-lhe um porte arrogante que casava às mil maravilhas com a sua ascendência árabe… era inteligente e desprovida de sentimentos, que não aqueles que lhe trouxessem proveito. La Latina facturava bem com as mulheres apanhadas no tráfico, e o consumo de droga no estabelecimento florescia. Que mais podia pedir, ela que comera o pão que o diabo amassou por estradas de Espanha?
Mas queria mais e os lábios rubros e carnudos denotavam a ambição desmedida. Precisava subir na organização e para isso tinha os sentidos bem despertos. Sabia, pelo que ia conseguindo ouvir, que o patrão de tudo se chamava Giuseppe e já uma vez tinha visto um seu sócio, um português a que alguém chamara Duarte. Chegara a trocar olhares com ele e tinha em si a ideia de que seria por ali que satisfaria as suas ambições.
E era pensando em teias de sedução que Naiara estendia o corpo num espreguiçar guloso e felino. As linhas de coca snifadas tinham deixado um traço indelével no pequeno espelho. Precisava preparar-se. Nessa noite recebia a visita de alguém conotado com uma investigação. Tinha necessidade de estar em plena e sedutora forma para perceber o que Colaço sabia.


Capítulo XI
Casimiro Teixeira

É a desordem natural das coisas. Durante os anos em que morou na casa familiar, Duarte viu o pai a alinhar cartas na mesinha de jogo, num compartimento onde o ar estagnava nos reposteiros. Cego para tudo que não fosse o cão, o baralho e o filho mais velho, Vasco.
Nunca se esquecera das faias que tossiam ao vento do outro lado daquela janela escura, ou do cheiro da loção do seu cabelo, nas costas da cadeira.
No mês em que assorearam o rio, afastou-se definitivamente daquele lugar de memórias esquecidas de si. Três dias depois, o pai morria, estendido na mesa do jogo em cima de uma paciência inacabada. É a estranheza natural das emoções.
Vasco atirou a cancela do portão da rua, que saltou nos gonzos e só à noite, quando o choro das mulheres se desatou numa valsa de piano é que se lembrou do cão.
O bicho recusou a alimentar-se, e pouco tardou até que Vasco passeasse uma trela sem nada, detendo-se a cada passo como se transportasse um animal verdadeiro.
Só depois é que se lembrou do esquecimento do irmão.
Na manhã seguinte, sem vento, que reluzia de um Sol inclemente, depois de uma noite a despejar os intestinos, aos arrancos, tonto de vómitos, numa casa de banho arcaica com uma infantaria de formigas a marchar nos azulejos, é que se deu conta de tudo.
- Senhor – questionava-lhe uma voz pequena nas suas costas, - senhor – continuava esta - tio? – Tocou-lhe ao de leve no cotovelo. – Está bem?
Ao seu lado estava uma menina vestida à marinheiro, como um macaco de realejo. Os seus olhos eram de órbitas azuis alemãs, mas fora isso, a garota, apertada na sua farda de carnaval era toda ela um dueto perfeito com a memória que ele tinha do irmão.
- Não incomodes o tio, que ele se está sentindo mal?
- Onde é que eu estou?
- Está tudo bem. – Assegura-lhe Patrícia. – Estamos na casa da minha irmã.
- O Giuseppe...
- Não faz ideia onde estamos – interrompeu-o – A Eliana está a salvo.
- Não sei o que se passa comigo. Tenho de…
- Vasco.
- Deve ter sido desta comida, não estou habituado…
- Vasco tenho uma coisa muito importante para te dizer.
Pôs-se de pé e fez Eliana levantar-se também.
- Ouviste o que te disse – insistia a mulher – o Giuseppe contou-me algo que precisas de saber.
Vasco bufou de raiva.
- Tenho de apanhar esse filho da puta, dê por onde der.
- Eliana vai para a sala brincar com a tia. Vai querida. – Ordenou-lhe a mãe
- Sobre o Duarte?
- Sim. Sobre o Duarte.
- O quê? O quê? Desembucha de uma vez mulher.
Incapaz de se suster, voltou a desabar, apoiando-se com o braço no rebordo da sanita.
- Maldita comida. Tu envenenaste-me foi o que foi...
