Os Segredos de Sobreiro Aparado



Capítulo I
João J. A. Madeira

Naquele dia, o vento sentia-se forte e frio. Parecia trazer com ele a humidade fresca da costa que corria agora babada pela voz irada dos Deuses. Varria as ruas, sacudia as recém-nascidas flores das pereiras e entrava atrevido por descuidadas e cúmplices janelas. Sem saber, esse vento, quão desejado e bem recebido era na pequena aldeia de Sobreiro Aparado. Por mor dos segredos que a sua gente queria ver arredados e que só um sopro assim forte podia levar.
Situada em plena zona Oeste, servida por modernas estradas rasgadas em campos para todo o país, trabalhava-se nela a terra tão rotineiramente como se via o mar, casava-se o evoluir das cidades com as mais ancestrais tradições. Terra, mar, progresso, memória, eram, assim, palavras não ditas mas feitas características de uma aldeia tão simples que tudo tinha para ser símbolo do País que a abrigava. Se não fossem os segredos. Essa praga feita de diz-que-disse, que se pensa, desconfia, sem se saber ao certo de quê, porque é segredo.
Até o nome ganhou de uma história nunca explicada. Conta-se que no terreno adjacente à primeira casa ali construída terá nascido espontaneamente um sobreiro. Que o dono deixou crescer. Até ao dia em que, na árvore já robusta e inchada de cortiça que como pele lhe revestia o tronco, cruzou grossa corda nos seus ramos e meteu nela o pescoço. Nunca se percebeu porque razão um homem com os pés tão bem assentes na terra, se fazia desaparecer a poucos centímetros de a pisar. Movido pelo desgosto feito raiva, o filho cortou o sobreiro pelo meio e abandonou para sempre a terra que ainda não tinha nome. Perto da casa, só o mutilado sobreiro ficou. Mas, persistente, com a seiva a dar-lhe força, desatou a desabrochar em novos e desordenados ramos que, um dia, alguém aparou como se moldasse escultural penteado. Ainda hoje, a esse mesmo sobreiro, quando as pontas aparecem teimosa e aleatoriamente fugidias, alguém o apara. Sem se saber quem o faz.
Aquele dia, em que o vento lambia as letras da placa toponímica que a história baptizara, era apenas o início de novos enredos, mais complexos ainda que os segredos que o padre Joaquim ignorava, por não ser ali residente e porque as suas preocupações eram outras. Não gostava de ir a Sobreiro Aparado, onde só comparecia normalmente ao Sábado para a única Missa semanal que os poucos fiéis justificavam. Mas o Octávio, aparecido morto na carrinha, dois dias antes, com uma bala parada no sítio onde antes batia o coração, merecia que alguém o ajudasse a elevar-se às portas do Céu. E por isso o tinham chamado. Para, de missal na mão, encaminhar o morto para onde o assassino o tinha enviado. Oh, Senhor, quantas vezes as dúvidas abalavam a sua fé. Quantas vezes dava por si a pensar que, com o sangue que lhe corria ainda jovem nas veias, poderia ter abraçado profissão mais empolgante que esta de acompanhar mortos e abençoar pecados. Mas, quando o pensava, logo ajoelhava frente ao altar num dedicado, veemente e insonoro pedido de desculpas. Onde agora estava, no silêncio quase sepulcral da Igreja, ainda só, pedindo a absolvição por tão pecaminosos pensamentos, sem se aperceber que, além do espírito de Deus, outra presença se fazia sentir em dissimulados passos que o fizeram dar um salto ao ver o vulto do Zinga.
— Que fazes aqui? Estou farto de te dizer para não vires à Igreja – disse irado mas em surdina.
— Teve de ser, padre. Eu soube que vinha cá e não quis perder a oportunidade de lhe mostrar o produto que aqui tenho. Pura, tão pura e branquinha como as vestes de uma Santa. Tão boa que só lhe posso dispensar 20 gramas.
Padre Joaquim olhava para um e outro lado, receoso que alguém aparecesse. Sabia não dever ter aquelas conversas ali e sabia também ser um pecado o brilho dos seus olhos pelo produto que não devia cobiçar quanto mais consumir.
— Mas tu és doido. Vim para o funeral do Octávio. Vai estar aí um inspector da Judiciária.
— Caguei – disse Zinga – Enterra-se o gajo, o inspector vai embora e o padre pode voltar para casa com as asas deste anjo.
— Pára com as heresias. Sabes bem que não gosto que fales assim. Tens as doses feitas? Dá-mas já antes que alguém veja.
O outro fez um ar de espanto.
— Dar? Oh, senhor padre…e o guito? Isto é branco e liberta o espírito mas não é nenhuma hóstia nem eu sou católico.
— Não és mas devias ser. Anda. Dá cá isso e vem ter comigo à sacristia depois do funeral.
Zinga pareceu ficar na dúvida. Por fim, entregou a embalagem.
— Olhe padre…eu faço isso. Mas se por alguma razão não me pagar, pode crer que lhe gamo a tralha que tem no altar e a substituo por coisas do chinês.
— Cala-te e desaparece. Eu não engano ninguém. E sabes bem que se faço isto é para ficar mais perto de Deus.
— Pois – respondeu Zinga, rindo – Com esta qualidade vai ficar bem perto. Não se esqueça de Lhe falar do Zinga. Afinal, é graças a mim que lá chega.
Ainda rindo, saiu pela porta da sacristia quando as primeiras pessoas entravam na Igreja. Sérias, convenientemente chorosas, iam sibilando orações com a mesma dedicação com que apreciavam as vestes de quem ia chegando. A Conceição nem tinha trocado de sapatos, certamente. Ai aquele cabelo da Inácia! Não saberia o que era um pente? E o Manuel? Era preciso ter lata. Se não falava com o defunto, se certa vez até andara à bulha com ele, que vinha ali fazer? Mas…espera. Quem era aquele? Não era dali nem dali perto, isso de certeza. Ah! O sujeito da polícia. Pois. Dizia-se que vinha para fazer perguntas. Pois que as fizesse. A sua boca é que não se abriria, que não era de intrigas. Mas era jeitoso o rapaz. Via-se logo que era de Lisboa. Roupa daquela não se via por ali nem nos casamentos. Ah, mas que disse o Padre Joaquim? Com isto tudo nem tomara atenção ao início da Missa.
Por fim, guardados os terços e feitas por dedos as cruzes em sinal, as pessoas ficaram-se pelo adro. Era tempo de enaltecer as virtudes do morto antes de o levar a enterrar. E, se as conversas iam para o morto, todos os olhares caíam porém no desconhecido. Que, matreiro, experiente, perscrutava rostos em busca de presa fácil no falar. Até que se deteve na esbelta e solitária figura de Albertina que, podendo não ser acessível no falar, talvez lhe abrisse a porta a outras acessibilidades. Afinal, que mal havia em retirar algum prazer do trabalho?
— Muito boa tarde – disse, de fugaz identificação em riste – O meu nome é agente Seguro da polícia Judiciária. Posso fazer-lhe umas perguntas sobre o defunto?
Ela sorriu, ligeiramente corada e olhando o chão. Já reparara nele e nunca pensara tê-lo agora junto a si. Por isso, não o entendera bem.
— Pode, sim – respondeu com o seu melhor ar angelical – Sabe? Eu pensava que o senhor era polícia. Nunca pensei que fosse dos seguros.
Riram-se ambos quando ele repetiu a apresentação, imediatamente antes de se posicionarem no final do cortejo que acompanhava o carro funerário. A pé, corpo inclinado para a frente na resistência ao vento, mas cada vez mais afastados dos restantes, ele foi fazendo perguntas sobre o Octávio e ela foi respondendo com sorrisos e rubores da face. Quando o morto foi deitado à cova, já eles sabiam as suas idades, onde viviam, os nomes próprios. Casualmente escondidos por um enorme cedro, ele disse-lhe que ia precisar de estar com ela de novo para recolha de elementos. Atrás do cedro, ela soube também que ele estava a engatá-la mas, por aquele, não se importava rigorosamente nada. E disse que sim. E ele perguntou se podia despedir-se com um beijo. E ela não disse nada. Apenas fechou os olhos. No preciso momento em que pelo cemitério ecoou uma voz:
— Tina. Oh Tina!
Ela deu um salto. Com as mãos afastou Seguro dizendo “deixe-me agora. Tenho de ir. É o Tomé” antes de encetar repentina fuga.
— Mas quem é o Tomé? – Ainda perguntou Seguro.
— O meu marido.



Capítulo II
Fernanda Cadilha

Albertina seguiu, passo apressado e firme, em direcção ao marido. Tinha consciência da sua beleza e sensualidade. Cada movimento do seu corpo parecia experimentado para suscitar olhares gulosos e sôfregos de paixão. Desde muito cedo despertara o desejo masculino e suscitara a inveja nas outras raparigas. Sabia-o e usava-o a seu favor, sem qualquer escrúpulo ou arrependimento. E os muitos dissabores que daí provieram não a demoveram nunca das decisões que até então tomara.
O agente Seguro radiografou cada tornear das belas porções do seu corpo que, esbelto e apetecível, baloiçava, salientando um traseiro harmonioso no jeito e nas proporções. Sorriu e os seus olhos brilharam, deixando transparecer os pensamentos que o invadiam. Retirou o telemóvel do bolso para se certificar que tinha gravado o contacto de Albertina. Apertou-o e, com um ar triunfante, dirigiu-se para a pequena pensão da aldeia, radiante com a expectativa de um novo encontro.
Na outra ponta do cemitério, a alguma distância do cedro, Albertina e Tomé gesticulavam. As suas vozes confundiam-se com o sibilar do vento. O ar entediado de Albertina fazia adivinhar o desagrado da conversa. Seguro passou mesmo ao lado e continuou, ignorando-os.
- Vá lá, diabo de mulher! Diz-me quem raio é aquele palhaço com quem estavas a falar ou arrebento-te os focinhos.
- Ó homem de Deus, quantas vezes te disse eu que é da polícia Judiciária e que está na aldeia para descobrir como é que o infeliz do Octávio morreu?!
- Pensas que me convences, como das outras vezes? Anda, grande cabra. Quem era aquele palhaço, todo bem vestidinho e cabelo lambido?
- Já te disse, homem. É um agente. Lá estás tu com as tuas desconfianças. Lá tenho eu tempo para pensar nessas coisas.
- Não me venhas com as tuas tretas. Mais uma vez que seja e mato-te.
Albertina encolheu os ombros, olhou-o com desprezo, virou-lhe as costas e foi-se embora. Sabia que ele não faria nada, que não a seguiria, nem sequer tentaria impedir que o deixasse ali, enraivecido, mas impotente. Deixara de o amar havia já muito tempo. Faltava-lhe a coragem para o abandonar.
Tomé quedou-se imóvel. Apenas o olhar parecia viver naquele corpo, outrora possante e agora frouxo e entorpecido. Deixou-se cair no banco de pedra e ali permaneceu durante algum tempo. Nem o vento, que agora soprava violentamente, o perturbava. Por fim, levantou-se e dirigiu-se ao portão de saída, mais morto que os próprios mortos que ali habitavam.
A única pensão de Sobreiro Aparado era muito mais modesta do que o agente Seguro esperava. Estava habituado a um maior conforto, lá na cidade, e só o pensamento em Albertina o fazia desejar ali permanecer. Apagara as luzes e, agora, a única iluminação do pequeno quarto era a que vinha da rua. Deitado, Seguro via os contornos de Albertina em todas as sombras vindas através da janela. Tinha ainda presente o seu cheiro … a sua imagem, olhos fechados, lábios atrevidos e receptores… Ah, maldito! Havia de aparecer logo naquele momento em que a presa estava ali, prontinha a ser comida. E que belo repasto iria ser...quadris bem torneados e recheados de carne tenra e suculenta!…
Levantou-se e foi fumar um cigarro à janela. Em frente, lá estava o sobreiro aparado. Tinha ouvido falar na história e no mistério que a envolvia. Esboçou um sorriso ao pensar no ridículo de tal crença.
Do outro lado da rua, também Albertina olhava através da janela do seu quarto, que ficava na parte lateral da casa. Em frente, o maldito sobreiro aparado que a perseguia nos sonhos desde criança. Na cama, Tomé ressonava, saciado. As dúvidas haviam-se dissipado, agora que a possuíra. Seria assim até que a incerteza viesse novamente assombrá-lo.
Ainda o galo não cantara e já Albertina tomava o pequeno-almoço na cozinha, que também servia de sala de jantar. A casa era pequena e modesta. Não se queixava. Era a única realidade que até então conhecia. Por vezes, quando assistia às telenovelas, sonhava em ter uma casa semelhante às que via na televisão. Mas sabia que não passava de um sonho. Contentava-se com o que Deus lhe dera e achava até que ele fora generoso. Era a mulher mais bonita da aldeia, tinha uma casa, um marido que lhe garantia o sustento. Se não fosse aquela praga…



