Fotografia © Gastão Brito e Cunha |
O mar estava tão revolto quanto a
sua alma. As ondas rebentavam nas rochas com a mesma intensidade que os flashes
da visão de Sofia agarrada à mala lhe chicoteavam o pensamento. Nem tinha
percebido o rumo que tomara, até ali chegar. Avançou, em passos ébrios, para a
falésia que à sua frente segurava as investidas da natureza em fúria e fechou
os olhos, sentindo o cheiro do último trovão. A tempestade repentina daquele
final de tarde travaria qualquer um, mas a ele não. João estava tão
enlouquecido de raiva que enfrentaria qualquer perigo, como se quisesse medir
forças com o próprio destino.
No último instante, parou à beira do
precipício e num gesto reflexo sentou-se na pedra dura que, determinada, suportava
a força das águas. Seria aquilo que lhe faltava? Determinação. Determinação para
dar a volta ao estado a que chegara o seu casamento? É que nem sempre fora
assim. No início, tinham vivido um interlúdio emocional permanente. Sofia era
uma mulher intensa, absorvente até, mas ele amava-a e gostava do frenesim que
era viver a seu lado. Era como se vivesse constantemente no fio da navalha, uma
sensação de vida que só sentia com ela. Mas com o tempo esse frenesim começou a
cansá-lo e a força para a acompanhar faltava-lhe, às vezes. Será que com Sofia
só era possível viver naquela inquietude? Estava tão atormentado que já não
sabia se o que estava a pensar fazia algum sentido.
Levou a mão ao bolso e sentiu a
carta que tinha tirado da mala. Não fazia nenhuma ideia do que pudesse estar
escrito naquele pedaço de papel amarelecido pelo tempo, mas constrangeu-se ao
tocá-lo e sentado no cume da escarpa, ali ficou com a carta a queimar-lhe nas
mãos.
Em casa, Sofia voltava a atenção,
mais uma vez, para a mala. Sentada no chão do escritório, abriu-a à sua frente,
tornou a remexer o conteúdo e pegou num maço de cartas amarrado com uma fita de
cetim azul bastante desbotada. Curiosamente, tinha as letras viradas para dentro,
impedindo qualquer pessoa de à primeira vista ver os nomes ou as direcções. Por
minutos, ficou ali, com os dedos a segurar a ponta da fita, mas desviou o olhar
para o caderno e com um gesto abrupto, largou o maço das cartas e agarrou-o.
Abriu-o na primeira página e o que
leu causou-lhe um choque.
Diário de Bordo
Travessia atlântica Brasil\Portugal
Raul Coutinho Cortez
Ela conhecia aquele nome! E até sabia de onde. Há coisas
que as crianças jamais esquecem. Neste caso, era já uma pré-adolescente. Certa
vez, ouvira uma conversa entre a avó e o avô, em que a avó mencionara o nome
Raul Coutinho Cortez. Aquilo parecera-lhe envolver um certo secretismo, ainda
assim arriscou-se a perguntar quem era a pessoa que falavam. A resposta da avó?
Nunca mais a esquecera. Ficou lívida de raiva e proibiu-a terminantemente de
pronunciar aquele nome à frente de fosse quem fosse. E é claro, isso incluía
qualquer investigação por conta própria.
Esta descoberta só fez aumentar a ansiedade que Sofia
sentia e a avidez com que se debruçou sobre a leitura do que agora sabia ser um
diário de bordo. Não começou pelo início, abriu uma página ao acaso e leu:
Dentro de algumas
horas, o navio atracará no porto de Lisboa. Estou ansioso para finalmente pôr
os pés nessa terra que toda a vida deixou a minha mãe de semblante triste e
saudoso. Já há quase um ano, que devia ter vindo. Quando o pai soube da mudança
de regime político em Portugal – a 5 de Outubro de 1910 -, disse logo que
tínhamos de vir a Portugal. Se pretendia ficar ou não, não sei… nunca o ouvi
dizer, mas depois houve aquela tragédia e eu, sozinho no mundo, quase que me
perdi de mim próprio. Ainda assim, este país corre-me nas veias, o apelo do
sangue trouxe-me até aqui. Apesar do amor\ódio que toda a vida nutri pela terra
dos meus pais, o destino foi imperioso. Agora, quase a terminar a viagem, ainda
não tenho planos. Só há uma coisa que tenho certeza que farei de imediato:
procurar os meus avós. Não sei se terei sucesso, mas pelo menos tenho um ponto
de partida. Tenho um papel que encontrei entre as coisas de mamãe, com um
endereço de Lisboa. Fica no Bairro da Graça…
As revelações jorravam na mente de Sofia a um ritmo
estonteante. Não estava certa de estar a entender tudo o que ali se revelava,
mas sentia que era importante. Por isso continuou a ler quase sem respirar.