- Cala-te de uma vez e ouve-me – gritou Patrícia. – O Duarte está bem. Está aqui no Brasil, em sítio incerto, mas bem, entendes? Ninguém o raptou nem lhe fez mal nenhum. Ele apenas quis desaparecer.
Não fazia muito sentido. Parecia que só ganhava esperança quando já não havia mais a que se agarrar. Tentou relembrar o passado para perceber porque estava ali. O Duarte fazia-lhe sempre aquilo. A catástrofe interior eram sempre os remorsos que sentia, por ter sido ele o preferido. Um dia, tinha ele dezanove anos, e o irmão doze, assistiu ao quase descalabro da harmonia familiar. O cão desaparecera misteriosamente. Voltou a aparecer, três semanas depois, magro, pêlo sumido de cor e um olhar sumido de medo intenso. A primeira vez que Duarte se tentou aproximar do cão, percebeu logo. Tinha sido ele quem o levara para longe, escondendo-o numa garagem abandonada, quase a dez quilómetros de onde viviam. Depois, nessa mesma noite, sentou-se para jantar, observou com atenção o desespero do pai, e chorou como se a dor fosse dele.
Não matou o pobre animal, pois não havia ponta de maldade em Duarte, apenas mergulhou numa realidade fantástica que passou a ocupar um compartimento de reserva na sua cabeça, e que substituía por completo a do mundo dos vivos. E nunca se soube o exacto instante da ocorrência deste fenómeno.
- Nunca tinha contado isto a ninguém. – Diz. – Sempre me senti responsável por tudo o que ele fazia. Eu é que tinha de arcar as culpas. Tinha de ser.
- Porquê.
- Ora porquê. Por causa do nosso pai, claro. O Duarte metia-se em todo o tipo de sarilhos para lhe chamar a atenção, mas nunca lhe ligava nenhuma. Nem a ele nem às meninas, só tinha olhos para mim, e para o raio do cão. Um dia, acabou por desistir e foi-se embora. A culpa foi minha. Eu sei que foi. Deveria ter estado mais atento.
- Tenho muito medo Vasco. – Inferiu ela, tremendo.
- Então, eu estou aqui agora. Eu protejo-te, a ti e à menina. É isso que eu faço. Vou limpando as merdas que ele faz.
Ela soçobrou em lágrimas, abraçando-o com força. Tudo acontecera quase de repente. Os motivos podiam ser mais profundos, mas estaria ele disposto a se dar ao trabalho de os procurar?
- Não quis dar a entender...
- É uma merda sim! – Concluiu. – Apaixonei-me pelo homem errado.
- Não digas isso. O Duarte é tão boa pessoa. Um pouco confuso talvez, mas bom no que importa.
- Estás tão cego quanto o vosso pai Vasco. A única coisa boa que o Duarte me deu foi ela. A Eliana. E agora, por causa dele, posso perdê-la.
- Não faz sentido nenhum o que me estás a dizer.
- Eu sei da história toda. Sei naquilo que ele anda metido, e sei também porquê que o Giuseppe me procura.
- Não percebo.
- O teu irmão perdeu-se em coisas que tu nem fazes ideia. Coisas muito graves. “CHIAWITSWEL”. Isto diz-te alguma coisa?
- Não, nada. Isso para mim é chinês.
- Não é chinês não, mas, de um modo geral, é tão idiótico que, a forma como o vim a descobrir, me enche ainda mais de medo. Alguns tolos não fazem um mal por aí além, mas, se detêm poder e chegam a ser felizes em demasia podem tornar-se perigosos.
- Continuo sem perceber nada. Diz-me tudo.
- Não estou bem certa, mas creio que isto é um código, uma palavra-passe para desvendar a rede de negócios obscuros em que o Duarte se envolveu. Convêm que percebas uma coisa. O único tolo aqui é ele mesmo. Por pensar que podia se envolver com o Giuseppe e sair por cima. Anda um investigador independente a calcorrear esta mesma pista. Um português chamado Colaço, que trabalha para a Interpol, e que está muito perto de desvendar tudo.
- E o Duarte?
- Lamento Vasco, mas pouco me importa o destino do Duarte neste momento. A minha preocupação é com a Eliana. O Giuseppe anda desesperado para a encontrar porque sabe que, se a tiver em seu poder, pode chantagear o Duarte para este assumir todas as culpas. A situação é muito, muito grave. Amanhã mesmo, podemos estar ambos mortos, o Duarte até, e a menina posta numa situação impossível.