Capítulo III
José Bessa

Seguro era um urbano, fato de moda, sapato de marca, cabelo lustroso, queixo escanhoado, boas maneiras, palavra fácil; tinha nos hábitos longas noites de boémia, um fino traço loiro sobre os lábios vivos rematava a figura atraente que se orgulhava de manter. Mas aquela noite era de vigília; uma vigília de cansaço e excitação. Manteve-se à janela olhando a pequena praça, fumando cigarro após cigarro, inquieto entre o que escrever no relatório e a silhueta da Albertina. A penumbra sombreava cada vez mais o dia que seria de regresso.
Ali ao lado, num som rasgado de fecho eclair, a D. Aldina da mercearia corria a portada metálica. Era o despertador da praça, mas Seguro não era de lá e deu um salto na cama.
- Assim como assim são horas de levantar.
Veio à janela. Albertina descia a soleira do prédio em frente, saia rodada, xaile sobre os ombros, lançou um olhar para a luz acesa no primeiro andar, sorriu e estugou o passo.
- Bom dia D. Aldina.
- Bom dia Tina. Tão cedo? Queres café?
- Pode ser, obrigada; e uma carcaça para o pequeno almoço. O Tomé tem de sair cedo…
O Tomé, desde que aceitara o lugar de motorista vivia mais tempo no camião do que em casa.
Até tinha um fogão a petróleo para as refeições na estrada. Vida de cão! Mas vida livre. Só a constante desconfiança na Albertina o roía. Nem queria saber se tinha razões para isso ou não. Andava sempre roído, mau humor, desconfiado. Era capaz de desafiar um comboio a soco só de pensar que ela lhe podia fugir. Hoje vai com uma carga de fruta para Espanha. Sabe que a viagem dura dois dias e anda em guerra com o Mundo há quatro.
O sino da capela badalou, ambas olharam para fora, viram entrar Seguro no momento que deflagrava um estampido, um fósforo riscado na sombra, como se o sino explodisse mesmo ali, ali mesmo ao nível dos seus olhos, na sombra do beco em frente.
Seguro, instintivamente, atirou-se ao chão levando com ele Albertina; a D. Aldina pasmou com a chávena a tremer-lhe na mão, o testo da cafeteira tamborilava no fogão, o gato saiu espavorido agrafando no ar um miado lancinante, abriram-se janelas de rompante, escancararam-se portas, o dia que teimava em chegar estalou de rompante. Ouviu-se um grito de terror.
- Acudam! Acudam!
O Zinga em espasmos, numa poça de sangue gorgolejado da cabeça. A leiteira, que gritara ao ouvir o estrondo, ainda viu um vulto, uma sombra disforme, mas não parava de gritar acudam, acudam! Sem saber bem o que dizia ou fazia, um cheiro a queimado pairava no ar, dava-se início à missa das sete, mesmo ali ao lado, na capela da Sra. da Agonia.
Fora sempre um desgraçado, o Zinga; desde catraio que só o utilizavam para recados. Utilizavam sim, é o termo. Não era um serviço que solicitavam, pedir estava fora de causa, era uma ordem que emitiam; fosse quem fosse – Ó Zinga vai ali e, e o Zinga lá ia, normalmente cabisbaixo, normalmente revoltado, normalmente moendo baixo, mas ia, ia e voltava com o recado feito, buscando a paga. Depois passa cá!, depois. Sacanas, era assim desde sempre, mesmo agora que, já adulto, não tinha onde cair de morto. Pudera! foram matando o Zinga aos poucos com o despudor. O Zinga foi crescendo com a barriga a remoer maus tratos e foi ganhando rancores, maus humores, más conclusões. Quando alguém se serve de outrem não lhe tem respeito, confidenciava aos botões que restavam.
Há gente assim, por mais que se esforcem não há em quem neles confie.
Com catorze anos fez o primeiro assalto, ousadia de susto, coisa de pasmo na terra embora de pouco estrago. Valeu-lhe uma temporada na tutoria. Como escape à clausura só a missa de domingo no seminário, às sete horas, para não incomodar as visitas aos seminaristas agendadas pela manhã, com mais missa, ou para a tarde para os familiares de longe. Lá iam, fila indiana, uniforme, cabeça rapada, botas fora de medida, barriga aguardando a malga de cevada com pão. Jejum exigido para a comunhão celeste.
Foi lá que conheceu Joaquim, também ele um preso; também ele uma criança. Nunca tinha visitas. Parece que não tinha família.
Nisso o Zinga era um afortunado, ainda tinha o pai, o Manel recoveiro, que também fazia recados. Recados de maior importância para maiores distâncias e com outro peso. Coisa de adulto. A mesma paga. Depois passa cá! Mas o Manel passava; passava, berrava, exigia e por isso era um mal-educado. Um burgesso que só servia para fazer recados.
Acabada a pena o Zinga voltou para casa. Olhou para o pai e eram dois velhos.
De poucas conversas, o Manel recoveiro abraçou o filho. Foi um reencontro. Quatro olhos húmidos, duas tigelas de caldo saldaram a saudade. Ambos tinham muito que contar. Confidências de casebre prevenindo males do Mundo.
- Vens-me de barbas ó rapaz!



Capítulo IV
Susana Fonseca

O dia anterior tinha sido de grande alvoroço na aldeia do Sobreiro Aparado e Albertina sentia-se inquieta, num misto de medo e excitação. Sozinha em casa, deitou-se sobre a cama a folhear um livro naquele fim de dia abafado. Por aquela altura já Tomé estaria numa qualquer cidade do país vizinho. Sabê-lo tão distante dava-lhe um certo prazer, e o descanso de pelo menos naquela noite não ter que lhe entregar o seu corpo para que as crises de ciúme se acalmassem! Apesar de não lhe faltar nada, estava farta daquela vida vazia de significado e de emoção.
Os seus pensamentos fugiram para lá das páginas do romance que tinha em mãos e, de um momento para o outro, era ela a personagem de uma história de contos de fadas que se tecia na sua mente. Do seu quarto, na sua modesta casa na pequena aldeia do Sobreiro Aparado, Albertina voou até Lisboa.
- Esqueci-me de te dizer que não moro sozinho! Espero que não te importes! - Disse Seguro de sorriso nos lábios enquanto metia a chave à porta.
Assim que a porta se abriu saí disparado e directo a Seguro um belo cão de grande porte. Pêlo raso, cor caramelo, olhos castanhos avelã e com não menos de 20 Kg. Seguro baixou-se para abraçar o cão falando-lhe com uma voz carinhosa enquanto este abanava a cauda alegremente e o lambia no rosto como se tivesse a saborear um belo petisco. Havia sem dúvida ali uma cumplicidade que Albertina nunca tinha observado. Na aldeia, as pessoas eram as pessoas e os animais eram isso mesmo, animais. Nunca se tinha visto por lá nenhuma cena como aquela. Seguro parecia estar a abraçar um filho no regresso a casa após um dia de trabalho! Albertina observava aquela cena a pouco menos de dois metros de distância e se por um lado achava aquela ligação e aquele momento disparatado, nos seus lábios rasgava-se um sorriso terno.
- Este é o Xerife, o meu ‘cãopanheiro’! - Disse Seguro, sorrindo. 
Albertina respondeu apenas com um sorriso porque não sabia mesmo o que dizer.
Já dentro do pequeno apartamento, no 8.º andar de um elegante prédio que até tinha um porteiro, Albertina olhava com atenção e cuidado para todos os recantos enquanto Seguro se preparava para ir tomar um banho.
Estou com muito calor, preciso de me ir refrescar. Fica à vontade! O Xerife faz-te companhia. - Disse Seguro seguindo para o quarto e fechando a porta atrás de si.
Albertina sentou-se no sofá passando as mãos pelo tecido que lhe pareceu incrivelmente macio. A seus pés, Xerife olhava-a com atenção como se quisesse conversar com ela. Era um apartamento pequeno mas incrivelmente bem decorado. Móveis modernos, cortinados e almofadas a combinar, estantes repletas de livros... Albertina nunca tinha visto nenhuma casa assim, só mesmo nas novelas, mas tinha a certeza que não se importaria de viver num lugar assim.
Minutos depois, Seguro regressa vestindo umas calças de ganga e uma t-shirt preta que lhe favorecia os contornos definidos do tronco. Laurinda olhou para ele com desejo e pensou em como seria maravilhoso ter aquele homem dentro dela. Mordendo os lábios discretamente num gesto sedutor, olhou para ele e perguntou:
- Já estás mais fresco?!
Seguro aproximou-se dela e num gesto delicado colocou-lhe o braço à volta da cintura fazendo com que Albertina se levantasse e o seu corpo se encostasse ao dele.
- Posso mostrar-te! - Disse seguro com ar provocador, beijando-a.
Xerife afastou-se de mansinho enquanto Albertina se reclinou para o sofá, deitando-se. Puxou Seguro para si e beijou-o com desejo. Abriu suavemente as pernas indicando que queria ser dele, ali e naquele preciso momento. Seguro levantou-lhe o vestido de linho preto e beijou-lhe suavemente as pernas enquanto terminava de a despir. Os seus corpos entregaram-se ao prazer de uma forma que Albertina não conhecia. Por momentos pensou que não seria possível aguentar tanto prazer...
- Tina! Tina! Oh Filha! Tina! Por favor abre a porta! Tina!
Albertina acordou repentinamente do sonho que sonhava acordada. Sentia-se excitada de tal forma como se tivesse acabado de viver tudo aquilo. Alguém batia fervorosamente à sua porta. Era a D. Aldina. Que se passaria?! Albertina levantou-se, recompôs a sua roupa e foi até à porta.
- Que se passa D. Aldina?!
- Oh filha... senta-te aqui por favor! - Disse a D. Aldina de mãos a tremelicar e de olhos cheios de lágrimas.
- Foi o teu Tomé, filha! O teu Tomé teve um acidente lá na Espanha com o camião.



Capítulo V
Casimiro Teixeira

- Foi Deus! Foi Deus! – Gritava Albertina para si mesma, para dentro, chorando de arrebatamento perante as palavras da vizinha. De vez em quando tinha de parar, para não dar parte de falsa, e escutar com uma atenção desmedida a algaraviada sem sentido que a outra fungava. – Meu Deus! – Continuava depois, - então já não há mais nada a fazer pela situação? Morto? O meu Tomé, morreu? O que será de mim.. Meu pobre Tomé, meu pobre e bem amado marido, foi Deus quem te levou. Foi Deus!
Apoiou-se na outra com a força incerta do engano, lavrando-lhe os ombros com lágrimas que caíam por alegria mas que, ainda assim, por serem bem semeadas no pranto que ali alcantilava, até soavam a pesar.
- Então o que se passa agora? Raio de terra amaldiçoada esta! Não há um dia de paz neste fim do mundo? Quero ir à minha vida e não vejo jeito de sair daqui! – Exclamava o padre Joaquim, que de passagem assistira ao alvoroço.
- Amaldiçoada mesmo senhor padre. – Assentia Aldina. – Isto é bruxedo que caiu sobre nós. Que não restem dúvidas disso.
Com um relance pela postura soluçante de Albertina, o pároco parecia já ter adivinhado tudo.
- O Tomé?
- O meu Tomé sim, senhor padre! – Erguia-se esta, mostrando-lhe o rosto corado e inchado pela ablução forçada das lágrimas. - Deus levou-o, assim, sem mais nem menos, lá para as bandas da Galiza. E agora, e agora o que vai ser de mim? – E voltou ao abrigo seguro do ombro da vizinha para aí acalmar a sofreguidão encenada.
- É bruxedo, digo-vos eu. – Insistia Aldina. – Então, todos sabemos bem de que laia é feita aquela gente desses lugares pagãos, lá de cima. Não acha senhor padre?
- Cale-se mas é mulher! – Bramiu o padre, virado a ela. – Que pouco ou nada ajuda com isso.
E Deus, sentado lá no alto, mantinha os olhos postos neste lugar de ventos agrestes e tristes infortúnios, elaborando o seu plano, e deixando que a perdição avançasse como uma torrente de primavera. Lenta mas irreversivelmente, sem interrupções. Entretanto, nos abismos do Inferno, os diabos andavam furiosos e impacientavam-se.
- Não me digam. Outro homicídio? – Questionava-os o agente Seguro, enquanto pacientemente descascava uma maça com um canivete de bolso, firmando a sua pose inteiriça no encosto do malfadado sobreiro.
- Não, não… – atalhou de imediato o padre. – Hoje não temos nada disso. Acidente apenas. Foi o Tomé Bagunte, o marido desta pobre senhora aqui. – Afirmou apontando na direcção de Albertina, que levantou um olho no sentido oposto.
- Curioso! – Exclamou o primeiro. – Muito curioso.
- Curioso nada, - interrompia-o Aldina – isto é mas é bruxaria senhor guarda. Ainda nem bem sabemos se baixamos à terra o desgraçado do Zinga, e cai-nos outra desgraça em cima. Não vejo outra explicação. Bruxaria!
- Cale-se mulher. – Instigava-a o padre puxando-lhe o braço.
Seguro acercou-se, levando um naco de maçã à boca, e oferecendo de seguida um outro, a Albertina.
- Lamento imenso pela sua perda minha senhora. Por favor... – disse, passando-lhe o pedaço de maçã para a mão – esperemos em boa fé, que tenha sido efectivamente um acidente o que vitimou o senhor seu marido.
- Homessa! O que quer o senhor dizer com isso? – Inquiriu o padre Joaquim. – Então se o camião do homem se esbarrou, o que raio é que haveria de ser?
- É de facto curioso que me faça essa pergunta senhor padre. Curioso, sobretudo, por ser o senhor a fazê-la.
As duas mulheres ficaram em estado catatónico a observarem-no, esperando pela sequência daquele discurso.
- O senhor agente não está certamente a dizer que eu...
- Eu não digo nada meu caro padre Joaquim, para já.
- Mas isto é ridículo. Um absoluto absurdo. Está a acusar-me de alguma coisa?
- Depois de muita conversa de circunstância, de muitos deslumbres e falsas pistas, depois das mais incríveis coincidências, a verdade, essa, vem sempre ao de cima. Por isso acho toda esta história tão curiosa padre, pois dediquei grande parte da noite passada na observação do corpo do senhor Recoveiro.
- Quem? – Interpelou-o Aldina.
- O Zinga, mulher. Está a referir-se ao Zinga! Cale-se mas é de uma vez. – Cortou o padre.
- Como dizia eu, - continuou o inspector - passei grande parte da noite a investigar, a fazer o meu trabalho, bem se vê. As causas da morte são claras: perda maciça de sangue. O golpe foi certeiro e muito bem aplicado. Uma arma branca, rudimentar decerto. Tenho alguma experiência nestes assuntos, uma arma branca de fabrico caseiro, muito ao estilo daquelas que circulam clandestinamente pelas prisões, sabe?
- O Zinga morreu mesmo? – Insistia a D. Aldina.
- Receio que sim minha senhora. Pois como disse, o golpe foi fatal. Resta-me uma última questão que gostaria de colocar aqui ao senhor padre. Em privado, por favor.
Parecia que o sangue inteiro se tinha sumido num ápice do corpo do padre Joaquim. Estava como que prestes a sucumbir, ali mesmo, defronte do velho sobreiro aparado.
- Mas…
- Sim, minha senhora? – Interpelou-a o polícia, voltando-se agora, novamente na direcção de Albertina.
- Só gostava que me explicassem o que raio é que isso tem a ver com a morte do meu Tomé? – Perguntou ela.
- Nada filha. – Atalhou a vizinha – este homem não diz coisa com coisa. – Sussurrou-lhe ao ouvido. – Isto é bruxedo, pronto! Está tudo dito.
O padre desta vez, já não a mandou calar. Tornara-se pálido como uma alma penada e incapaz de suster ao alto, deslizou pelo sobreiro até se sentar desamparado a seus pés. Parecia estar à espera daquilo, e, se conseguisse falar teria sido rude.
Aldina vendo-o assim abatido como que por uma labareda dos próprios infernos, aproximou o seu rosto do dele e viu-lhe as pupilas raiadas de sangue. O seu bafo envolvia-a. Um calor azedo.
- Afinal de contas… bem, não veio o senhor saber sobre a morte do Octávio? Já descobriu alguma coisa?
- Foi o demo filha. Garanto-te que foi o demo quem o levou, a ele e ao pobre do Zinga. Desgraçados!
- Cale-se lá de uma vez com isso, mulher! – Exclamou Seguro desta feita, visivelmente irritado.
– Sobre o Octávio tenho já uma teoria também, mas ainda é muito cedo para fazer especulações precipitadas. Espero os resultados do relatório balístico que virá de Lisboa. De qualquer forma, vinha cá hoje de manhã para falar consigo mesmo, precisamente sobre esse assunto.
- Comigo? – Inquiriu Albertina muito admirada.
- Sim. Consigo mesmo. Você, e você também, senhor padre Joaquim, estão a partir de agora confinados a prisão domiciliária, pendentes de posteriores investigações e inquérito.
- Ai, não posso crer! Ai Tomé, meu bem amado Tomé, que falta que tu me fazes. – Fingiu um desmaio, mas sem grande efeito dramático.
O inspector irritou-se com o assombro da criatura. Fechou o canivete, que trazia ainda de gume exposto, e guardou-o no bolso interior do casaco. Cuspiu duas pevides de maçã que passaram voando quase rentes ao rosto desconcertado do padre, e num pranto perdeu a calma da compostura.
- Três pessoas estão mortas percebem, isto não é nenhuma brincadeira, ouviram bem?
Albertina, ainda assim, e já extraordinariamente reposta da falsa síncope, tentou atirar-lhe à cara uma gargalhada feroz, algum som capaz de o assustar, para ver se lhe abalava os sentidos firmes da fúria, mas conseguiu apenas um frouxo gargarejo. O inspector da judiciária trazia uma fina teia de rugas a enfeitar-lhe o rosto, e já não a mirava com os mesmos olhos brilhantes de luxúria, como no dia anterior. Observou-o novamente, de cima a baixo, e pareceu-lhe mais velho agora. O cabelo todo puxado para trás, mostrava tufos crescentes de uma velhice alvadia, e os olhos encovaram-se em poucas horas, mas as carnes mantinham-se rijas, e os gestos também, firmes e precisos.
- Desvendarei os segredos que assolam esta aldeia, um a um. Hei-de chegar ao fundo da questão, ou não me chamo eu Ernesto Seguro.



