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Laíssa incorporou
no seu sonho o ribombar de um trovão gigantesco e o vibrar do chão e das
paredes. Centenas, talvez milhares, de naves cobriam o céu.
Teria a
elite descoberto os planos de revolta? Ela bem desconfiara que, com tanta gente
envolvida, haveria fugas de informação.
A porta do
apartamento foi arrombada. Guardas, de armas em punho e de rostos irreconhecíveis
pela viseira escura dos seus capacetes, apoderaram-se de Orionte e entraram no
quarto dela. Tinham vindo para os prender, ou para os matar?
Laíssa deu
um grito. E acordou, banhada em suor. Num primeiro momento, ficou aliviada: apenas
um pesadelo. Mas o trovejar mantinha-se, o apartamento vibrava, as persianas
abanavam como loucas.
Levantou-se,
foi até à janela do seu quinto andar e, depois de abrir a persiana, quedou-se aturdida
perante uma chuva diluviana e ventos ciclónicos que arrancavam árvores pela
raiz. Ao longe, o rio Auron aumentava assustadoramente o caudal, formando ondas
altas.
De repente, a terra começou a tremer. Laíssa
agarrou-se ao parapeito, sem saber como reagir. Ao ver os primeiros prédios a desabarem,
porém, percebeu que só lhe restava fugir. Calçou-se e, enquanto vestia um
casacão por cima do pijama, dirigiu-se ao quarto de Orionte, cambaleando, devido
aos abalos.
O ancião continuava
deitado, de olhos fechados. Não ouviria aquele barulho ensurdecedor, não
sentiria os abanões? Laíssa impressionou-se com a sua palidez. Abanou-o pelos
ombros, berrando o seu nome. Orionte não reagia. Estaria morto?
Os quadros,
os livros e os outros objetos colocados nos móveis caíam ao chão, gavetas
abriam-se. Era imperioso que saíssem dali e Laíssa não deixaria Orionte
sozinho, sem saber se estava vivo ou morto. Carregá-lo-ia, por mais que lhe
custasse. Puxou-lhe a roupa da cama para trás e preparava-se para o agarrar
pela cintura, quando ele gritou:
- Não,
Laíssa!
Tinha os
olhos escancarados, raiados de sangue.
- Deixa-me!
Resta-me pouco tempo de vida.
Orionte aproveitou
a perplexidade dela para lhe passar uma pequena placa com um ecrã para a mão:
- Rafael
deu-mo ontem. Chama-se “digi-phone” e permite-te comunicar com ele e Iosef. Só
precisas de chamar os seus nomes…
De repente, o
ancião levou as mãos à garganta, abafado, a lutar por cada lufada de ar.
Pedaços do estuque das paredes e do teto começaram a cair, o prédio abanava
cada vez mais, a chuva batia nas janelas com fúria nunca vista. Ouviam-se os
gritos dos homens, vindos das escadas do prédio.
-
Despacha-te - ordenou Orionte de voz rouca. - Pertences aos eleitos.
- Eleitos? Enlouqueceste?
Não me deixes sozinha, neste fim do mundo!
- Vai! - O
ancião fazia um esforço terrível para se fazer ouvir, no meio do barulho. - Vai
ter com Iosef e Rafael! Tendes uma missão a cumprir, sois eleitos…
- Não fales
assim, que não te entendo - replicou, entre lágrimas, enquanto o prédio ruía à
sua volta.
Orionte
agarrou-lhe os ombros e, de olhos escancarados, berrou, como em transe:
- Não
matarás! Não matarás!
Largou-a, de
repente. Estava morto.
Laíssa
rompeu num pranto desesperado. O instinto de sobrevivência, porém, fê-la reunir
todas as suas forças para largar Orionte e sair do apartamento.
Embora
aquela visão o dilacerasse, Theo decidira-se pela escrita de um novo Tomo do
livro Terra. Daria mais uma hipótese à raça humana, considerando, porém, que tal
só seria possível evitando a revolução que Rafael e os seus seguidores
planeavam. Teriam de matar, a fim de acabar com a elite tirânica, o que
contrariava o Quinto Mandamento que ele próprio criara. Por várias vezes, Theo
constatara que uma nova sociedade, fundada por humanos que haviam matado e
causado sofrimento a outros humanos, mesmo sendo por uma boa causa, estava
condenada ao falhanço. Por isso se decidira por uma catástrofe de proporções
gigantescas, chamando novamente a si a responsabilidade de eliminar todos
aqueles que achasse desnecessários, mesmo os inocentes.
Tudo isto o
dilacerava, dando início ao sofrimento que tão bem conhecia, desde o tempo em
que se materializara humano. Novamente sentia o crânio massacrado pela coroa de
espinhos, o sangue a escorrer-lhe pelo rosto, os chicotes deixando-lhe as
costas em carne viva, o desprezo e achincalhamento públicos, a sede, a fome, o
desespero. Mas sabia que o pior estava para vir, quando sentisse os grossos
pregos que, à força de martelo, lhe dilaceravam as mãos e os pés, tudo
confluindo na dor indiscritível de agoniar pendurado numa cruz.