Capítulo XII
Elisabete Gonçalves

— Então como? Não fugimos pelas traseiras de tua casa, de táxi, tal qual filme policial para que eles não descobrissem a existência da Eliana? E agora dizes que andam à procura dela?!
— Digo. Durante a noite, enquanto dormitavas ou sofrias os tormentos da intoxicação alimentar que te assola - e por acaso é bem feito para aprenderes a não ser teimoso - recebi notícias das minhas fontes, além de um contacto do Giuseppe. O Giuseppe diz que o Duarte ligou a pedir ponto de situação de um negócio pendente, mas a chamada caiu antes de lhe dizer onde estava, por isso resolveu telefonar a perguntar-me se estava com ele, dado não ter tido notícias minhas desde ontem. Mas retomando… Não te tinha dito que não devias ter bebido água da torneira? Não estás habituado à nossa dieta, pelo que não podes chegar e pensar que estás em casa! Deves habituar o organismo lentamente, de modo a não haver uma ruptura total e dar origem a um episódio destes! Toma um Imodium para recuperares e te ajudar a dobrar o cabo das tormentas.
— Obrigado – disse enquanto tomava o comprimido. Mas por que dizes então que a Eliana corre perigo?
— Isso é outra história. Já lá vamos, mas por enquanto importa saber que foram lá a casa procurar-me, por isso já sabem que saí. Como não foi pela porta da frente, já estarão de sobreaviso quanto à minha fidelidade…
— Ele disse-te que foram lá?
— Menos Vasco, muito menos! Isto não é uma parceria, será, quando muito, uma cooperação transitória! Se fosse uma sociedade eu teria 80% e tu 20%, percebes? As minhas fontes continuarão a sê-lo, até porque ainda não sei até que ponto confio em ti.
— Tudo bem por mim, desde que eu detenha a golden share, como acontece com o estado no caso de algumas empresas! Se for minha a última palavra e a opção de veto, estou plenamente de acordo. Não te esqueças que o Duarte é meu irmão, conheço-o desde sempre, não tive apenas um caso passageiro que por acaso se tornou sério por ter engravidado… É família, e o sangue é mais espesso do que a água…
— Sim, mas … para já une-nos um objectivo comum, que é o de localizar o Duarte e saber se está mesmo bem, nada mais. Não irás saber mais do que o necessário à prossecução do nosso objectivo pois ainda não estou completamente convencida disso ser proveitoso… Não vale a pena avançarmos se isto não estiver plenamente definido e aceite. A propósito, a tua arma está na gaveta, fechada à chave. Nesta casa mora a minha filha e não vou permitir que a segurança dela seja posta em causa.
— Curiosa observação dado que ainda há pouco dizias que ela corre perigo… Sabes que as armas servem também para defesa, não são só para ataque, certo?
— Certo, mas com ela à solta por aí não quero que possa inadvertidamente magoar-se por ter uma arma ao seu alcance. Crianças e armas são dois assuntos que não combinam.
— Respeito, apesar de não pretender fazer nada que a colocasse em perigo. Afinal é a minha única sobrinha! Como descobriram a existência dela?
— Foi o tal Colaço, da Interpol. Averiguou o teu irmão e descobriu a certidão de nascimento dela. Competente, pelos vistos!
— Mas o Colaço trabalha para o Giuseppe, ou está a tentar desvendar os crimes dele?
— Está na pista dele, mas, como acontece em todas as organizações, tem elementos infiltrados. Estes, por sua vez, para se manterem nas boas graças e sem levantar suspeitas têm, volta e meia, que sacar de alguns trunfos… Eis senão que a Eliana se transformou no Ás de Ouros! Escuso de dizer de que naipe era o trunfo…
— Bolas… Tu és um dos agentes infiltrados?
— Eu sou jornalista de um canal local… Dificilmente me poderia infiltrar na organização… Mas sim, foi disfarçada de acompanhante de luxo que me meti nesta embrulhada, certa vez, enquanto seguia uma história que envolvia o Dom Café.
— E…? Continua, gostava de saber mais.
— E conheci o Duarte - não te vou contar a história das abelhinhas e das flores - fiquei grávida e daí a uns tempos apareceu a Eliana. No início da gravidez já tinha percebido até que ponto os negócios do teu irmão e do sócio eram obscuros, bem como o que poderia correr mal, por isso confrontei o Duarte e decidimos que eu sairia de cena e só regressaria depois do nascimento da bebé.
— Ele esteve presente?