Capítulo VI
Luísa Vaz Tavares

Dez minutos mais tarde, depois de Seguro ter falado ao telemóvel com alguém que nenhum dos presentes percebeu quem seria, um silêncio súbito terminou com a algazarra que havia sido provocada pelo comunicado do inspector. Prender Albertina e o padre? Que quereria dizer aquilo, seriam eles os assassinos?
Um jipe da GNR estacionou mesmo junto ao sobreiro aparado.
- Meus senhores, esta é a senhora, que terão de acompanhar – Seguro informou indicando Albertina. O que provocou mais um pranto desesperado.
- Ai senhor inspector não me faça isto! Por Deus senhor inspector, o meu Tomé coitadinho, não é agora que se finou que o vou abandonar. Tenho de tratar das exéquias, não posso ficar presa.
- Não se preocupe que tudo será tratado, eu agora vou acompanhar o senhor padre e de seguida passo pela sua casa para tratarmos desse assunto. – Palavras de Seguro que em nada acalmaram a histeria de Albertina, que levada pelos dois homens da GNR continuava a ladainha. - Tomé, meu querido Tomé, a falta que me fazes!... – E a Dona Alzira lá continuava com a mesma conversa.
- Não pode ser, isto não pode ser, agora prenderem o senhor padre, isto é coisa do demónio, já disse.
O padre Joaquim exigiu ficar preso na sacristia da igreja. Junto de Deus, como ele havia alegado em sua defesa, que tudo aquilo era profundamente injusto mas que era um homem de Deus e que este havia de lhe valer, alegações que em nada demoveram o inspector, mas que ainda assim aceitou, até porque também lhe convinha. A sacristia era um bom lugar para o manter debaixo de olho, e os olhos raiados de sangue mais o hálito quente e azedo do padre não tinham passado despercebidos a Seguro.
Nem aqueles últimos acontecimentos passaram despercebidos à população. Em pouco mais de uma hora a notícia espalhara-se por todos os cantos de Sobreiro Aparado e agora não havia ninguém que não arriscasse o seu palpite. A mercearia da D. Alzira era o principal centro de conversa, cada um com a sua teoria, todos falavam ao mesmo tempo, ouvindo-se apenas a si próprios, quando viram Seguro aproximar-se e todos ficaram em silêncio, seguindo-lhe os passos apressados com que se dirigia para o ajuntamento. – Já deve trazer mais alguma notícia. – Murmuravam alguns entre dentes.
Mas ele passou e nem sequer desviou o olhar do percurso que seguia. Ia para casa de Albertina, já tinha interrogado o padre Joaquim e agora ia falar com ela, conforme lhe prometera. Os guardas que a vigiavam encontravam-se à porta, cumprimentaram-no e desviaram-se para lhe abrir caminho.
Com um toque suave na porta anunciou a sua chegada e entrou sem esperar que a dona da casa assentisse.
Albertina estava na sala, sentada num sofá e indicou-lhe o outro em frente para que ele se sentasse também. Estava diferente, nem parecia a mesma de há umas horas, já não apresentava aquele histerismo teatral, tinha apenas no rosto uma tristeza de luto encenado e tinha mudado de roupa. Vestia saia preta justa e camisa aberta a deixar vislumbrar os seios perfeitos, o que aliado a um cruzar de pernas bastante sensual fez Seguro esquecer todos os propósitos que ali o trouxeram. Levantou-se de onde estava e foi sentar-se ao lado dela poisando-lhe a mão acima do joelho e fixando-a com olhar profundo.
- Lamento muito…
- Não, não lamente… - balbuciou Albertina, encenando um olhar provocante e uma boca sensual de lábios entreabertos a roçar os dele. Era tudo o que ele precisava para dar largas ao seu instinto de macho, desejoso de possui-la, assim selvagem incendiando com fogo lento a combustão dos sentidos já em chamas.
Ela enlaçou-lhe os braços à volta do pescoço, puxando-o mais para si e sentindo que os seios se lhe endureciam contra aquele peito de músculos bem delineados. Voltava a senti-lo atraente, a fina tela de rugas, os tufos de cabelo da tal velhice alvadia, os olhos encovados, tudo isso desaparecia debaixo daquele corpo másculo que transbordava paixão. Desde o dia em que se conheceram que Albertina não deixara de pensar na irresistível atracção que sentia por ele, e quase que podia jurar que o mesmo se passara com ele, pelo menos, as mãos fogosas com que lhe arrancava a roupa e lhe acariciava o corpo assim o pareciam dizer.
Completamente rendidos aos prazeres da carne, esqueceram que ela era a prisioneira e ele o carrasco, sucumbindo ao pecado. Um com o outro, um no outro, entoaram gritantes cantos de luxúria, numa exorbitante dança de Eros que já tinha rolado do sofá para o chão, tudo compactuava com aquela tórrida explosão de desejo incontido. Os móveis, os cortinados e a janela aberta que permitiu ao sobreiro aparado atravessar-se na trajectória do olhar de Albertina, como um choque magnético que subitamente a fez quedar-se estática.
- Porque não me largas, maldição?!



Capítulo VII
Clementina Barros

Joaquim, preso dentro daquelas paredes que o amedrontavam, sentiu Octávio e o sobreiro. Aquela árvore mutilada tinha um significado, escondia traições, amores encontrados, desencontrados e ainda uma morte misteriosa que envolvia os sonhos dos habitantes.
Foi sentado no chão daquele sobreiro, que tinha visto pela primeira vez Octávio, palito na boca, olhar relaxado, cão desperto como se estivesse sempre a vigiar um rebanho. Observou-o durante bastante tempo, hesitando uma conversa, um olhar como se soubesse que a partir daquele dia tudo seria diferente. Sempre tinha sentido na obscuridade do sentir, dentro de paredes, sem conseguir gritar. Neste sentido qualquer proximidade, ou relação representava um início…
Octávio tinha aparecido para perturbar uma paz fingida. Era um rapaz rude, conversas simples que contemplava num silêncio apaziguador horas e horas a fauna e a flora….
Octávio quando o avistou, de imediato acenou e convidou-o a sentar, partilharam pão, queijo e um pouco de vinho. Questionou Joaquim sobre a existência de Deus e como o mesmo coexistia com a perda, perguntas às quais Joaquim não soube responder, mas o Padre Joaquim sabia responder. Conversaram durante horas com silêncios intercalados. Octávio insistiu num novo encontro, naquele mesmo local e Joaquim aceitou.
No silêncio da noite, tinha pensado naquele dia, na “branquinha” aquele pó milagroso que lhe tinha dado, a sensação de poder, de ausência de medo. Naquela noite não dormiu, sentiu uma excitação e uma euforia que o fez sentir vivo.
Agora, no silêncio da Sacristia percebia que aquele pó milagroso tinha sido também uma prisão, porque não podia ele ser apenas um homem?
A sua infância tinha sido difícil, pai alcoólico, violência doméstica, brincadeiras simples com rapazes de rua com quem sentia cumplicidade no meio de pequenos furtos. Eram todos um pouco como ele, oriundos de famílias com pais ausentes, negligentes, violentos e com contextos socioeconómicos desfavoráveis. Na rua sentiam a paz, o respeito, a lealdade, só eles percebiam isso, porque os adultos apenas viam delinquência.
Tinha ido para Padre, porque não tinha tido escolha, na altura tinha-lhe parecido ser a única forma de se desviar de uma vida de rua e de prisão, mais tarde percebeu que a igreja era outra forma de punição.
A sua estadia no seminário foi de total ausência, de afectos, de escolhas, seguiu o seu percurso como um rebanho segue o seu pastor, sem questões, sem convicções numa austeridade imposta, mas raramente explicada. Sair daquele lugar foi um alívio…
A sua primeira paróquia foi na vila de Góis, um sítio encantador, com o transparente rio Ceira e as suas gentes beirãs. A sopa de aldeia, a chanfana e a tigelada naqueles deliciosos almoços, conheceu as mais belas cozinheiras.
Aqui tinha-se encontrado, ao som dos cucos, envolto nos medronhos e ao sabor de longas e sabias conversas com os anciãos. Foi uma estadia curta, mas intensa, que permitiu a Joaquim descobrir como era bom o contacto com a população, o ter sido acarinhado, admirado e respeitado pelos habitantes.
De Góis foi para Sobreiro Aparado, outra paisagem, outros costumes e outras gentes, que viviam envoltas no mistério daquela árvore. A primeira missa foi rezada num ambiente hostil, o padre Januário, muito querido pela população tinha sido destacado para uma Missão em Angola. Muitos associavam a sua partida, a uma intromissão do padre Joaquim. Neste ambiente de hostilidade, já tão comum na vida dele, voltaram a surgir os medos, a insegurança, o não pertencer.
 Naquela aldeia tinha conhecida a Catarina, uma mulher simples, genuína e essencialmente uma grande e carinhosa amiga. Tinha 64 anos, vestia-se sempre de preto presa a uma viuvez que nem ela percebia, mas que os costumes assim o ditavam. Era sempre doce nas palavras, atenta aos sinais de cansaço, de tristeza, no fundo com aquela mulher invertiam os papéis, ela era o padre e ele o paroquiano, queixoso, infeliz e sempre perdido. Todos os caminhos naquela aldeia iam ter ao enigmático Sobreiro, uma árvore muito torta, mas vivaça em que as ramificações teimavam em crescer.
 Muitos associavam as recentes mortes ao feitiço daquela Sobreiro.
- Eu sugeria cortar a árvore, aquela porcaria dá azar à gente!
- Tens cada uma, Manel! Azar são estes drogados. Essa gente era mata-los a todos.
- Sabes que andam a dizer que o Padre anda metido nisto? O mundo anda mesmo perdido, queres ver que obrigaram o Padre a meter-se nisso?
- Quem terá morto aquele maluco do Zinga e o tonto do Octávio? Valha-nos Deus!
- Aquele Padre nunca me inspirou confiança, o Padre Januário é que era! Esse era uma maravilha. O casamento da minha São foi um espectáculo. Tivemos na cavaqueira a tarde toda com o padre. Fartou-se de dançar. Era um bom homem.
O café da Aldeia era um sítio peculiar, animais embalsamados frutos da caça, prática habitual destas gentes, escuro, cheiros intensos, lareira ao fundo. O Sr. Gomes, o proprietário, um gorducho, camisa roçada, mediava as conversas como se fosse um julgado da paz. Engraçado era que na janela do café estava sempre o Bigodes, um lindo gato preto, que ao longo das conversas resmungava sempre como se fosse mais sábia a sua opinião, do que as que ouvia. 
Padre Joaquim, olhou novamente para aquele sobreiro e pensava porque não finalizar tudo naquele sobreiro, encerrar um ciclo, quem sabe renascer num outro corpo, em outro lugar. Sempre tinha sentido curiosidade pela filosofia Budista, sorriu e pensou em desistir de tudo aquilo, viajar pela Índia numa busca interior. Mas talvez Buda tenha razão “ Não procures a paz á tua volta, mas sim dentro de ti”.