O próximo texto datava de cinco dias mais tarde.
17 de Novembro de 1911
Sempre achei que
minha mãe pertencia a uma classe alta da sociedade portuguesa. A forma como me
ensinava regras de comportamento e etiqueta e me obrigava a cumpri-las, deixava-me
desconfiado. Agora tenho a certeza. Quando cheguei ao número daquela rua
mencionado no meu papel, quase levei um susto. Aquilo não é uma simples casa,
aquilo é um palacete. Aliás, é assim que vou designa-lo a partir de agora.
Quando toquei à
porta, apareceu uma criada de farda bem engomada que foi a correr chamar a
patroa, assim que eu disse o meu nome. A avó veio logo a seguir. Puxou-me para
dentro e por algum tempo, ficou a observar-me em silêncio. Até que, finalmente me
abraçou e disse algo estranho: “és tal e qual como imaginei”. Então ela sabia
quem eu era? Antes que eu tivesse tempo de perguntar, levou-me para uma sala
forrada de livros que conclui ser a biblioteca da casa. “O meu marido não está,
vamos conversar aqui.”
A avó não é
exactamente como eu pensava. Eu esperava encontrar uma senhora fina, bem
cuidada, talvez fútil, como são as damas da sociedade. Ao contrário disso, a mulher
que encontrei tem um aspecto descuidado e no olhar, uma tristeza profunda.
Sinais de quem envelheceu antes do tempo.
Mas isso não me
impediu de dizer o que fui lá dizer. Foram anos e anos a assistir à
infelicidade da minha mãe e às acusações do meu pai. “A culpa é dos teus pais”,
“agradece aos teus pais”, “se os teus pais me tivessem aceitado, não
precisávamos de ter fugido”, são expressões que ainda hoje me atormentam. Ela
precisava saber da infelicidade da filha. Quando era criança não entendia bem o
significado daquelas palavras, mas à medida que fui crescendo, fui construindo
a história. O meu pai foi para o Brasil contrariado e por isso afundou-se no jogo e
no álcool.
Depois… depois houve
aquela madrugada que jamais esquecerei. Como habitual, o meu pai chegou a casa
embriagado. Ouvi-o entrar e ir para o quarto, onde a minha mãe já estava
recolhida. Ao contrário dos outros dias, ela não o repreendeu, nem se lamentou
da sua vida sofrida. E eu fiquei à espera naquele silêncio incomum. Até que se
ouviu o estrondo. Não dava para confundir, era um tiro. Corri para o quarto onde
os dois estavam e quando ia a entrar, outro tiro fez estremecer o meu corpo.
Pois é, os meus pais se suicidaram no mesmo dia, praticamente à mesma hora.
Enquanto descrevia o
momento a avó chorava. Até que desmoronou num pranto e gritou: “minha querida
filha, eu sabia… eu sabia! Meu coração sentiu que algo de mal acontecera,
quando as cartas deixaram de chegar”…
Sofia sentiu lágrimas escorrerem-lhe pelo rosto. Estava
escuro. Tinha anoitecido, sem que desse conta. Ouviu João meter a chave na
fechadura e num instante, estava ali, entre portas. Tinha uma carta na mão.
Luisa Vaz Tavares
Está a ficar cada vez melhor. O mistério adensa-se. Excelente capítulo, Luísa, parabéns!
ResponderEliminarUm bom aproveitamento de pontas soltas para que elas se atem ou desatem ainda mais. Como é normal, a Luisa está de parabéns :)
ResponderEliminarNão é um regresso. Raul, não é um de torna-viagem. Este, é um chamamento de sangue.
ResponderEliminarTudo se esclarecerá no passado. Estará o encontro futuro numa carta na mão?
Excelente capítulo, onde destaco a fluidez da escrita.
Parabéns Luisa!
Excelente desembolvimento da história presente passado.
ResponderEliminarAdorei Luisa como sempre
Obrigada a todos, pelas simpáticas apreciações.
ResponderEliminarLuísa, passei uma semana sem tréguas, final de semestre letivo na escola, só hoje pude vir ler o teu capítulo! Que leitura gostosa e suave!! Parabéns! Gostei imenso!!! Vou a correr ler o próximo!
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