— No nascimento? Sim. Olhou-a com adoração, mas se queres que te diga não tenho a certeza se confio nele…
— Sábias palavras! Ele é o meu irmão caçula, amo-o, mas não sei ao certo quem ele é… Em pequeno era traquina como todas as crianças, mas com o passar do tempo chegou a ter requintes de malvadez… Por outro lado é meigo, terno…
— Exacto! É precisamente o que sinto! Umas vezes é tudo o que sempre quis, noutras não sei se não faria melhor se desaparecesse da vida dele… Como é que parecia não poder estar sequer um dia sem ver a menina e depois desaparecer por completo, sem nos dizer nada?! Já não sei se sou eu que estou a fazer um jogo duplo com ele e com o Giuseppe, ou se são eles que o estão a fazer comigo!
— Eu acredito que no fundo ele seja um bom rapaz, mas suspeito que possa ter algum distúrbio de personalidade… Quando ele nasceu a minha mãe ia ter gémeos, mas um dos fetos pereceu. Muitas vezes me indaguei se ele não ficou com a personalidade de ambos, como se o tivesse absorvido… Às vezes é extrovertido, animado, carinhoso, outras um autêntico eremita, frio, calculista… Não desisto dele nem desistirei nunca, sempre o encobri e atribuí os seus disparates e excessos ao facto do nosso pai não reconhecer o seu valor da mesma forma que o fazia comigo, mas nos arroubos de crueldade fiquei sempre indeciso se faria bem… Mas… sabes afinal onde se encontra?
— Não, apenas sei o que o Giuseppe me disse, que se resume ao facto de o ter contactado para receber instruções para a próxima “empreitada”.
— Sério? E em relação à Eliana, qual é a situação?
— Em relação à Eliana sei que a sua existência já é do conhecimento do Giuseppe e graças a isso não poderei jamais voltar a arriscar envolver-me nas operações dele. Não sei por quanto tempo conseguirei iludi-lo e levá-lo a pensar que tudo permanece igual, mas já não poderei voltar a ir ter com ele ao Dom Café.
— Vamos ter que agir com cuidado… A tua fonte não consegue descobrir onde está o Duarte? O tal Colaço já deve saber… Deve ter triangulado a chamada do Giuseppe se estiver a monitorizá-lo. E por falar nisso, achas prudente continuarmos aqui? Quem nos garante que o Giuseppe não está também a rastrear o teu telemóvel para descobrir onde estás e chegar até à Eliana? Assim podemos estar a colocar a tua irmã e a menina em risco…
— Bem visto! Vamos sair já daqui. Para já vamos até ao shopping pois preciso de fazer algumas compras, dado que não poderei ficar aqui nem ir nem para casa.
A caminho do shopping o telemóvel tocou:
— Patrícia?
— Sim. Agora não posso falar, ligo-te dentro de cinco minutos, ok? Estou a chegar ao shopping.
— Ao shopping? Ricas vidas! Não me arranjas um emprego desses?
— Arranjava, mas acho que não quererias. Ligo-te já. – E desligou. — Vasco, encontramo-nos dentro de meia hora na praça da alimentação, ok? Vou fazer compras, coisas de gaja.
— Certo, mas não vou perder-te de vista. Não tentes nada de ousado, ok?
— Não te aflijas, por enquanto estamos juntos nisto.
— Olá Tomás, já posso falar. O que descobriste?
— Acho que estou finalmente prestes a desvendar algo em grande… Lembras-te daquele conjunto estranho de letras - CHIAWITSWEL?
— Sim, já ouvi falar. Tem algo a ver com uma password, certo?
— Certo. Estás bem informada, mas não tanto quanto eu. Não se trata exactamente de uma password, mas sim de uma mnemónica para tal, e servirá para abrir um ficheiro encriptado relacionado com os negócios do Giuseppe… Se conseguirmos decifrá-la, talvez estejas a salvo, além de que daria uma bela história! Conseguiríamos o furo do ano, já estou a ver os nossos nomes por baixo da matéria.
— Deus te ouça Tomás! Só quero saber que a Eliana está salva, e descobrir o que aconteceu ao Duarte… Por falar nisso, tenho que ir ter com o Vasco, pois combinei com ele em meia hora na praça de alimentação e já passou pelo menos uma…
— Só queria a tua vida!
— Não queiras… Logo não sei onde vou ficar, vim às compras porque não posso ir para casa.
— Pois… Tem isso… Até te acolhia, mas aí ficávamos ambos expostos, além de que não aceito marmanjos lá em casa, e está-me a querer parecer que levarias o Vasco atrelado a ti!
— Levava pois, mas sobretudo não te quereria colocar em risco! És o meu único trunfo, neste momento.
— Cuida-te miúda! Qualquer coisa, liga!
— Certo! Beijinhos!