Capítulo VIII
Carolina Lemos

Enquanto o Padre Joaquim procurava dentro de si as respostas iluminadas que tanto desejava, em casa de Albertina o ambiente era tenso.
Como se estivesse possuída por um demónio, Albertina gritava, agora não de prazer mas de um modo tresloucado, arranhando Seguro e esbofeteando-o, que ainda tentou acalmá-la mas ela parecia uma fera à solta.
Seguro tentava a todo o custo conter aquela fúria repentina de Albertina mas com ele deitado no chão meio despido, e ela nua, em cima dele, tornava-se difícil, especialmente chamar os polícias que estava na porta. Eles não iam compreender aquele cenário, o que podia colocar Seguro numa posição muito delicada com os seus superiores. E isso, ele não podia arriscar.
Seguro desde pequenino queria ser polícia, via todas aquelas séries policiais, completamente viciado nos seus heróis favoritos, que acabavam o dia com a folha cheia de feitos prodigiosos e os criminosos atrás das grades. Seguro sonhava ser um deles e mal teve oportunidade e acabou o liceu, prestou provas primeiro para a PSP e depois de uns anos lá, com um registo exemplar, concorreu para a Polícia Judiciária. O dia em que entrou foi sem dúvida o dia mais feliz da sua vida. Teve pena foi de já não conseguir partilhar com o pai a sua emoção mas ele tinha partido cedo demais.
Mas na PJ nem tudo foi o sonho que ele tanto imaginou. A realidade era bem diferente das magníficas séries onde todos os dias havia algo a comemorar. Aqui os dias arrastavam-se em burocracias e processos demasiado lentos. Seguro casou pouco tempo depois, mas foi um casamento que durou pouco, porque para Seguro a profissão é que era a sua verdadeira esposa. Tudo findou um dia quando ele chegou a casa exausto e magoado, depois de uma perseguição a uns traficantes bem no meio da Lisboa onde cresceu, e encontrou a mulher com outro nos braços. E nesse instante, Seguro mudou. Uma onda de raiva assolou-lhe a alma e deu uma valente tareia no infame que tinha ousado entrar em sua casa. À mulher, nada fez, afinal ele tinha também culpas, porque as suas ausências nunca tinham permitido que ela fosse de facto feliz. Pegou nas suas roupas e saiu de casa. A partir daí, tornou-se um homem diferente. Entregou-se à bebida, viveu uns tempos no meio da luxúria das mulheres da vida, começou a aceitar alguns subornos e a ter problemas com outros colegas. E a folha de registo dele que até ali tinha sido impecável, começou por ter primeiro pequenas repreensões até que um dia foi mesmo suspenso por ter batido com a arma num colega que o insultou.
Depois do período de suspensão, o que o fez prender-se mais à bebida, o chefe chamou-o ao gabinete e disse-lhe que ou ele mudava ou iria ter mais problemas, o que era uma pena, porque quando ele entrou via nele a paixão que faz os bons polícias. Pediu-lhe com amizade, que ele não se deixasse arrastar pelo sistema. E entregou-lhe o caso de Sobreiro Aparado. O chefe tinha crescido numa terreola perto e sempre tinha ouvido falar desde pequeno na maldição do Sobreiro e de todos os pequenos e grandes crimes que iam acontecendo naquela terra misteriosa. Achou que Seguro era a pessoa ideal para ir lá desvendar finalmente tudo o que de estranho ia acontecendo e quem sabe, encontrar um caminho diferente.
Num movimento brusco e aproveitando que Albertina parecia ter acalmado um pouco, Seguro agarrou-lhe os pulsos e virou-a contra o chão. Não ia deitar tudo a perder por causa daquele demónio em corpo de seda.
- Sossega mulher! Que foi isto que te deu? Um ataque de loucura ou desceu em ti a Santa que não és??
Albertina continuou a gemer, numa fúria agora mais contida. – Largue-me. Quero ir ter com o meu Tomé.
- Isso é difícil, mulher. O teu homem está a ser transportado para o Instituto de Medicina Legal e só sairá de lá depois de todos os exames e de perceberem o porquê do acidente. Há fortes suspeitas que ele ia embriagado mas a mim cheira-me que não foi só isso. A mim, parece-me mais que alguém mexeu naquele camião, pelas descrições primárias dos peritos. Conta lá, mulher do Diabo mandaste despachar o teu marido não foi? Além dele não te dar o prazer que tu tanto desejas, mulher dos infernos, também estava sempre em cima de ti, o que não te deixava oportunidade para venderes o material que era suposto e que te dá dinheiro para andares assim enfeitada. Conta lá, tu tinhas uma parceria com o Zinga, não é? Afinal quem ia desconfiar de uma mulher tão bem-comportada como tu…
- Largue-me, não sei de que fala. Eu amava o meu marido. E o senhor veio-me tentar com essa sua conversa de homem da cidade e modos finos. Eu sou uma mulher simples, você é um bruto e um aproveitador.
- Ai é? Até parece que não gostas, ó cabra! – Sussurrou-lhe Seguro ao ouvido enquanto lhe tocava com malícia os seios ainda despidos. Albertina gemeu de novo, agora com prazer e agarrou-o no meio das suas pernas mas Seguro levantou-se sem hesitação e levantou aquele corpo, que ainda não tinha percebido se era de mulher, se de víbora disfarçada.
- Veste-te e já! – Ordenou, empunhando a sua arma que estava caída junto com as suas calças, e com cara de poucos amigos
Albertina percebeu que não ia adiantar continuar com a sua capacidade de sedução de mulher mal-amada e levantou-se, começando a vestir-se.
- Senta-te aí no sofá, rapidinho e começa a desbobinar tudo o que tu, o Zinga e o Octávio andaram a fazer por estes lados e como aquelas pobres diabos acabaram mortos. Sim, porque o Tomé eu sei que foste tu que encomendaste o servicinho. Quero é saber dos outros dois!!! – Disse Seguro com voz de comando, não deixando lugar para dúvidas que ele não ia sair dali sem respostas!



Capítulo IX
Estela Fonseca

Albertina sentou-se desprevenida com a brutalidade da voz do homem que momentos antes a tinha feito sentir bicho outra vez. O vestido mal vestido descobria-lhe os seios firmes e doces. Depois foi-se acalmando entre o cetim das almofadas cor de púrpura e a camisa branca de Seguro, deixada à pressa no sofá. Puxou languidamente as alças lilás e fingiu tapar com o cabelo avelã, de um ondulado rebelde, o moreno do seu peito. Encolheu-se mais um pouco num gesto a roçar a timidez sibilina mas olhando Seguro bem de frente.
Suspirou fundo e mordeu o lábio inferior.
- Não te reconheço essa insegurança disfarçada de macho, meu querido Seguro. Porque me olhas assim? Que queres tu realmente de mim?! A mulher, a amante ou o bode expiatório das tuas frustrações?
- De que falas tu mulher do demónio?! Quero a verdade, apenas a verdade! - Seguro sentiu-se trémulo na voz rouca que deixou transparecer o contraditório do seu nome.
Albertina levantou-se então. Em passos descalços e firmes olhou Seguro dentro dos seus olhos húmidos sem se preocupar mais com o decoro da sua semi nudez. Abriu a janela virada a sul. Cheirava a amoras e a cedro. Ouviu-se o repique do bater das horas do sino da igreja branca e quase imaculada. Sentou-se num fingimento distraído enquanto acendia um cigarro provocador e maligno! Seguro, pela primeira vez, não conseguia interpretar os gestos daquela fêmea! Bem, não é que ele fosse muito entendido do sexo feminino! Primeiro a mãe austera e distante e depois a imagem da sua mulher enroscada, dada e desavergonhada nas mãos de outro! Num instante quase viu o rosto de Salomé na face bonita de Albertina, mas depressa voltou a si.
- Que podes saber tu do meu marido, Seguro?! Era o homem que eu amei em exclusivo! Os outros foram apenas pormenores sem alma. Ama-se pelo cheiro, Seguro. Sabias isso? Sentiste isso? Amaste com os sentidos ou com a razão a tua mulher?! Foi a tua pele que a repeliu ou a barbárie racional destes homens e destas mulheres desta plana e seca? Os outros dois?! Sei lá eu dos outros dois! Mudei os lençóis assim que cada um deles deixou a minha cama! É isso que queres que faça contigo Seguro? Cheiro-te ou mudo imediatamente os lençóis?!
Seguro olha agora apenas a sombra do rosto dela entre fumaças enroladas pelos lábios carmim.
Pousa devagar a arma que lhe serve de escudo dos seus fantasmas. Tenta não entender as palavras da mulher demónio que tem à sua frente e que deixa de ser a serpente que se enroscou no seu corpo e o engoliu entre as suas pernas. De repente o cheiro a sexo deixado nos seus dedos é o unguento que ele espera da mulher que nunca ousou possuir e que acabou de ser sua e Albertina arrancava-lhe a máscara segura! Sem dó nem piedade, sem consentimento. Chegou-se perto da janela e deixou-se misturar nos sons que espreitavam lá de fora.
- O Sobreiro Albertina, parece tocar no Céu. Vês daqui, mulher do Diabo? É a sombra do demónio ou a cor da esperança que pairam além?
- Não será antes a memória descritiva de um amor que nunca tiveste? Vê-me bem nos olhos, Seguro? Sou Salomé? Sou a tua Salomé?
Seguro viu as duas esmeraldas verdes. Viu Salomé desnuda, em risos maléficos no corpo de outro e cheirou Albertina nas suas mãos de macho transformado em simplesmente homem.
Desarmou-se inteiro! Ao longe a sombra do sobreiro desenhava mapas e caminhos e as mulheres vestidas de negro passavam para a hora da novena na Igreja Branca quase imaculada!



Capítulo X
Dina Rodrigues

Em frente à janela, Seguro sente o dedo na ferida, ainda aberta. Reconhece que dedicou tempo demais à profissão, em vez de se ter dedicado mais à sua mulher. Deixou-a escapar da sua vida, sem se ter apercebido a tempo de travar essa situação.
Os dois teriam sido muito felizes, se tivesse havido tempo para isso!... - Pensou ele.
- Não toques no nome da Salomé! – Exclamou Seguro, agora enfurecido com as perguntas da Albertina. - Mulher dos diabos, não desvies a conversa. Quem matou o Zinga e o Octávio?
- Sei lá quem os matou! – Respondeu ela, desinteressada do assunto.
Seguro vestiu as calças e a camisa, guardou a arma e sentou-se numa ponta do sofá. Por sua vez, Albertina ajeitou o vestido e sentou-se na outra ponta a pensar no coitado do Tomé.
Como teria sido o acidente com o camião, em Espanha? – Pensava ela.
- Não há nada que se beba? – Pergunta Seguro, para desanuviar da tentativa frustrada, de saber mais informações sobre a relação dela com o Zinga e o Octávio.
Albertina foi buscar uma garrafa de vinho e dois copos. Despejaram essa garrafa e ela foi buscar outra. Agora, já riam às gargalhadas…
Albertina tombou para um lado e Seguro para o outro e os dois adormeceram no sofá.
Seguro acordou sobressaltado com o telefone, era um telefonema da Polícia Judiciária. Acordou todo torto e com gosto de ressaca. Dói-lhe a cabeça, mas isso agora pouco importava, tinha de ir procurar Albertina. Lembra-se de, na noite anterior, estarem os dois a beber vinho, no sofá. Vai ao quarto dela e fica a observá-la. Ela ainda dorme profundamente. Acorda-a com um beijo na face e com doçura segreda-lhe ao ouvido “ Albertina, és uma mulher livre!”
Albertina acorda, também com dor de cabeça, mas sorri para ele, quando o vê.
- Albertina, és livre para saíres de casa e voltares à tua vida – diz-lhe Seguro.
- Livre? Não, eu não sou livre, eu estou presa a ti, para onde fores, eu também vou! – Respondeu ela, mal conseguindo abrir os olhos, com o sol que entrava pela janela.
- O que queres fazer, queres ir comigo para onde? Eu vou para Lisboa e não sei se volto aqui, para continuar com a investigação.
- E o Tomé, quando é o funeral? – Perguntou ela, de volta à realidade.
- Albertina! Tina!
- D. Aldina, o que aconteceu agora? – Perguntou Albertina, dirigindo-se à porta.
- Nem vais acreditar – dizia a D. Aldina. – Telefonou-me um primo, que trabalha num hospital em Espanha, a dizer o teu marido está lá internado, que ontem esteve com ele, mas que ele está bem. Depois a chamada caiu e eu não percebi nada. Afinal ele está morto ou não? Vou voltar para a mercearia e se tiver mais novidades, aviso-te.
- Obrigada, faça isso! – Agradeceu Albertina, fechando a porta, bastante transtornada.
Seguro, à espreita, ouviu a conversa das duas, já a pensar numa maneira de dar a volta à situação. Ele tinha sido informado de que o Tomé teve um acidente com o camião, em Espanha e de que tinha sido internado, mas hoje, no telefonema da manhã, informaram-no de que ele já tinha tido alta.
Albertina voltou para a sala, em estado de choque. Estaria a sonhar ou a ter um pesadelo?
- O Tomé… não morreu! – Exclamava ela.
- Albertina, eu já sabia que o Tomé estava vivo. Ele já teve alta esta manhã e não tarda, está aí a chegar – confessou o agente Seguro.
- Não pode ser, como é possível? Tu disseste que ele estava a ser transportado para o Instituto de Medicina Legal!
- Eu sei, desculpa! Só o disse para te arrancar uma confissão sobre a morte do Zinga e do Octávio. Tudo fazia parte da investigação.
- Eu vou contigo para Lisboa. Eu não quero cá estar, quando o Tomé chegar. Tu não sabes do que ele é capaz, quando souber que tu passaste a noite cá em casa. Ele até é capaz de me matar! Estou farta dele, vou deixá-lo! Ernesto, por favor, não me deixes aqui, leva-me contigo – implorava ela.
Seguro cedeu e concordou levá-la com ele para Lisboa.
O padre, entretanto, também já tinha tido ordens para sair da sacristia.
Tentaram sair despercebidos, mas a D. Aldina, que estava a falar com o padre, à porta da mercearia, viu-os e acenou a dizer adeus.
Albertina, ao passar pela praia de Santa Cruz, insistiu em mostrá-la a Seguro. Aproveitaram e fizeram uma visita rápida à Azenha e a um moinho de vento. Ela queria mostrar toda a beleza da região Oeste, mas não havia tempo para isso.
Seguro chega a Lisboa e é informado de que vai abandonar o caso de Sobreiro aparado e que vai ser transferido para Guimarães. Deve partir no dia seguinte.
Nesse mesmo dia, Tomé saiu do hospital e dirigiu-se a Sobreiro Aparado. Chega a casa e não encontra a mulher. Vai à procura dela e fica a saber que ela tinha ido com o agente Seguro. Tomé, no dia seguinte, parte para Lisboa, vai às instalações da Polícia Judiciária e é informado de que o agente Seguro foi transferido para Guimarães. Enfurecido e cego pela cólera dos ciúmes, Tomé parte, também para lá.
Albertina e Seguro instalam-se em Guimarães. Tudo é novo para ela, que nunca tinha saído dos arredores de Sobreiro Aparado. Ela quer ver tudo e um dia pede a Seguro para ir com ela ao castelo. Assim foi, iam os dois de braço dado, distraídos a ver a paisagem, quando Albertina avista Tomé, encostado a uma parede do imponente castelo, com uma arma apontada a eles.
Albertina dá um grito!