«Meu Pai,
porque me abandonaste»?
Quantas
vezes teria ainda de arcar com os pecados daquele mundo?
Laíssa juntou-se
aos restantes habitantes do prédio, todos homens, na sua fuga. As escadas
estavam ainda intactas, mas muitas paredes já tinham desmoronado. A chuva penetrava
no edifício, batia-lhes no corpo, o vento soprava violento. Nem todos se conseguiam
manter agarrados ao corrimão. Laíssa ouvia os gritos dos que eram levados pelas
rajadas ciclónicas, via-os a voar como se fossem folhas no Outono.
Sem saber
como, conseguiu chegar à rua, mas não havia tempo para suspiros de alívio. Era
quase impossível andar, a visão miserável. Enxurradas levavam consigo pessoas e
animais, o tremor de terra persistia, gente caía desamparada dos prédios que
desmoronavam, ou ficava soterrada nos escombros.
Abrigou-se
na soleira de uma porta ainda intacta, sem saber o que fazer. Lembrou-se do
“digi-phone” que Orionte lhe tinha dado e que ela tinha posto no bolso do casacão.
Agarrou nele, a tentar lembrar-se das instruções do ancião. «Só precisas de
chamar por eles».
Embora lhe
parecesse patético, pois nunca tinha usado aparelhos daqueles, pôs o
“digi-phone” à sua frente e berrou por Iosef. Depois de algumas interferências
no ecrã, viu-lhe o rosto.
- Iosef, meu
amor - exclamou, entre lágrimas. - Onde estás?
- Laíssa,
graças a Deus! Espera um momento, enquanto te localizo!
- Vens
buscar-me?
- Não posso.
Rafael e eu estamos a tentar salvar o maior número de crianças possível. Mas
dou-te já um itinerário. Espera!
-
Itinerário? Que queres dizer?
- Tens de
vir ter connosco ao edifício RT 505.
- Edifício
quê? Estás louco? Eu não conheço nada aqui…
- Fica
calma, Laíssa…
- Calma? O
mundo desmorona à minha volta e pedes-me calma?
- É só mais
um momento… Ah, cá estás! E aqui está o itinerário. Foi difícil programá-lo,
pois o Auron aumenta de caudal a cada instante e já alagou muitas ruas,
provocando enxurradas que não dão hipóteses de sobrevivência. Acabará por
alagar a cidade inteira. Mas só precisas de seguir o itinerário que te envio,
para lhes escapares… se conseguires fazer o percurso em 15 minutos. Estarei à entrada
à tua espera. Despacha-te!
O rosto de
Iosef desapareceu para dar lugar a um mapa. Uma seta indicava a posição dela,
uma voz feminina fez-se ouvir: «a vinte metros, vire à direita».
Laíssa
reuniu todas as suas forças para sair do local abrigado e iniciar a sua
caminhada, contra o vento e a chuva. Naquela rua, a água corria já muito rápida,
mas ela conseguiu atingir a esquina, que lhe deu acesso a uma ruela mais
abrigada. Teve igualmente a impressão de que o tremor de terra tinha cessado.
Foi seguindo as instruções do aparelho, até que deparou com uma grande avenida,
muito fustigada pela tempestade. A água subia, a corrente ficava cada vez mais
forte, Laíssa avançava a passo de caracol. A voz disse-lhe, naquele tom neutro
de quem dá instruções para uma receita: «Acelere o passo! A avenida será
dominada pelas águas em poucos minutos».
- Como posso
acelerar, sua estúpida? O vento e a chuva não me deixam. Além disso, não vejo
nada.
«Se não
atingir as escadas dentro de dois minutos, diminuirá a sua hipótese de
sobrevivência».
Entrou em
pânico:
- Iosef! Ouves-me,
Iosef?
O rosto dele
surgiu:
- Laíssa! Deixa-me
ver onde te encontras… Despacha-te, estás em grande perigo!
- Não
consigo…
- Consegues,
pois! Tu és uma eleita! Acredita! Tem Fé!
A água já
lhe chegava à cintura, com uma corrente incrível. Laíssa avançava agarrada aos
puxadores de algumas portas que se mantinham de pé. Pessoas levadas pela
enxurrada passavam por ela, algumas aos gritos, outras já mortas.
«Restam-lhe
trinta segundos».
Alcançou as
escadas, um acesso pedonal a uma rua num nível mais elevado. Laíssa agarrou-se
ao corrimão, mas demorou uma eternidade a vencer três degraus. Não via como conseguiria
chegar ao fim.
«Os dois
minutos esgotaram-se. Tem apenas 10% de probabilidade de sobrevivência».
Com a força
do desespero, cerrou os dentes e almejou alcançar os degraus ainda livres da
corrente assassina. Atingiu a rua desejada e caiu esgotada, a respirar às
golfadas.
- Laíssa!
Responde, Laíssa!
- Iosef, não
posso mais…
- Despacha-te,
restam-te quatro minutos para atingires o edifício RT 505! As águas atingirão igualmente
as ruas de nível mais elevado.