Capítulo XIII
João J. A. Madeira

O local era soturno. Cheirava a fritos, suor e outras coisas em que preferia não pensar. Não estava ali para isso. Sabia da imponência do seu corpo pela estatura, a barriga grande ainda que flácida, as tatuagens e a cabeça luzidia. E, sem olhar ninguém – putas velhas e chulos amantes à força pela falta de clientes – dirigiu-se ao balcão. As ordens eram claras: perguntar pelos nomes de Camões e Bocage.
Muitos se admirariam de o ver ali. Para todos ele era um cabecilha de malfeitores, o cérebro de uma organização, o maquiavélico agente de um crime pouco concreto mas planeado. Só ele, Giuseppe, sabia que todos estavam errados e que aquilo que realmente se desenvolvia nada tinha a ver com o que pensavam. Pior ainda: que um cérebro tem outros cérebros acima de si. Que lhe pagam e aos quais tem de obedecer. E por isso ali estava, pronto a enfrentar um barman com cara de poucos amigos, que o fixou duramente quando ele proferiu tais nomes. Era tão grande como ele e tornava-se, por isso, ridículo ter de responder àquela senha estúpida:
– Atirei o pau ao gato – disse o homem por detrás do balcão, ao ouvir os nomes.
– Mas o gato não morreu – respondeu Giuseppe
– Como? – Perguntou, agressivo, o homem enquanto dobrava os punhos da camisa sebosa.
Sentiu-se tremer, suar, a querer emendar o que dissera, a irritar-se consigo próprio por tão frágil atitude indigna de si.
– Desculpe. Espere – quase gritou – Mas o gato caiu no chão e ficou amarelo – conseguiu dizer sem evitar um suspiro no final.
O outro saiu do balcão e olhou-o dos pés à cabeça.
– Porta ao fundo – disse sem dele desviar os olhos – mas toma cuidado. Se sei que é falso… - e, com a mão, fez o gesto de corte de pescoço.
E ainda mais escuro que o bar lá fora. Ficou em silêncio até que os olhos, adaptados à escuridão, conseguiram descortinar duas figuras vestidas de tão negro como os óculos que lhes escondiam olhares e feições. Sem emitirem um som. Camões e Bocage? Porquê o silêncio em que só as moscas pareciam ter algo a dizer? Porque não falavam…
– Burro! – o berro rasgou o escuro da sala fulminando moscas e quase o atingindo – Besta! Asno de merda! Foi assim que cumpriste as ordens que recebeste? – Qual seria aquele? O Camões ou o Bocage? – Onde estão os Duarte’s que te pedimos e pelos quais te temos andado a pagar? Não entra nessa cabeça carregada de merda de caracol que não andamos aqui a brincar aos gangsters, aos raptos e aos dramas familiares? Que o nosso objectivo é a tomada do mundo? Consegues meter isso nesse cérebro de caganita de coelho?
Os gritos incomodavam. Quis responder, mostrar que era alguém. Abriu a boca
– Cala-te! Falarás quando te autorizarmos. Pedimos-te que arranjasses homens com o nome Duarte e, vais tu, com os teus miolos de refogado, trazes um que, logo após o primeiro tratamento, fica totó e vai para a rua como um sem-abrigo e dedica-se a um gato. Um gato vê tu bem, como se isto fosse a Protectora dos Animais; depois, não contente, trazes-nos um pasmado, um estúpido armado no Gandhi das contemplações ovelheiras que só lhe faltou meter a flauta de Pã no olho do cu para ficar mais parvo; como se isso não bastasse arranjas para aí um enredo com o outro, o que já tem filha para salvar e um irmão à procura dela, com mais a cunhada que não faz mais que arranjar intrigas ao telemóvel. Pensas por acaso que isto é a telenovela das nove ou o Big Brother? Isto é o TDTI, cabeça de burro! A conquista do mundo!
Havia que mostrar alguma dignidade. Não podiam gritar assim com ele que, para todos os efeitos, era considerado o grande cérebro do crime organizado e até por organizar. Estava farto que lhe falassem naquela merda do TDTI sem que lhe explicassem o que era. Era altura, disse-o, de o fazerem.
Camões olhou Bocage (ou seria o contrário?) e o outro anuiu.
– Ok! Explicaremos tudo. Mas a partir de agora ficarás sem desculpas para o insucesso e, se ele acontecer, sabes o que te espera – fez uma pausa – TDTI significa “Todos Diferentes Todos Iguais”.
Giuseppe quase saltou de contentamento. Finalmente algo com que se familiarizava.
– Ah! Gosto muito. Até tenho uma tatuagem no rabo com o nome deles – exultou.
Os outros olharam-se
– Que estás para aí a dizer? Quem são “eles”?
– Benetton, pá! – Respondeu satisfeito – São eles que usam essa frase.
– E tens Benetton tatuado no rabo?
– Numa bochecha. Na outra tenho McDonalds.
Entre os dois o silêncio impôs-se em duas bocas abertas de onde as moscas foram desviadas mesmo a tempo.
– Bem…continuemos. A TDTI é uma organização que pretende tornar todos os homens iguais fisicamente. Com o mesmo rosto. Por ordens do nosso grande Mestre, primeiro os Duarte’s, a seguir os Miquelino’s, depois os Inocêncio’s e por aí fora. Quando todos estiverem iguais passaremos então às mulheres.
– E qual é o gozo disso? – Perguntou Giuseppe – Eu gosto de uma gaja boa. Se ficarem todas iguais, vai enjoar.
– És mesmo burro chapado! Se todos ficarem iguais e aparecer um diferente, esse, que será o grande Mestre, terá o mundo a seus pés. Depois viremos nós, claro. Não tão bonitos mas, pelo menos, a destacarem-se. O grande Mestre, que tudo sabe, entende que basta arranjarmos um com personalidade vincada e que resista aos tratamentos, para que as modificações sejam feitas e arrastem os outros, pelo efeito da moda, para o efeito glorificante do TDTI. E nós, seu paspalho que não foi capaz de o fazer, já encontrámos o homem. Vive em Lisboa, é jornalista e chama-se Duarte. E é urgente que o capturemos. Junto com um tal Colaço, está na posse da palavra que pode abortar todo o plano: CHIAWITSWEL
Giuseppe bateu as botas em sinal do acato das ordens.
– É fácil apanhá-lo então. Tenho uma equipa a trabalhar lá. Faziam assaltos a bancos mas agora o que roubam quase não lhes chega para almoçar. Vão gostar de coisas diferentes.