Capítulo XI
Paulo Emanuel

Enquanto subia a escada devagar, o inspector Morgado puxou uma última fumaça do cigarro e apagou-o antes de entrar, enquanto pensava para consigo mesmo: “Malditas leis”.
Era cedo, e àquela hora apenas uma secretária estava ainda ocupada. O silêncio do enorme espaço era apenas interrompido pelo tic tic tic de um teclado de computador. A agente Paula como habitualmente chegara cedo também.
Cumprimentou-a com um “bom dia” e dirigiu-se à máquina do café.
- Bom dia, respondeu ela, acrescentando: tens trabalho na tua mesa, o chefe já chegou mas saiu para uma reunião no ministério e deixou-te um dossier, quer que vás até às Caldas?
- Outro caso nas Caldas? Não é lá que está o Seguro?
A agente Paula deixou o monitor do computador por uns instantes, rodou a cadeira e olhou com ar grave para Morgado, consciente de que o que ia dizer não seria do seu agrado:
- Outro caso não, é o mesmo. Olhou em volta para se certificar que mais ninguém tinha entrado na sala e acrescentou em voz baixa: é o costume, a investigação não avança…
Morgado não ficou surpreendido, apenas irritado com o chefe. Com este já nada o surpreendia. No tempo do anterior chefe nada disto teria acontecido. Nascimento dos Santos era um chefe como deve ser, que sabia o que fazia e conhecia o seu pessoal. Sabia que o inspector Morgado não podia nem um pouco com o inspector Seguro e nunca os teria colocado no mesmo caso. Agora este gajo, cujo único mérito para chegar a chefe é ser amigo do ministro…
Pegou no café e dirigiu-se à sua mesa. Pousou-o, sentou-se empurrando a cadeira para trás de forma a esticar as pernas e permaneceu longo tempo a olhar pela janela.
A agente Paula levantou-se e foi tirar um café. Voltou com o copo de plástico na mão, sentou-se na beira da secretária de Morgado e enquanto mexia o açúcar disse:
- Primeiro devias ter lido o processo e depois é que te punhas a pensar. Pensar sem conheceres os factos faz com que fiques com ideias pré-concebidas e isso é mau para a resolução do caso.
- Sabes que não gosto que me chames à atenção, disse com ar chateado.
- Estás chateado, e é porque sabes que tenho razão, não é? O que disse é para teu bem.
Levantou-se e voltou para a sua secretária. Também ela não gostava do inspector Seguro e desejava que Morgado tivesse mais sucesso na resolução do caso.
A danada tinha razão mesmo. E isso ainda o deixava mais irritado. Suspirou, chegou-se para a frente e resolveu começar a trabalhar. Em cima do dossier estava um pedaço de papel rabiscado pelo chefe com algumas instruções e outras tantas desculpas esfarrapadas, “o caso é difícil, é preciso mais pessoal” ou “as gentes do campo são muito fechadas, não gostam de falar”.
Bem, do mal o menos, não ia trabalhar em conjunto com o inspector Seguro pois este tinha sido transferido.
O processo não era muito grande. Cinco relatórios do Seguro, dois relatórios de autópsias e dois emails da polícia espanhola. Seguindo o seu processo habitual, Morgado leu primeiro tudo de uma ponta a outra e voltou depois ao princípio para reler e tomar apontamentos.
Assim que leu a primeira página e viu uma referência a uma suspeita de nome Albertina, percebeu logo porque é que a investigação não avançava.
Seguro era um incorrigível mulherengo de primeira apanha. O desempenho profissional ressentia-se disso mas, ou disfarçava muito bem perante os chefes ou então estava muito bem encostado, pois nunca era chamado à atenção. Isto era a causa da sua animosidade. O inspector Morgado não podia com ele desde que, há muitos anos num jantar de Natal do departamento tentou roubar-lhe a namorada.
Olhou para os papéis com desalento e abanou a cabeça enquanto pensava: temos dois mortos, mais um acidente em Espanha que não se sabe ainda se está relacionado pois falta chegar o relatório das peritagens ao camião e em duas semanas a única coisa que este gajo faz é “interrogar” uma suspeita.
Levantou-se e foi buscar mais um café. Desta vez colocou o copo ao lado do dossier e foi bebendo enquanto ia tomando notas no seu inseparável caderno, apenas interrompendo para cumprimentar maquinalmente os colegas que entretanto iam chegando ou para responder a alguma pergunta.
Quando achou que tinha escrito tudo pôs de lado o dossier e ficou a olhar para os seus apontamentos pensativo, durante alguns instantes. De seguida pegou no telefone e ligou para o arquivo.
- Tá, Sousa?
- Sim, bom dia diz.
- Bom dia, preciso que me vejas umas coisas…
- Porque não vens cá e procuras tu?
- Não posso, vou para fora.
- É sempre a mesma desculpa.
- Obrigado, és um gajo porreiro, ora escreve lá os nomes que te vou dizer: …
- É tudo, consegue-me isto e pago-te um almoço.
- Não precisas de dizer duas vezes. Boa viagem e até logo.
Fechou o dossier, escreveu umas linhas no mesmo papel que o chefe lhe tinha deixado e foi colocar o processo no seu gabinete. Arrumou as suas coisas, pegou num envelope que tinha numa das gavetas e vestiu o casaco. Ao sair passou pela secretária da agente Paula e perguntou-lhe:
- Que fazes logo à noite?
A agente encarou-o com cara de poucos amigos e disse em tom brusco. Porquê? Interessa-te?
No tom mais irónico que conseguiu, Morgado respondeu: calma, nada de ideias pré-concebidas, acrescentando depois com ar já mais sério: tenho este bilhete para um concerto e não vou poder ir, queres? - Disse estendendo-lhe o envelope.
Paula fez um sorriso amarelo e agradeceu. Depois de olhar para o bilhete franziu o sobrolho e perguntou:
- Monte Lunai? O que é isto?
- Isto é um grupo musical.
- Obrigada, mas… que tipo de música é? Sabes, eu gosto é do Tony Carreira e do Emanuel…
- Ok, então não é o teu género.
- Bem, obrigada na mesma.
O agente Sousa ia a passar naquele momento. Morgado tocou-lhe no braço e chamou-o.
- Sousa, tenho este bilhete mas vou agora para fora, não posso ir, queres?
- Eh pá obrigado, deixa cá ver, o que é isto? Monte Lunai?
- Isto é um grupo musical, repetiu Morgado com ar de enfado.
- Nunca ouvi falar, espero que seja rap ou hip-hop.
- Já vi que também não é para ti. Ok, esquece, eu hei-de impingir isto a alguém. Passem bem, até p’rá semana.
Saiu a porta do edifício e enquanto descia as escadas olhou para os dois lados da rua à procura de um vulto. Encontrou o que queria, levantou um braço num aceno enquanto gritava: Kiko!
Kiko o arrumador aproximou-se o mais rapidamente que a sua perna manca o permitia.
- ‘Tá alguma coisa mal sôtor? - Perguntou a medo quando chegou perto do carro do inspector.
- ‘Tá tudo bem Kiko, tenho de ir para fora e não posso ir a este concerto - disse estendendo-lhe o bilhete. - É hoje à noite no S. Luis, se conseguires vender isto a alguém ganhas algum dinheirinho.
- Muito obrigado sôtor. - Disse Kiko enquanto agarrava no bilhete. - Ah, é Monte Lunai!
- Conheces? - Perguntou o inspector sem conseguir disfarçar a surpresa?
- Sim, quando eu dormia na Estação do Oriente vi-os uma vez a tocar na entrada do metro. Gostei muito.
- Bem, se quiseres ir tu ao concerto em vez de venderes o bilhete, estás à vontade. - Disse, dando-lhe uma palmadinha nas costas.
Decididamente o mundo não parava de o surpreender, pensou enquanto se punha a caminho.
Para ir para Sobreiro Aparado não precisava de ir mesmo às Caldas da Rainha, mas não lhe apetecia almoçar numa tasca na aldeia por isso dirigiu-se à cidade. Almoçou nas calmas e depois foi procurar um local para dormir. Não queria ficar na aldeia, afinal estava só a dez quilómetros de distância. Depois de tudo tratado meteu-se no carro, olhou o mapa para confirmar o caminho e pôs-se em marcha.
Poucos minutos depois chegava ao destino e parou o carro no largo principal da aldeia.
A chamada que aguardava chegou entretanto.
- Tá Morgado? É o Sousa.
- Tens novidades?
- Algumas, não há registos em nome da tal Albertina, também não consta nada em nome do marido, o Tomé nem quanto à Transportadora Sobreirense; a empresa já tem dez anos e é a primeira vez que têm um acidente assim tão grave; aparentemente têm tudo em dia com seguros, inspecções, essas tretas todas.
- Sim.
- O Octávio estava referenciado como toxicodependente, esteve internado para tratamento mas fugiu do centro há seis meses.
- O Zinga, já tinha estado preso por furtos. Tinha uma pequena deficiência mental, era daquelas pessoas de quem todos abusam para fazer recados e trabalhos.
- Ou seja, é daqueles que sabem muitas coisas e convêm ser eliminado…
- Pois é, e para acabar o Padre Joaquim também não tem cadastro, mas…
- Mas o quê?
- O Padre Joaquim chama-se Joaquim Ferreira; curiosamente há um registo com um nome muito semelhante, padre Manuel Joaquim Ferreira, sobre um caso com cerca de quinze anos numa aldeia de Trás os Montes chamada Espinheiro; houve um enforcamento e lançaram algumas suspeitas sobre o padre Manuel, que chegou a estar preso preventivamente mas a investigação concluiu que foi suicídio e o padre foi totalmente ilibado. No entanto o padre foi afastado pela igreja sem deixar rasto, disse-se na altura que foi transferido para uma missão em África. Pelas datas que aqui tenho esteve na mesma prisão e na mesma altura que o Zinga…



Capítulo XII
Paulo Melo Lopes

Sobreiro Aparado. Frio. Frio e vento.
Morgado fecha a porta do Skoda. “Puta que pariu”, diz. Leva a mão ao bolso das calças e puxa um lenço encardido. Assoa-se. O vento assobia. Em passos rápidos, dirige-se à mercearia.
Aldina pega na faca e lambe a folha cortante. Alzira levanta-se. Dir-se-iam uma apenas. E assim é para toda a gente. Nasceram iguais, permaneceram iguais. Certo dia, ao subir ao sótão, Aldina caiu e rasgou uma ferida na testa que a levou a pontos ao Hospital. “Tem aqui serviço para uns 5 pontos”, disse-lhe o médico, um cubano atarracado com cara de lagarto. “Venham eles”, respondeu Aldina cerrando a expressão. E cinco pontos foram. A Alzira doera muito mais quando a irmã lhe rasgara a cara com uma faca mal afiada. “Tens aqui serviço para 5 pontos”, disse-lhe Aldina, imitando o médico cubano, e riu. O médico cubano estranhou o caso, no dia anterior tinha tratado uma pessoal igual. “Compreendo, doutor, é muita gente a passar-lhe pelas mãos”, e Alzira sorriu compreensiva. O médico piscou os olhos de lagarto e pôs-se a coser. Um fiozinho de sangue escorreu-lhe pelas mãos e caiu nas calças. As cicatrizes acabaram por secar semelhantes; semelhantes na forma, semelhantes na cor, semelhantes no torcer que provocavam na pálpebra esquerda quando sorriam.
Morgado chega à porta da mercearia, ajeita o casaco e tosse levemente como que a afinar a voz. Inspira profundamente. Procura a expressão certa. Levanta a mão e carrega no botão da campainha.
Aldina e Alzira eram apenas uma pessoa para o Sobreiro Aparado, uma velha discreta, talvez curiosa, mas profundamente crente e defensora de tudo o que se parecesse com moral e bons-costumes. Nascidas da mesma forma foram, crescidas no mesmo prato, casadas pela mesma igreja e no mesmo dia, viúvas pelo mesmo cemitério e no mesmo dia. Os maridos, gémeos cruéis como lobos famintos, tiveram o que mereciam. “Há quantos anos foi isso?“, perguntam-se muitas vezes uma à outra. Mas já nenhuma parece contar os minutos e as horas e os dias como faziam no início, logo depois de a terra bater nos caixões e elas respirarem de alívio. Aos olhos do pequeno mundo de Sobreiro Aparado, uma partira no dia seguinte para uma aldeia de Castelo Branco a cuidos de um familiar acamado. Nunca ninguém decorou ao certo se fora Aldina ou Alzira, e por isso, sem qualquer critério, chamavam por Alzira ou Aldina, sem suspeitarem que o número de nomes igualava o número de corpos. A cicatriz era um pormenor desprezível. O Octávio. O Octávio tinha sido um estúpido. Tentou assaltar a mercearia. As duas apareceram-lhe à frente. Não teve hipóteses. Congelou do espanto. Alzira encostou-lhe a arma ao peito e disparou. Seco. “O estúpido do Octávio”, suspirou Alzira com a fusca a fumegar. “Vamos lá tratar deste presunto, amanhã vai ser um falatório por causa do tiro.”
Morgado ajeita os colarinhos do casaco. A chave a rodar na fechadura. A porta a abrir.
- Posso ajudar, senhor? – Pergunta Alzira através da nesga aberta.
- Inspector Morgado. Quero falar com Aldina Pereira.
- Sou eu.
- Chame a sua irmã também, quero falar com as duas.
O queixo de Aldina cai e os olhos param.
- Vá, rápido! – Ordena bruscamente Morgado.

Guimarães. Vento. Vento e frio.
- Vou-te foder, sua vaca! – Grita Tomé.
- Calma aí, baixa lá essa arma, cabrão! – Riposta Seguro surpreendido.
- Vou-te matar, sua vaca! Vou-te matar! – Tomé estica mais os braços e afina a pontaria. Está muito frio, mas um pingo de suor escorre-lhe da testa.
Seguro empurra Albertina com violência e saca da arma já em voo para o chão. Um tiro é disparado.
Guimarães geme de frio.



Capítulo XIII
Marlene Quintinha

O eco do tiro dispersa para além das muralhas, embalado pelo vento forte que se fazia sentir. Os pássaros que dormitavam nos arvoredos vizinhos despertaram em transe e esvoaçaram em bando.
O silêncio corta de seguida esta anómala agitação que estremecera o castelo e arredores. Mas esta falsa quietude não tardou em sucumbir perante os gritos estridentes de Albertina.
- Meu Deus, o que fizeste?! - Brada e gesticula Albertina desnorteada.
Tomé cai de rompante sobre a calçada, e derrama em torno de si um charco de sangue.
Seguro, afónico e assustado, deixa a sua confidente de profissão resvalar das suas mãos trémulas. Acorre, num passo claudicado pela tensão muscular, até junto do corpo inanimado de Tomé para ver se ainda lhe pulsava Vida.
Coloca-lhe dois dedos sobre a jugular, sente um batimento fraco e a cada segundo mais espaçado.
- Ainda está vivo - replica Seguro, voltado para Albertina que permanecia estática.
Vira-se novamente para Tomé e vê-o arregalar o olhar e arrastar num esforço acrescido aquelas palavras que tudo mudaram.
- Foi ela, foi ela que mandou sabotar o meu camião - gaguejou Tomé - Aquelas viagens de regresso corroíam-me lentamente, vinha sempre com o coração nas mãos aterrorizado pela possibilidade de ser mandado parar numa operação policial. Fiz tudo aquilo por ti, Albertina!
Eis que soa um segundo tiro que assassina a sequência de revelações de Tomé. Jaz definitivamente para contentamento do místico Sobreiro Aparado.
Seguro petrifica perante este acto inesperado de Albertina. Mais uma prova de que nunca conhecera verdadeiramente as mulheres.
A vários quilómetros de distância um outro Segredo de Sobreiro Aparado em vista de ser revelado.
Morgado com um ar austero e inquisidor, porte de carrasco da justiça, senta-se frente-a-frente a Aldina e Alzira. Retira um bloco e uma caneta do bolso interno da sua gabardine cinzenta, eleva o sobrolho e fisga as gémeas. Ainda que o quisessem disfarçar expressavam um semblante de pavor e medo.
- Durante anos a fio fizeram-se passar pela mesma pessoa, facto que atrofiou as nossas investigações. Fostes desmascaradas. Nós temos acesso a todos os dados - reiterou inteligentemente Morgado.
- E isso é algum crime?! - Ripostou de imediato Aldina.
- Judicialmente não. Já assassinar alguém é punível com pena de prisão. Não concorda comigo D. Alzira? - Disse Morgado com uma voz firme e traiçoeira.
Alzira estava cariz baixo, com o fácies rosado, e o corpo encolhido sobre si. Desenhava já o seu fim. A verdade iria ser descoberta.
- O que fizeram ao Octávio? - Questionou Morgado
- Quem? Aquele pobre profeta do demo? - Graceja Aldina numa risada soluçante.
Alzira ergue a cabeça e deflagra, acompanhado por um pranto de lágrimas - Não o queria fazer, juro por Deus. Aquele diabo em forma de gente queria-nos assaltar a mercearia, não tive alternativa.
- Temos de eliminar os podres da civilização, estas almas mendicantes que perambulam sem eira nem beira e que importunam as pessoas de bem - contesta altivamente Aldina.
- Para fazer justiça existo eu e os meus colegas. Minhas senhoras acompanhem-me até ao Posto da Policia Judiciária - culmina Morgado, satisfeito e fervoroso pelo sucesso do seu trabalho.



Capítulo XIV
Sónia Ferreira

O dia fatídico de Tomé tinha chegado… o frio que se fazia sentir e a chuva que caía de mansinho parecia anunciar alguma tranquilidade, porém pairava no ar um ambiente de guerra, de violência e de morte.
Seguro continuava perplexo e sem ação perante aquele cenário trágico. O pavor e o desespero estavam estampados no rosto de Albertina. As curtas revelações de Tomé fizeram com que a viúva entoasse - ai meu Deus, e agora?! - Balbuciava desesperada, solicitando a este Ser Divino que fosse seu advogado de defesa.
Seguro, voltou a si, olhou ao redor e avistou entre as muralhas do castelo o padre Joaquim que, após ser descoberto, corria a passos largos a fim de se safar do assassinato que acabara de cometer. O inspetor que, ainda tinha amor à profissão, correu apressadamente pela calçada para tentar, a todo o custo, apanhar o assassino de Tomé. A raiva impregnada no seu coração por se sentir enganado por aquela bela mulher predadora, fazia com que as suas pernas corressem velozmente, por entre ruas e ruelas; encontrões aqui e acolá com pessoas que se esbarravam no seu trajeto. Seguro estava, sem dúvida, em forma. A chuva fria e miudinha não foi obstáculo à captura do criminoso. O policial de corpo atlético conseguiu, finalmente, agarrar o casaco do padre fugitivo.
- Anda cá seu sacana! Daqui não foges mais…quem diria?! Heim!… Nunca me inspiraste confiança, seu bandido! Estou mesmo a ver, um homem ligado à igreja que não cumpre os seus preceitos, grande sacana…
Após este curto monólogo Joaquim cai nas pedras da calçada com um valente soco no nariz, o sangue brota em fio parecendo uma fonte encarnada. Seguro conseguiu imobilizar o padre demoníaco. O paraíso deste demo tinha os dias contados… A justiça divina e a dos homens caíam, como uma teia, sobre este homem que passou parte da sua vida a apregoar a palavra de Deus.
Depois de uns breves contactos telefónicos de Seguro, não tardou a chegada ruidosa e aflitiva da polícia que, numa celeridade, colocou as algemas nos pulsos pecaminosos de Joaquim.
- Mais tarde conversamos seu cobarde! Tens muita coisa para explicar…agora vou atrás da tua cúmplice. Retorquiu Seguro ao empurrá-lo com uma certa agressividade para dentro do carro policial que o levaria para o posto da Polícia.
A uns largos metros de distância lá estava Albertina caída de joelhos sobre a calçada como se estivesse a pedir perdão dos actos cometidos. Chorava compulsivamente, não pela morte do seu Tomé, mas pelas revelações verídicas do cônjuge que a punham em maus lençóis com a justiça. Começava a aglomerar-se gente curiosa que comentava, depreciativamente, o sucedido. O cerco policial já se evidenciava perante este drama e já tomavam as respetivas diligências.
Seguro ao avistar aquele corpo de mulher enfeitiçado sentiu-se frustrado, mais uma vez… deveras não tinha sorte com o sexo oposto, sentia compaixão de si próprio.



Capítulo XV
João J. A. Madeira

A noite mostra-se escura como breu. As árvores em sombras disformes sugerem corpos fantasmagóricos a erguerem braços de raiva ou vingança. Pelos campos em redor, uma sinfonia de sons faz-se banda sonora de um filme de terror feita de coaxar de rãs, de estridentes grilos e de toda aquela chinfrineira própria de bichos sem nome. Na torre da igreja, tivesse o sino electrónico as baterias que lhe retiraram para que não incomodasse os sonos, bateriam as quatro da manhã. Tudo dorme. As pessoas, as casas, as almas, os sexos. E no silêncio naturalmente instalado, a vida somente respira pelas narinas do que à morte se assemelha e por aquele vulto, de andar estranho, que pelas vestes mais negras que o negro da noite, só uns olhos especiais conseguiriam ver.
Traz na mão uma tesoura de poda e meneia as ancas num andar amaricado – que tenta conter de dia mas que liberta aliviado à noite – até se deter nos ramos já muito despontados do sobreiro. Esta noite terá cuidado. Da última vez partiu uma unha e na vez anterior esqueceu-se de tirar o dedo do sítio onde a lâmina cortaria. E o que mais o magoou não foi a dor que sentiu nem o sangue, que horror!, que jorrou. Foi ficar com o dedo entrapado e ter de ouvir disparates como “oh Etelvina, meteste o dedo no cu?” quando, como é sabido, o cu não tem dentes e ele não se chamava Etelvina mas sim Leocádio. Compreendia que Leocádio não era de pronúncia fácil mas…Etelvina! Ao menos que lhe tivessem chamado Anabela porque Anabela, sim, era um nome que o encantava, a denunciar ao seu imaginário uns louros cabelos compridos como gostaria de ter.
Mas não tinha. Tinha antes um cabelo preto encrespado sabe-se lá se por cruzamentos ancestrais de negros de sexo caído e negras de mamas tão flácidas como os anteriores. Mas não ia agora pensar nisso. Queria lá saber da família. Já lhe bastava a praga que lhe fora transmitida na obrigação de podar aquele sobreiro em que o avô se enforcara, o pai cortara, e, mal morto, lhe coubera a ele em sorte ter de o aparar às escondidas. E esta era a parte estúpida, quase absurda. Para quê aparar um sobreiro? Para fazer justiça à placa toponímica? Não seria mais fácil mudar-se a placa e chamar à terra sobreiro espigado? Mas o testamento tinha sido bem explícito. “Condições Fundamentais” lera o advogado – por sinal bem jeitoso – no escuro escritório de mogno: “para receber o tesouro referido, deve o herdeiro fomentar a intriga e o ciúme no lugar designado como “Sobreiro Aparado” de modo a que a diminuta população se extermine a si própria. Só nessa altura o sobreiro, ininterruptamente aparado nas alturas convenientes, será finalmente arrancado de modo a que o tesouro fique em condições de ser entregue.”
E pronto. Por causa de um testamento ridículo, ali andava ele noite dentro a cortar a guedelha à estúpida árvore. Porque esta era em definitivo a missão mais difícil. A outra…oh, não fosse ele mulher em corpo de homem, tinha sido como quem limpa o cu a meninos, salvo seja, porque não era dado à pedofilia. Bastara-lhe arranjar um traficante de droga, um padre que a consumia, uma putéfia, grande vaca, chamada Albertina e um polícia com tomates nos miolos, para que todos em segredo se fossem matando.
Só uma coisa não estava a funcionar no destino por ele engendrado. Aquele agente, o Morgado, não estava nos seus planos. Aquilo não era um pão, era uma padaria inteira. E ele estava prestes a apaixonar-se. Deveria declarar-lhe o seu amor? Não, não podia. A sua missão era a de criar conflitos mas manter-se fora deles. Insinuar-se, então, com ele? Mas, e se, por acaso, também o Morgado era uma aberração com desejo de mulheres? Não, era impossível porque até lhe dava vómitos. Pois, mas e se era? Pensara, dormira e acordara a pensar, até que de tanto o fazer descobriu a resposta mais óbvia:
Quando todos tivessem morrido, receberia finalmente o tão desejado tesouro que supostamente estaria enterrado sob aquele monte de cortiça. E nessa altura, rico e a merecer respeito, faria a almejada operação. Ficaria linda no seu corpo novo que nunca o seu apaixonado poderia rejeitar. Depois, saradas e disfarçadas as feridas em previdente retiro, aparecer-lhe-ia sensual e irrecusável, e diria: estou aqui, meu amor. Chama-me Anabela.
Ah, porra que já cortei outro dedo.



Capítulo XVI
Fernanda Cadilha

E era mesmo uma grande porra. Não sabia se aguentaria mais insultos. Ora essa! Meter o dedo no cu não era de todo do seu agrado...há coisas bem melhores!
E os seus olhos brilharam só de pensar.
A noite estava sinistra, à semelhança da anterior. Habitualmente, a tarefa cumpria-se numa noite mas, desta vez, os ramos do sobreiro mostraram-se mais resistentes, obrigando-o a lá voltar.
Despontava-o quase delicadamente. Não fosse o diabo da tesoura cortar-lhe mais um dedo. O Morgado não lhe saía da cabeça. Sentou-se junto ao tronco da malfadada árvore e preparava, mentalmente, cada um dos passos que o levariam até ele.
Um leve barulho interrompeu os seus pensamentos. Olhou e pareceu-lhe ver um vulto desaparecer por entre as brumas da noite. Que diacho seria àquela hora tão tardia? Algum aspirante ao tesouro? Não. Pela certa que não. Ninguém mais se atrevera a procurá-lo desde aquela noite em que o seu avô se enforcara quando o procurava. Nunca ninguém entendeu o porquê. O certo é que tal proeza fora entendida como uma praga que vinha desde a geração anterior.
Contava-se, na aldeia, que Teresa, mulher ainda jovem, mas já viúva, bisavó de Leocádio, se apaixonara por um estranho que, escassas vezes, aparecia por lá. Dizia-se ser uma criatura invulgar no seu todo e ter um aspecto medonho. Costumava aparecer na mercearia da aldeia, que também servia de taberna. Sentava-se numa pequena mesa de um recanto e ali ficava toda a noite, a beber, sem falar, observando cada gesto dos presentes. Apenas Teresa lhe ouvira a voz. Fazia questão de o servir. Era como se estivesse por ele enfeitiçada. Todos o receavam, mas Teresa não. Apenas ela tinha conseguido adivinhar a doçura do seu olhar, apesar do seu ar terrífico e ameaçador.
Uma noite, já quase todos tinham recolhido as suas casas, Teresa ousou sentar-se junto do desconhecido. Permaneceram em silêncio durante longo tempo, mas os seus olhos não pararam de se falar, como se nada, nem ninguém, existisse para além dos dois.
Os dois e o relógio que ele, impacientemente, consultava amiúde. Faltava pouco para as quatro da manhã quando, lançando um último olhar a Teresa, saiu apressadamente. Ainda em transe pelo sucedido, ela saiu quase de imediato e seguiu-o. E os dois desapareceram na negrura da noite.
No dia seguinte, Teresa, morta e desmembrada, foi encontrada pelo seu filho, o avô de Leocádio, junto de um sobreiro. Nunca se soube o que aconteceu. O desconhecido nunca mais foi visto. Em seu tributo, foi decidido que seriam cortados todos os ramos do sobreiro e assim teriam que ser mantidos para todo o sempre. A aldeia passou, então, a chamar-se Sobreiro Aparado.
E a lenda nasceu. Conta-se que, quando os ramos do sobreiro começam a querer romper, se ouve, ao longo da noite, depois do relógio da igreja ter soado as quatro da manhã, um choro de mulher, penoso e ensurdecedor. Foram retiradas as baterias ao sino electrónico, mas o choro de mulher continua a envolver os sonhos dos habitantes.
Leocádio estremeceu de pavor ao relembrar a história. Coube ao seu avô e, depois, ao seu pai a tarefa de manter os ramos do sobreiro aparados. Agora cabia-lhe a si. Não que isso lhe agradasse, mas o dever assim o obrigava. E depois, havia o tesouro…