                                                               ***

— Duarte! Amor! Não vistas a camisa sem veres o que te comprei!
          Uma camisa cor-de-rosa para vestir. Logo hoje, dia de reunião com o director. Que coisa mais amaricada e pimba com aqueles arabescos amarelos. Como dizer-lhe isso?
— Tão linda, querida. És um amor – e pespegou-lhe um beijo sincero nos dedos cruzados da mão.
O dia, nitidamente, não começava bem. E a continuação estava ali, naquele gabinete com uma secretária maior que o chefe.
— Duarte! É o último aviso. Ou você começa a escrever crónicas de jeito ou passo-o para a secção de necrologia. Está sempre a responder-me com uma investigação que tem em mãos mas não pensa no vencimento que todos os meses lhe é depositado sem trabalho visível da sua parte. Por isso, dou-lhe mais um mês. E não me apareça com essa camisa.
Que merda, devia ter metido gasolina. Teria de ir devagar mas aqueles faróis em cima dele… passa, camelo! Oh, não passa! Há cada saloio nesta cidade. Em Alcântara virou para as traseiras do Jumbo. Rua estreita e feia. E o carro sem descolar. Começou a achar estranho. No Calvário, escolheu ruas improváveis…e o carro perseguidor escolheu-as também. Subiu ao Alto de Sto. Amaro, meteu numa rua larga mas sem saída. Aí, antes do seu final, o carro ultrapassou-o e atravessou-se à sua frente. Inevitavelmente, parou. Do carro saíram quatro matulões. Que não respondesse e fizesse o favor de entrar no carro deles. Mas o tipo tinha o emblema do Benfica na lapela. E isso irritou-o. E erguendo a perna tentou acertar-lhe no emblema quando por detrás outro lhe socou as costelas e ele, que nada permitia por detrás, conseguiu pontapear-lhe os tomates ao mesmo tempo que os outros dois se acercavam dele pelos lados. Um murro bem assente nos queixos deitou-os ao chão quando o do Benfica lhe deitou as unhas à camisa rasgando-a. E, se não fosse pelo clube, pela mulher seria. Atirou-se sobre ele derrubando-o e partiu-lhe a cara quando os outros já lhe pontapeavam as costelas. Porra! Aquela merda doía! Com a mão esquerda fê-lo cair enquanto ao benfiquista, em jeito de homenagem, lhe deu três sopapos que o deixaram ko. Mas sentiu o outro a lançar-se para ele. Debruçou-se fazendo-o voar e bater com os cornos no alcatrão. Faltava um. E resolveu dedicar-se à agricultura apertando-lhe os tomates enquanto lhe perguntava: também és do Benfica? Mas, sem esperar resposta, saltou para o seu carro, engrenou, subiu passeios e rejubilou por, com a sua idade, ter despachado quatro marmanjos. Sabia ao que vinham. Doía-lhe o corpo todo mas sabia que as suas investigações em simultâneo com o Colaço tinham de dar nisto. Mas ainda era cedo. Até que as averiguações estivessem concluídas, ninguém poderia saber o que, longe, se congeminava. Nem a mulher.
— Que fizeste à camisa?
E agora? Que dizer?
— Caí ao sair do carro. Quando me tentei equilibrar, o pé resvalou numa pedra e só eu sei como não me matei.
O ar de dúvida. O olhar de desconfiança. As palavras que ferem “estiveste com uma mulher. Isso são rasgos de unhas, a pele tem sangue ainda. Por quem me tomas? Por quem me trocas?”. A discussão, o choro. A ida para a cama com os corpos apartados. Até que subitamente, a pergunta:
— Não estiveste mesmo com ninguém?
E a resposta verbalizada para lá das costas voltadas.
— Não. Já te disse o que aconteceu. Caí
— Prova-mo!
Oh carne dorida em músculos magoados. Onde a força dos ossos e dos nervos e o correr simples das veias? E como dizer “não” sem credibilidade? Um último esforço, um último querer e tudo ficaria bem.
Quando os corpos saciados se apartaram, a frase redentora:
— Hoje não te pergunto se gostaste. Nunca te tinha ouvido gemer tanto.


Capítulo XIV
Sónia Ferreira

O céu, carregado de nuvens pretas, anunciava uma tempestade eléctrica. O calor abafado, que pairava no ar, fazia escorrer o suor pela testa de Vasco que, impaciente, esperava por Patrícia.
- Finalmente! Pensei que te tinhas esquivado…
- Disse-te que não demorava… podes confiar um bocadinho mais em mim, não?! Estou aqui, certo?!
Vasco acabou por ficar aliviado ao reencontrar Patrícia. A atração física que sentia por ela fazia o coração borbulhar de felicidade.
- Vasco, não podemos voltar para casa. Tenho que tirar a Eliana do país. Estou com o pressentimento de que ela corre perigo… Giuseppe está na mira dela… não posso deixar que a luz dos meus olhos sofra qualquer tipo de ameaça.
O rosto de Patrícia demonstrava um misto de amor e pânico em simultâneo.
- Vou telefonar à minha amiga Larissa para ver se nos pode acolher, pelo menos esta noite.
Enquanto Vasco comia um hambúrguer com batatas fritas, Patrícia deslocou-se à cabine telefónica para ligar à amiga e, posteriormente, à sua irmã Celine para que preparasse Eliana que já iriam buscá-la.
A trovoada disparou, as nuvens pretas e carregadas de água encheram de imediato as ruas, a circulação de peões e de veículos transformou-se numa confusão sem fim. O ruído das travagens bruscas dos carros faziam-nos deslizar sobre o alcatrão intensamente molhado. A humidade da chuva ao penetrar no solo extremamente quente fazia surgir uma espécie de nevoeiro, transformando o dia em noite.
- Táxi, táxi! – Gritava, freneticamente, Patrícia fazendo sinal com o braço para que o primeiro carro que aparecesse parasse em frente ao shopping.
O táxi levou-os por entre aquela chuva intensa, onde os carros, em fila, andavam a passo de caracol. Aquelas pingas grossas que caíam no para-brisas e no tejadilho do carro tornavam aquela tarde ainda mais pavorosa.
Após o longo tempo que demoraram para percorrer escassos quilómetros, chegaram a casa. Enquanto Patrícia foi buscar Eliana, o táxi aguardou uns instantes para os transportar novamente até ao apartamento da Larissa.
Patrícia fez as apresentações e Larissa, muito amável, deixou os três muito à vontade. Informou-os que iriam passar a noite sós, porque a sua profissão de polícia exigia que ela se ausentasse para desvendar um crime ocorrido na cidade.
A pequena Eliana sentou-se em frente à televisão na pequena sala para assistir uma série de desenhos animados. Patrícia e Vasco, na cozinha, tomavam um café e conversavam, em tom baixo, sobre a eventual saída de Eliana do país.
- A minha filha precisa de sair imediatamente do país, pressinto que ela corre perigo. Giuseppe e a turma dele são gente mafiosa e sem escrúpulos… – disse com a voz trémula, repleta de preocupação.
- Espera… tenho o meu amigo Rui, que para mim é como se fosse um irmão. Ele tem uma habitação de turismo rural numa aldeia em Trás-os-Montes, norte de Portugal, que poderia servir como refúgio para a tua filha. É um sítio muito calmo onde a beleza da natureza se mistura com a hospitalidade e generosidade daquela gente. Ali, tenho a certeza, que não correria perigo.
- Parece-me uma boa solução… a minha irmã Celine, como está desempregada, poderia acompanhá-la, só que… neste momento não tenho dinheiro para as passagens…
- Quanto a isso, não te preocupes! Eu trato de tudo… pela minha querida sobrinha faço tudo - afirmou Vasco, orgulhoso, por proteger a pequena Eliana. Ele começava a sentir por ela um amor paternal.
Patrícia de olhos postos no seu portátil e no seu inseparável bloco de notas onde anotava todas aquelas pistas que, supostamente, serviriam ao desmembramento do enigma de Giuseppe e Duarte, começou por escrever “CHIAWITSWEL” numa folha branca como se esta fosse a verdadeira pista para desvendar os negócios sujos de Giuseppe.
As poucas vezes que Duarte a visitava e sempre que apanhava o telemóvel esquecido na mesa da sala ou no quarto, copiava, num ápice, as mensagens obscuras para o seu bloco de notas. Era neste pequeno maço de folhas que ela tentava, de há uns tempos para cá, descobrir alguma coisa de concreto para incriminar de uma vez por todas Giuseppe e os seus compinchas. Receava por Duarte, afinal era o pai da filha dela, porém não poderia continuar a viver naquele clima de insegurança. Fazia jogo duplo com o dono do Dom Café para sacar toda a informação que a conduzisse a uma pista para se fazer justiça e viver em paz com Eliana.
A mnemónica “CHIAWITSWEL” poderia ser uma password, mas também uma sigla qualquer relacionada com o tipo de serviços sujos que Giuseppe estava habituado a praticar. Talvez fosse um código verbal para a carga ou descarga de mercadoria ilícita. Este conjunto de letras também constava numa das mensagens de Duarte, que após o recebimento desta, saiu rapidamente sem despedidas.
Que raio de mensagem daria aqueles caracteres? Foi escrevendo várias tentativas na folha, mas não conseguiu chegar a uma conclusão que a satisfizesse. Desistiu, por instantes, e foi até à janela da cozinha para espairecer a cabeça. Enquanto observava o céu, que já se encontrava azul e pacífico e onde o sol voltava a sorrir com os seus raios luminosos, sentiu-se inspirada para, mais uma vez, voltar a sentar-se em frente dos papéis que a rodeavam.
Analisou, minuciosamente, todas as pistas escritas e, após muitas tentativas, compôs esta frase:
C – cocaína
H – hoje
I – importada
A – através
W – Morro do Careca
I – Interpol
T – tem
S – socorrido
W – work (trabalho)
E – encomenda
L – levantar 
Elaborou então uma frase: “Através do Morro do Careca, a Interpol ajuda no trabalho da distribuição e no levantamento do produto encomendado - cocaína.“ Se o seu raciocínio estivesse correto, estaria no caminho certo para apanhar uma série de criminosos, inclusive, agentes da Interpol. Guardou sigilosamente esta frase para mais tarde mostrar à sua amiga Larissa.
Vasco tinha adormecido, no pequeno sofá de pele, com a sobrinha ao colo. Patrícia, ao ver tal gesto fraternal, comoveu-se ao ponto de soltar algumas lágrimas gordas pelo rosto abaixo.


Capítulo XV
Luísa Vaz Tavares

Ali o tempo era diferente, tão diferente da quente e ruidosa Natal. E não se referia apenas ao tempo meteorológico, que esse já ela sabia e vinha preparada para enfrentar. Uma breve paragem em Lisboa dera-lhe para comprar agasalhos quentes para si e para a sobrinha Eliane.
No dia anterior a irmã Patrícia tinha-lhe pedido, com um trago de medo na voz, que acompanhasse a sua filha para um refúgio numa aldeia do interior norte de Portugal. Não houvera tempo para explicações, mas Celine amava a sobrinha e jamais recusaria um pedido da irmã, ainda para mais se a menina corria perigo.
A simpatia da Senhora Alexandrina cativara-a logo ao primeiro olhar, de imediato tinha percebido que arranjara ali uma confidente para os desabafos de uma vida atribulada. De estatura mediana e pele rosada pelos ares do campo, era ela que tomava conta da unidade de turismo rural, propriedade do amigo de Vasco.
- As pessoas aqui veem para descansar das correrias do dia-a-dia na cidade, é um lugar calmo e cheio de paz. – Dizia ela a Celine, enquanto a ajudava a acomodar-se, a ela e à sobrinha. – Este é o único sítio onde se podem hospedar e por isso sou eu que recebo toda a gente cá na terra. Aqui há um tempo é que andou por aí um rapaz que não ficou cá na casa. Andava lá pela serra e só descia cá à aldeia para buscar comida. Chamava-se Duarte…
- O meu pai também se chama Duarte – disse Eliane com aquela vivacidade própria das crianças.
Celine ficou pensativa, como se tivesse sido atingida por um pressentimento. Teria aquele Duarte algo em comum com o Duarte que Patrícia procurava? O pai de Eliane.