Capítulo XVII
José Bessa

- Etelvina… Ó Etelvina… és tu?...
- Quem está aí; diga? Quem está aí?
A quietude da noite deixava-o ouvir o mais leve ruído e, a voz, embora sussurrada, ou se disfarçava, ou nem a conhecia. Desceu do ramo, apalpou a sacola, guardou a tesoura e,
- Quem está aí; diga? Quem está aí?
- Shiiiuuu… fala baixo que se ouve na estrada… É o Manel dos recados… shiiiuuu…
- Ó ti Manel, que faz você aqui no meio deste breu?, não devia ainda estar em Lisboa?
- Cala-te rapaz. Acaba lá o trabalhinho e vamo-nos daqui para minha casa. Anda Etelvina, anda lesto, espero-te no alpendre.
- Já termino ti Manel, já termino, e não me chame Etelvina porra!; eu tenho nome!
- Chiu!, Cala-te mas é, e acaba a encomenda!
A surpresa de encontrar ali o ti Manel, que pensava em Lisboa, fê-lo tremer ainda mais. Há dias que o esperava, mas ali, e a meio da noite, foi um susto. Tinha muita coisa para lhe contar, e outra tanta para perguntar. Nem sabia por onde começar e «qual será a novidade? A verdade é que nem sei bem o que ele me esconde, sempre em Lisboa, sempre a fazer recados ao dr. Morais, é um vai e vem, um vai e vem de dias certos. Bem, isto até que o filho morreu. Quando se foi o Octávio a coisa continuou, mas quando lhe limparam o Zinga, estacou. Também ele morreu, o ti Manel. Só que ninguém o enterrou e, quem o conhece sabe que embora pareça um bolas, tem sobrevivido porque é duro, duro e astuto; lá isso é.»
- Conte lá ti Manel, então que me quer?
- Senta-te rapaz, senta.
- O quê?, aqui fora?, ao frio?
- É mesmo aqui para os vermos a chegar. Depois destes anos todos não há-de haver nenhum filho da puta que me ofereça surpresas.
- De que fala homem?
- Que é que tu sabes da Albertina e do polícia? Sim! Que é que tu já espreitaste?
- Eu não espreitei nada…
- Pois não, Ó Etelvina!, pensas que eu sou asno!
- Ó ti Manel, eu só sei que eles andam enrolados um com o outro. Ele tem os miolos entre as virilhas e não a larga. Já arranjou a bonita com o Tomé.
- O Tomé é corno manso, só raspa no chão…
- Quando era só com o padre não havia estrilho de maior, mas agora com o polícia vieram-lhe os azedos por um todo e foi ter com eles a Guimarães.
- A Guimarães? Que foram ambos fazer a Guimarães?
- Não sei, propriamente não sei, mas parece que foram coisas do dr. Morais.
- Huuum… o dr. Morais… agora também é chefe do Morgado, que é um finório, e tinha de se ver livre do Seguro. Eles não se dão bem por histórias de gajas. Parece que uma namorada lá do departamento da PJ se relaxa com a branquinha e, em tempos, era o Seguro que lha arranjava. Desviava-a do stock do departamento e fazia-se pagar na horizontal. Tá claro que agora, que o Morgado saltou a cerca, quer ver o Seguro borda fora. Olha; mas tu não tens nada a ver com isto. O que eu quero saber é se o polícia e a Tina já chegaram ao Sobreiro ou quando chegam. Sabes?
- Eu?!... Eu?!, ti Manel... Como é que eu hei-de saber?!
- Então levanta-me esse cú do mocho e vai por essa noite fora saber. E não demores, ouviste? O dr. Morais deve estar aí a rebentar e vai dar uma liçãozinha na rameira e no bófia.
- Ó ti Manel, o dr. Morais é mais do que aquilo que eu sei não é? Além de testamenteiro e director da PJ, amanha-se com mais alguma coisa não é? Ora diga-me lá? É, ou não é?
- Não tens nada com isso ó fedelho! Ala, avança…
- Se estou consigo, tenho de saber tudo! Diga-me lá senão não vou!
O Manel dos recados parou o olhar na ponta das botas, «não posso contar tudo ao moço, tenho que me defender, já levei com tantas surpresas, tanta estalada nas bentas, tanto desaforo, tanto conluio. Tenho de me defender…»
- Olha rapaz; ao contrário do que para aí se diz, a água que vai no ribeiro é sempre a mesma; as margens é que são, diferentes, sempre diferentes. Porque em mudança. E os homens, são todos uma merda, até prova em contrário. E; sabes uma coisa?
- O quê ti Manel?
- Ainda ninguém o provou! Vai-te!, desaparece!, espero-te aqui, ouviste?
O Leocádio tremia como um canavial. Sentia tragédia no ar mas faltava-lhe a coragem para mais perguntas. O que tinha ouvido não era resposta para as suas dúvidas, mas não era a altura para mais perguntas.
Saiu do alpendre ajuizando não voltar. Estancou, olhou para trás, viu os olhos fitos do Manel dos recados. Avançou no caminho «se o ti Manel sonha que o padre Joaquim, além de comer a Tina, era quem controlava o negócio com os padrecos espanhóis, vai tudo raso, nem o dr. Morais se safa. Só eu não tenho sorte nenhuma, todos se comiam, o Tomé e os padrecos estavam quase a dar escândalo, tantas vezes pedi para fazer a viagem, mas não, não tinham confiança, sacanas; agora olhem! Safem-se!, se a coisa estourar, não vai ser debaixo do meu cú não!»
Numa ansiedade que lhe descontrolava os movimentos, numa inquietação remoída desde que lhe tinham roubado o Zinga, Manel dos recados remoía a sua sina enrolando um cigarro «à queima-roupa; o filho da puta. Se tenho a certeza que foi ele arranco-lhe o coração fora. Não há direito. O rapaz sempre tinha feito o trabalho em condições, até a Aldina já experimentava; e o sacana… ou… a sacana… pode ter sido ela… não tenho a certeza se ela estava em Lisboa naquela madrugada… a Tina sei, tinha-se escarrapachado no Tomé e deixou-o a ressonar, depois tinha saído para comprar uma carcaça. A Aldina, ainda meia apardalada pela dose da manhã, tinha acabado de abrir, e estava a fazer café para arrebitar, depois foi o que se sabe e nem quero pensar.»
No fundo da recta apareceram três luzes alinhadas, como que três velas, tremeluzentes, progrediam devagar, aceleravam e travavam, distâncias síncronas, um ronronar de motor; não um, mas dois, uma moto e um carro, a par. O Manel dos recados levantou-se, deu um passo em frente para tentar identificar os veículos. A alvorada espreitava; o Leocádio, lá longe, voltava espavorido. O novelo do Sol, como a cena lá no fundo, desenrolava-se lentamente. Uma luz encabritou-se e desapareceu. Apagou. Dois estalidos. Três. O carro fez inversão de marcha e desapareceu na curva. Leocádio chegou sem fôlego.
- Ti Manel! Ó ti Manel!
O Manel dos recados acende um cigarro com uma calma de fim do Mundo. Risca o fósforo, inala uma passa longa, cospe para o chão e
- Ti Manel! Ó ti Manel! O padre Joaquim fugiu!
- Fugiu?! Ó panascas; mas ele alguma vez esteve preso?
- Tinha sido preso em Guimarães. E telefonou para a mercearia a dizer que vinha para o Sobreiro e que alguém o iria procurar. Que esperasse que ele voltaria a telefonar.
- Não volta. Anda comigo que vais ver que o gajo não volta.



Capítulo XVIII
Luísa Vaz Tavares

- Ó Ti Manel, olhe que eu não sei. Se o gajo telefonou lá para a Aldina é porque alguma tem em mente. Aquele não dá ponto sem nó.
Talvez o Leocádio tivesse razão, mas isso era o que menos importava àquele amanhecer de Manel dos recados. A mota e o carro que tinham partido ao mesmo tempo que chegavam, chiando travões, esses sim, é que não lhe saiam da ideia. Que diachos faziam ali duas viaturas, àquela hora? Teriam vindo trazer ou buscar alguém, ou alguma coisa? Ainda se fosse só o carro, até podia ser o do costume, o Morais. Sim, que ele sabia que o Dr. Morais se perdia por ali, em dias certos da semana, àquela hora. Nunca entendera muito bem porquê, pois se era ele quem mexia os cordelinhos bem podia encomendar o serviço a qualquer um que estivesse em carência. E nem sequer precisava de lhe pagar, bastava satisfazer-lhe as necessidades. Mas preferia fazê-lo com as próprias mãos. Ele lá saberia porquê.
- Ó Ti Manel, que está para aí a matutar homem? Estou para aqui, há que tempo, a falar pró boneco…
- O que é que tu queres, Etelvina?
- Dizia eu que se formos até à mercearia somos capazes de apanhar qualquer coisa.
- Pois então vai lá, anda despacha-te!
- E o Ti Manel não vem?
- Eu tenho de ir a Lisboa, mas volto logo. Espera por mim que temos de falar.
- Falar, Ti Manel? Eu espero mas olhe que vossemecê não faz o meu género.
- Diabo do fedelho sempre feito mariconço. Vai-te lá, anda!
A batida da porta de um carro interrompeu a conversa. Àquela hora, em que o sol ainda mal se desenrolara do novelo que o fizera levantar no horizonte, quem é que já andava por ali a bater portas de carros? Ah, era Morgado. Aquele sim, aquele fazia o seu género. Ai se ele quisesse, seriam tão felizes. Ele é que não queria. Não queria, ainda. Mas quando, finalmente, parecesse aquilo que na realidade era, aí é que não resistiria. “Quando lhe aparecer, linda e escultural Anabela, vai ser uma intensa e tórrida paixão.” Mas que estava para ali a divagar? Tinha era de despachar o assunto, o quanto antes, para, finalmente, se livrar daquela prisão em corpo masculino.
- Ti Manel?... Oh, já se foi…
Encolheu os ombros e, dando meia volta sobre si próprio, encaminhou-se para a mercearia. Já estava aberta, pois claro, a Aldina madrugava. Ou se calhar nem voltava a deitar-se depois das alucinações que sempre lhe antecediam a alvorada. Estava aberta e alguém de mau feitio gritava, lá dentro.
- Vai chamar a outra, já disse! Quero falar com as duas.
- E eu já disse que ela não está.
Ai, não podia, que deus lhe acudisse! Acabara de apaixonar mais um bocadinho. O seu homem tinha mau feitio, que excitação. Se pudesse mesmo agora dava largas à fera que prendia dentro de si. Mas ainda não era hora. Ele que a aguardasse, que veria o que era bom. Para já que ficasse para ali aos gritos com a velha. Quem não se ia lá meter, era ele. E depois se o corpo o atraiçoasse? O melhor era ir-se dali, não fosse o diabo tecê-las e o seu corpo, que era de homem mas sentia como se de mulher se tratasse, se rebelasse contra a sua vontade. A igreja, na igreja sempre se ouvia muita coisa, e dali a bocado era hora da missa da manhã, se já houvesse novidades do padre ou da Albertina mais do Seguro, algum zum-zum por lá se ouviria.
O padre que substituía o Joaquim chegava cedo, ainda faltava uma hora e a porta já estava escancarada. Só podia ter sido ele a abrir a porta daquela maneira, desde que o Octávio fora desta para melhor que mais ninguém se tinha chegado à frente para desempenhar as funções de sacristão. Quer dizer, chegar até tinha chegado mas não interessava ao padre Joaquim. O Octávio estava, tanto quanto ele, enredado nos meandros do negócio. Podia fazer tudo à vontade. E com outro qualquer já não seria assim. Bem, mas já que a porta estava aberta e, assim como assim, sempre tinha que esperar, aproveitava e metia conversa com o novo padre. Ainda não tinha tido esse prazer, quem sabe não seria algum jeitoso que até o deixasse com a vista lavada. O Joaquim não estava nada mal, não fosse ter-se deixado enfeitiçar por aquela cabra da Albertina e podiam ter dado umas boas voltinhas. 
Mas não tinham dado e voltinhas, dava ele agora à porta da sacristia, enquanto, com um bandear de ancas, que não lhe apeteceu reprimir, se preparava para bater. Mas, alertado pelo barulho de uma porta que se abriu e fechou, na outra ala da igreja, em frente da sacristia, só teve tempo de se esconder dentro do confessionário, que foi o que encontrou mais a jeito. “Porra, que esta igreja tem mais buracos que a magana da minha avó”. Outro sobressalto daqueles e ainda lhe dava uma coisinha má. Não é que fosse assustadiça mas pairava ali qualquer coisa no ar. Deitou a cabeça de fora para se certificar que já podia sair do esconderijo e o sobressalto foi ainda maior.
Cruzes, credo, que estava a ficar com o miolo mole. Então não é que tinha acabado de deixar a Aldina aos gritos com o Morgado, lá na mercearia, e agora estava a vê-la sair à porta da igreja, depois de ter saído daquele compartimento que nunca tinha visto em frente da sacristia, na outra nave da igreja? Mas que raio guardava aquela porta? Mais um dos segredos de Sobreiro Aparado? E ele que estava convicto de já ter desvendado todos os segredos daquele maldito lugar. Assim não, assim nunca mais cumpriria a missão que tinha herdado em testamento, e nunca mais ficaria com o tesouro e nunca mais se transformaria naquilo que sempre tinha sido. Bolas, que derrubou o missal atrás do altar. Era melhor despachar-se, antes que começassem a chegar as pessoas para a missa. Esgueirou-se para traz de uma coluna e, já bem perto da tal porta, ouviu vozes. Havia pessoas lá dentro, e eram mais que uma mas Leucádio não conseguia perceber o que diziam. Só quando chegou junto à porta…
- Cabra, por tua causa estamos nesta situação.
- Foste tu que me mandaste meter com ele, lembras-te?
- Para o distraíres, não para viveres uma paixão arrebatadora.
Dizia o Manel dos recados que o gajo não voltava…