E Lisboa cirandava ao ritmo da brisa marítima, após o almoço.
- Estou, Colaço? É o Duarte…
- Qual Duarte?
- Como qual Duarte, que conversa é essa… quantos Duarte’s conheces tu? Sou eu, o Duarte do Jornal.
- Na verdade já lhes perdi a conta, mas adiante… diz lá, precisas de alguma coisa?
- Isto está a ficar complicado, estás aí nesse buraco a que chamas escritório?... Estou a ir para aí.
Não tardou a que Duarte estacionasse o carro junto ao número dez da Rua dos Contrabandistas e galgasse as escadas de dois em dois degraus até ao sótão. Bateu levemente à porta e entrou sem que Colaço tivesse tempo de fechar o documento que observava, completamente embevecido, no ecrã do computador.
- Isto é espectacular… os gajos planeiam dominar o mundo!
- Estás maluco ou quê? Eu venho aqui dizer-te que não quero mais saber das tuas investigações, que vou sair disso, e tu vens-me com essa conversa de gajos que planeiam dominar o mundo.
- Mas é isso mesmo, é a investigação… o plano é TDTI. E querem começar por ti.
- Mau, agora é que já não me está a agradar. Ontem levei um enxerto de porrada para me livrar dos tipos do Giuseppe, cheguei a casa tive que disfarçar para a mulher não perceber e agora tu com essa história mirabolante dos gajos que me querem apanhar para dominar o mundo.
- O Giuseppe, o Giuseppe… o Giuseppe é apenas um pau mandado.
- Como assim? Mas então não é ele o cabecilha de uma rede de tráfico de droga ou algo mais escabroso que me iria dar a reportagem da minha vida?
- Qual quê, o gajo é raia miúda como são os que te quiseram levar ontem.
- Não, eu não disse que me queriam levar para lado nenhum, os gajos quiseram foi gamar-me a pasta. Provavelmente pensavam que tinha alguma coisa escrita sobre o negócio, sei lá.
- Não Duarte, os gajos quiseram mesmo levar-te… na verdade ainda querem.
- Bom, já me estás a por nervoso com essa conversa. Desembucha lá de uma vez!
- Está bem, tem calma, é isso que tenho estado a tentar fazer. Senta-te aí que a história é longa.
Duarte puxou uma cadeira para junto da secretária que sustentava o computador, enquanto colaço vertia duas doses de whisky em copos descartáveis e começava a contar como tinha chegado até Camões e Bocage perseguindo Giuseppe.
Não tinha sido a primeira vez que no encalço de Giuseppe, Colaço tinha ido parar àquele antro no bairro de Triana em Sevilha e há dois dias tinha chegado bem perto da chave de todo o mistério. Com a ajuda de Naira, a gerente do La Latina, que seduzira com promessas de luxúria e glamour, conseguira o disfarce que lhe permitiu ouvir a conversa entre Giuseppe e aqueles dois que mais pareciam siameses: o Bocage e o Camões. Mais tarde alguns telefonemas para contactos que mantinha ainda desde o tempo de Africa e tudo ficou claro. O TDTI era um plano que visava uniformizar a humanidade e torna-la manipulável por aqueles dois.
Mas agora, graças à sua investigação, iria ser abortado mesmo no último momento. Antes de a vida humana na terra ficar em perigo.
- Isso quer dizer que sempre tenho reportagem? Que vou poder esfrega-la na cara do meu chefe, quando ele ameaçar transferir-me para a necrologia?
- Isso mesmo, Duarte. Vou tratar dos pormenores com a Interpol e tens garantido o exclusivo.
- Mas espera lá, não havia também aquela coisa do tráfico lá no Brasil?
- Havia e há… mas não vou fazer nada, vou deixar que a Patrícia brilhe. A jornalista que te falei, lembras-te? A miúda está a safar-se bem, está quase lá. E também já percebi que o meu sobrinho Duarte não está envolvido.
- Esses putos são o teu calcanhar de Aquiles…
- Oh pá, se são. Não fossem eles e já me tinha perdido no mundo… o Daniel pode ser um sacana mas conseguiu construir a família que eu quis e não consegui.

Uma semana mais tarde numa qualquer explanada de Lisboa.
-… e então pensaram que me tinha transformado no Gandhi lusitano?
- Depois de termos descartado a ideia de teres ido dedicar-te aos gatos, sim. Olha puto, outra destas e aqui o velho tio Colaço não aguenta.
- Prometo que vou ser um anjinho daqui para a frente.
- Pois, pois… descruza é os dedos antes de fazeres a promessa.

Fim

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