Capítulo XIX
Casimiro Teixeira

Esta é a natureza do jogo. – Pensou Leocádio muito baixinho, para que ninguém lhe pudesse peneirar os pensamentos. – Tudo o que qualquer pessoa tem de fazer é lançar a dúvida, o resto fica por conta do desfiar das histórias do destino.
O coração voltou a amolecer-lhe entre as lajes frias da igreja, seguindo-se-lhe as pernas e todo o conjunto da constituição da vontade, e antes que o dia se botasse inteiro na moldura do céu, acabou, sem intenção de ofensa daquela mão que o ergueu, feito pingente de carne no dependuro do rico sobreiro onde se alberga o tesouro dos seus sonhos.
- Não dói tanto como parece. – Exclamava Aldina perante o viés movimento do corpo abaulado ao sabor do vento suave da manhã. – Mas carago, antes ele do que eu! – Rematou depois sem demora. – Era coisa jurada a acontecer, pobre miserável. Que bem te víamos a abanares-te daqui para ali e dali para aqui sem saberes ao certo por onde começares a meter o bedelho.
 E à medida que o tempo passava, aquele lugar mais se ia esvaziando das suas gentes, ficando mais oco de dia para dia, como que confirmando a lenda que o tornava aparado.
- Agora vão todos poder ver. – Diz Morgado tirando lentamente um bloco de notas do bolso interior do casaco. – Esta história já avançou em demasia. D. Aldina! – Bradou depois.
Repetiu o seu nome um par de vezes e começou a rir.
- O senhor quer fazer o favor de olhar para aqui e de começar a fazer contas de cabeça? – Apontava-lhe esta o corpo de Leocádio, hirto e sem trejeitos humanos definidos que alguém pudesse discernir de qual género fossem. – E então?
- Como deve compreender, tínhamos de ter aqui um homem que sobretudo não se enganasse no número de vítimas.
Aldina esperou um instante. Era impossível que ele falasse do Seguro, ou mesmo que aquela fosse a sua última palavra face aos recentes eventos. A seguir, abanou os ombros e livrou-se destas ideias.
Também desta vez a notícia não foi divulgada de imediato, pelo contrário, decorreram muitas horas de prudência, de investigações sigilosas, de convénios secretos entre os locais, que tentavam ganhar tempo de vida entre uma morte e a outra. Não fosse o boato da morte correr célere e trazer-lhes o mesmo destino à porta, mais rápido do que seria de supor.
Descia a rua do comércio o novo padre, Justino. Mesmo preparado para o que vinha, estremeceu perante a visão do enforcado. A tragédia, afinal, é mais recente do que ele pensava. Os espíritos dos falecidos ainda por ali pairavam, quase tão densos e palpáveis como o desvario inexplicável do seu assassino ou asssassinos.
- Ainda há pouco enterraram o último cadáver, Meu Deus! Mas que raio se passa nesta terra afinal?
Indignou-se mesmo a tempo do corpo de Leocádio ser baixado do seu cadafalso de cortiça. O seu rosto nunca chegou a ser visto. O receio daqueles olhos impudicos contarem a verdade era enorme. Amarraram-lhe um lençol de verdete à cabeça com a ajuda de uma farripa de corda, e arrastaram-no mesmo assim, com os dentes charruando a terra por onde passava.
Havia uma folha sustenida porém. Sim, ficara uma folha de papel escrito a pairar no ar estagnado do meio-dia, mesmo aos pés da raiz do sobreiro. Derradeira pista ignota deste interminável mistério? – Quem sabe!
- Eu tomo conta disso. – Apressou-se Morgado a dizer. Tomou o sopeso da folha a seu cuidado e colocou-a com todo o desvelo no interior do miolo do bloco de notas.
A aldeia inteira calou-se de repente. Até o apito contínuo das cigarras e o assobio insone do vento se calaram num silêncio de sepulcro. Ficou o altifalante do corpo no arrasto do seu percurso até ao solar dos Meireles, onde moravam os padres desta paróquia desde os tempos em que Deus aqui assentou leis de régulo.
Na tapada virada a Sul por detrás da igreja, outros planos se descortinavam. O doutor Morais não parecia carente de qualquer informação sobre o ocorrido. Gritava sem abrir os olhos, sem deixar de ressonar acordado: - Não estou a dormir seus estúpidos. Continuem assim, continuem que verão onde isto acaba. – Saía a tentear de entre as teias de aranha da sesta sentenciando que no meio de tantas parvoíces o único que parecia mais certo, era o Seguro, pois ao menos esse era coerente nas suas intenções. – Acabou-se esta porcaria ouviram? – Despachou-os na vereda de azinheiras com a displicência de façam o que fizerem, ao fim e ao cabo, sou eu quem manda.
- Traz-me aqui o Morgado! Isto acaba agora.
O volume do rádio a debitar velhas baladas do Tony de Matos não lhe ocultava o tom de voz. Albertina empinou-se num terror já familiar, assentou as mãos no peito e ajeitou-os ao seu modo.
Depois, desceu-as pelo resto do corpo, alisando a régua os vincos do vestido e da paciência.
- Vou já, acalme-se. Eu trato do assunto.
- Não tratas de nada. Fazes o que eu te mando e basta. Entendido?
Ela limitou-se a acenar e partiu de imediato.
No instante seguinte saiu a procissão atrás do corpo de Leocádio. Morgado comandava essa falsa viagem ao longo da picada. A rua onde morava Sobreiro Aparado surgia-lhe luminosa com novas pistas em cada passo. Parecia pentear os olhos dos habitantes, risco ao meio. Claro que, no aparente sossego da paisagem, nenhuma coisa pedia urgência, contudo Morgado não estava tranquilo. O susto espreitava no farfalhar das folhagens, cada soleira de porta era um segredar da morte, uma infatigável coscuvilhice de uma história maldita que já durava há demasiado tempo.
Em sentido contrário, Albertina vinha pisando caminhos saudosos do pé destas gentes, na sua direcção. Trazia um ar determinado no rosto, como se de repente o mundo pudesse desabar e o chão lhe desaparecesse por debaixo.
A meio caminho entre o desastre e o fim, tropeçaram ambos num homem dormindo no passeio. Numa mão segurava uma corda comprida, na outra, um punho fechado. Em observação mais atenta, Morgado viu que tinha os olhos abertos. Bêbado quiçá? Ou demasiado doente para nem se chegar perto?
Albertina soergueu-se inteira face ao que via. Afinal havia algo nesta terra sonâmbula que lhe instigava maior medo do que o látego invisível do seu mandatário.
- Este homem está morto! – Entrecortou ela as palavras em soluços desconexos.
Realmente assim era. O homem estava escurecido, dessa cor estagnada dos índios. E a corda de sisal, feita de uma porção de metros, parada na sua mão.
Vendo bem as coisas, a morte é afinal uma corda que nos amarra as veias. O utensílio sem serventia na sua mão gelada, faleceu consigo, mas que propósito teria? O tempo vai esticando as pontas da corda, nos estancando a todos, pouco a pouco.
O morto parecia ali estar há mais de meio-dia, louvado pelo desdém e pela moscaria. Vendo melhor, o cadáver descuidado simbolizava aquilo em que a aldeia se tinha tornado: uma imensa casa mortuária.
Morgado voltou a retirar o bloco do bolso. Abriu-o e daí surgiu a folha que encontrou no sopé do sobreiro. O ar estava carregado pelo calor, ensopado de suor.
Deitou o olhar ao cortejo fúnebre que prosseguiu sem ele, agora encabeçado pelo padre Justino no sentido da casa paroquial, e voltou de novo a sua atenção ao papel.
- Inspector… - Continuava Albertina. – Ouviu o que lhe disse? Este homem está morto!
- Eu sei. – Replica Morgado sem uma dúvida no rosto. – É o que diz aqui neste papel.



Capítulo XX
Carolina Lemos

Mortes, mortes e mais mortes. O ar, em Sobreiro Aparado, estava saturado de um cheiro a morte que se espalhava lentamente e entrava pelas frestas das janelas mal calafetadas. Os sinos não pareciam ter sossego de há uns tempos para cá. Cumpriam a sua função nefasta de avisar que mais uma alma se tinha finado. E lá tocavam eles hoje, por Leocádio, que não tinha conseguido ao longo da sua curta vida, ser alguma vez chamado de Anabela.
Poucos apareceram no funeral de Leocádio. Tinha sido sempre uma pessoa estranha para a maior parte das gentes de Sobreiro, que não compreendiam muito bem a dualidade que habitava naquela alma condenada por uma herança familiar. O novo padre executou os rituais fúnebres com alguma celeridade. Estava a começar a sentir-se inquieto com o ambiente em Sobreiro. Tinha sido mandado para aquela terra, despachado da sua cidade do coração, Lisboa, onde tinha encontrado a sua fé. No meio daquele lugar, o padre começava a duvidar que a fé e a luz se encontrassem por ali.
Ti Manel olhava de longe o funeral – Raios, o rapaz até nem era má rés, só meio maluco. Não merecia uma morte assim. E enganado por aquela história inventada do tesouro, tinha vivido uma vida de ilusão. Estava era na hora de partir para outras bandas, antes que tivesse o mesmo destino que o Leocádio e que aquele espanhol que agora tinha aparecido esventrado nas ruas de Sobreiro. Olhou para um lado e para o outro e deu meia volta, indo em direção à saída daquela terra maldita. Não queria saber mais do Dr. Morais, de mais regalias em troca do tráfico de droga e claro do contrabando que era enterrado ali mesmo à beirinha de Sobreiro. Porque o tesouro de que tanto falavam não era mais que contrabando que ia e vinha nas noites escuras. Aquele Sobreiro Aparado era o sinal entre os contrabandistas. E Leocádio apenas um sujeito inocente deslumbrado por uma treta de história de tesouro. Tinha sido usado pela família para continuar a tradição de contrabandistas que perdurava na família. E aproveitando o contrabando, tinha começado a nascer também o negócio da droga, que tinha resultado em mais mortandade. E que parecia resultar numa maldição para todos os envolvidos.
De um minuto para o outro, a sombra do Ti Manel deixou de ser vista no horizonte e nunca mais ouviram falar desta personagem, que ficou esquecida nos livros de história da terra.
- Seguro, Segurinho, vamos embora daqui – suplicava ardilosa Albertina, a mulher demónio desta história. Vamos viver juntos bem longe daqui, viver do desejo que nos une. Aqueço-te as noites e alimento os teus dias de comida e de mim.
- Cala-te mulher. Mais uma vez deixei-me levar por uma mulher, ferramenta do Diabo. Se estraguei uma vez a minha vida, não vou estragar uma segunda! – E dito isto Seguro saiu porta fora, decidido a mudar o rumo desta história. Continuava confuso, sem perceber muito bem onde estava a ponta do novelo que ia desenrolar esta história toda mas que não ia acabar expulso da PJ não ia. Tinha de conseguir que Morgado confiasse nele e que terminassem juntos aquele caso maldito.
Morgado ouviu uma pancada forte na porta do seu quarto naquela pensão mal-amanhada que lhe tinham arranjado. Suspirou e pousou a caneca onde bebia o café morno e queimado que lhe tinham dado ao balcão daquela tasca enterrada bem no meio da terra.
- Entre! – Gritou mal humorado. Tinha estado a noite toda a dar voltas à cabeça a tentar deslindar aqueles mistérios que se enredavam uns nos outros. Já tinha algumas teorias e umas quantas certezas.
- Que é que queres? Não me venhas com tretas que não estou com disposição para te aturar. Sabes perfeitamente que vais ser no mínimo suspenso quando chegares à sede. – E dito isto, Morgado olhou com desprezo para Seguro.
- Quero ajudá-lo a terminar esta história de forma limpa. Até posso sair da PJ depois disto mas quero terminar esta história de forma correta – Seguro olhou com atitude os olhos de Morgado, que compreendeu que ali até podia ter uma ajuda suplementar para terminar aquela história maldita. Não era a melhor ajuda que desejara mas à falta de melhor, servia. E podia ser um trunfo importante para apanhar a víbora da Albertina.
- Senta-te! E ouve-me. Se queres mesmo sair desta história o mais limpo possível, ouve com atenção e não faças perguntas, ok! – Afirmou categoricamente Morgado.
Seguro saiu do quarto de Morgado meio tonto com tanta coisa que este lhe tinha contado mas decidido a cumprir a sua função. Era um bom polícia, sabia que era, só precisava da oportunidade certa.
Morgado telefonou ao colega da polícia espanhola com quem tinha falado de manhã por causa do individuo espanhol que tinha aparecido morto e que pelos vistos também era procurado por tráfico de droga e pediu para ele ir até aquela localidade o mais depressa possível. Precisava de todos os reforços possíveis. Tinha de atacar em três frentes – apanhar o padre Joaquim juntamente com a amante Albertina, prender as irmãs por envolvimento em contrabando e morte de Octávio e acima de tudo, apanhar o Dr. Morais. Se Seguro se portasse bem, ia ser fácil apanhar os dois primeiros. O Dr. Morais já tinha provas suficientes, das folhas do caderno do Ti Manel (que por sinal, nunca mais ninguém o vira, mas também era a personagem menos importante daquela geometria de crimes, era apenas um homem de recados). Ti Manel, embora fugitivo, já tinha cumprido a sua redenção ao deixar para trás o caderno onde guardava a troca de mensagens, cartas e esquemas encomendados pelo Dr. Morais e da sua ligação com os traficantes espanhóis com nomes e tudo. Com a ajuda do colega espanhol, seria bem fácil apanhar o Dr. Morais.
As únicas peças que continuavam a revelar-se complicadas de resolver eram aquelas duas almas. Velhas astutas, tinham um esquema perfeito de contrabando que durava há décadas, com a cumplicidade da família de Leocádio.
Seguro cumpriu direitinho a sua função. Depois de ter saciado Albertina uma vez mais, fazendo-a percorrer os seus lençóis com gritos de um prazer que lhe percorria as entranhas, passou-lhe ao de leve as mãos pelas costas, e aproveitando o estado de torpor provocado pelo êxtase, começou a puxar por ela.
- Vamo-nos daqui, mulher minha. Não vou conseguir voltar para a polícia e não. Vamo-nos perder por este mundo fora. Dou-te todo o prazer que desejes e dou-te uma vida de princesa. Tenho um dinheiro amealhado que ganhei dos meus avós e mais algum dinheiro que ganhei por uns serviços extra e posso manter-te por muitos bons e anos. Esquece o padre Joaquim e o dinheiro da droga. Tens –me a mim, que mais queres? – Sussurrou Seguro no ouvido de Albertina.
E Albertina, que por mais esperta que fosse, tinha no sexo o seu ponto fraco, riu-se desdenhosamente e no meio da gargalhada disse em alto e bom som:
- Ahahah, meu querido, nunca me poderás dar tanto dinheiro nem prazer como o meu padre Joaquim!
Dito isto, ela só viu três polícias a entrarem pelo quarto dentro, a afastarem Seguro para o lado e a agarrarem os seus braços com força, arrastando-a nua para o chão do quarto onde foi algemada e levada para a carrinha da polícia, apenas coberta com o roupão já velho de Seguro.
O padre Joaquim foi preso na fronteira entre França e Espanha onde tinha procurado abrigo num mosteiro, depois de ter morto Leocádio, por este ter ouvido demais na sacristia…… Disse duas ou três blasfémias e foi levado para os calabouços da PJ, donde só saiu diretamente para a prisão, por umas boas décadas. Foi Seguro que o meteu na carrinha e olhou-o com ar triunfante.
- Apanhei-te, oh grande escumalha!
Seguro continuou na PJ, tendo sofrido mais uma repreensão na folha de serviço. Mas a paz para aquela alma durou pouco. Apaixonou-se por uma prostituta e foi morto pelo chulo dessa mulher de má vida. E assim, o destino não teve compaixão pelo desejo animal que incendiava Seguro por mulheres perdidas.
O Dr. Morais foi preso na sua casa de férias no Sul de Espanha. Os cadernos de Ti Manel e a investigação cuidadosa de Morgado tinham fornecido provas suficientes para afastar aquele homem e parar com um dos braços da corrupção que se instalara em diversos sectores.
Mas Morgado ainda tinha uma missão, prender aquelas duas irmãs sinistras. E acabar com a tradição de contrabando que reinava em Sobreiro.
Dirigiu-se à mercearia num fim de tarde e só se voltou a saber de Morgado quando este foi encontrado a balouçar num dos ramos que Leocádio não tinha aparado convenientemente.
Reza a história atual que sempre que os ramos do Sobreiro crescem demais, alguém morre. Ninguém tem coragem de se aproximar daquela árvore maldita mas o certo é que a árvore continua a ser aparada, em noites em que se vê uma alma de mulher em corpo de homem a rondar a árvore. O contrabando continua a trilhar aqueles caminhos e as duas irmãs continuam a beber as suas garrafinhas, rindo de todos aqueles que tentam meter-se nos seus caminhos. E volta meia volta, lá tem o padre de rezar mais uma missa fúnebre. O único consolo deste padre é o licor que lhe vai aquecendo as noites frias daquela terra esquecida por Deus.



FIM



          Publicado em Livro:  Acrescenta Um Ponto Ao Conto - Vol I


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