Mais uma vez
arranjou forças sem saber onde. Livrou-se do casacão, que se tornara um peso
inútil, e avançou, encharcada até aos ossos, o pijama colado ao corpo, seguindo
as instruções do “digi-phone” na sua mão.
- Laíssa! Já
cá devias estar. A enxurrada não tarda a surgir.
- Estou
quase…
Dobrou mais
uma esquina e Iosef viu-a. Foi ao seu encontro a fim de a ajudar a vencer os
últimos metros contra a chuva e o vento ciclónico.
- O Rafael está
à nossa espera com a nave para nos levar à plataforma.
- À
plataforma?
- No
edifício RT 505 encontra-se a única plataforma que permite a aterragem e a descolagem
de naves Jumbo, nesta cidade de ruas apertadas e prédios altos. Mas temos de
nos despachar. As crianças estão sozinhas e, em breve, começará um terramoto
ainda mais forte.
- Como
sabes?
Iosef não
respondeu. Tinham chegado à entrada do edifício e embarcaram, sem demora, na
pequena nave. Rafael descolou, a fim de atingir a plataforma a 150 metros de
altura. Depois de recuperar o ar, Laíssa perguntou:
- Onde estão
as crianças?
- Sozinhas? Não
há adultos? E o meu pai, Thays, Eduína…
Os homens
não responderam. Rafael limitou-se a pilotar a nave, enquanto Iosef desviava o
olhar, porém, sem conseguir disfarçar a dor. Laíssa agarrou-lhe as vestes:
- Diz-me! Morreram
todos?
Iosef
encarou-a:
- Tenho
muita pena, mas tivemos de nos concentrar nas crianças, cumprindo a palavra.
- A palavra?
Que palavra?
- A palavra
escrita. Assim está escrito.
- Que queres
dizer, Iosef? - Berrou Laíssa. - Não estou a entender nada…
- Não há
tempo para discussões - admoestou Rafael. - Começou o novo terramoto, a
plataforma não aguentará muito tempo.
Tinham
aterrado mesmo ao lado da nave Jumbo, de outro modo, não resistiriam às rajadas
ciclónicas, já que a plataforma abanava igualmente devido ao tremor de terra.
- Depressa!
Depressa!
Mal
entraram, Rafael dirigiu-se à sala de comando, enquanto Laíssa e Iosef se
dedicavam às cerca de sessenta crianças assustadas. Os adolescentes que se
encontravam no seu meio ajudaram os dois adultos a apertar os cintos de
segurança das mais pequenas. Depois, sentaram-se nos seus lugares, Thyara agarrada
ao pai, entre ele e Laíssa, que apertava Míryo contra si.
Rafael lutava
contra as dificuldades na descolagem. Uma nave Jumbo devia ser pilotada por
três pessoas, duas, no mínimo. Acabou por descolar aos solavancos e aos
abanões, mesmo a tempo de deixar a plataforma que começava a desmoronar.
Rafael
via-se aflito para estabilizar o aparelho, um joguete nas garras do ciclone. As
crianças gritavam e choravam, Iosef e Laíssa tentavam acalmá-las, sem poderem
sair dos seus lugares e escondendo a própria angústia. Com Míryo junto ao peito,
Laíssa viu, pela janela, como os prédios mais altos da Grande Cidade colapsavam
e eram engolidos por enormes valas abertas pelo terramoto. Antes de a nave
romper a parede de nuvens escuras, ainda teve tempo de ver um tsunami colossal
a engolir as ruínas.
Acima das
nuvens, a nave estabilizou. Puderam desapertar os cintos de segurança e deixar
os seus lugares. Laíssa tinha inúmeras perguntas, mas urgia, primeiro, tratar
das crianças, garantindo-lhes que o perigo tinha passado.
Assim que
tudo estava calmo, Laíssa, que já se tinha secado e mudado de roupa, perguntou
a Iosef:
- Para onde
vamos?
- A lado
nenhum. Ficaremos em órbita e regressaremos à Terra, assim que as catástrofes
naturais tenham passado.
- Mas está
tudo em ruínas…
-
Aterraremos num local aprazível, uma enorme ilha que, depois da tempestade,
apresentará um céu azul, um sol radioso e um mar calmo.
- Não me
digas! E como sabem vocês da existência dessa ilha paradisíaca?
- Rafael tem
as coordenadas… Estavam nas Escrituras.
- Nas
Escrituras? - Chegara a altura de esclarecer as dúvidas. - Iosef, que conversa
é essa de Escrituras, de palavra, de sermos eleitos?
Depois de
respirar fundo, ele respondeu:
- O meu pai,
Orionte, era um profeta.
- Profeta?
- Sim, uma
pessoa próxima de Deus, capaz de comunicar com Ele. Tudo o que viveste hoje,
estava previsto, escrito. Meu pai sabia que nós os três seríamos os únicos
adultos a sobreviver, deu-nos instruções de como agir e as coordenadas da ilha
onde devemos aterrar. Rafael, tu, eu e estas crianças somos os eleitos, os
primeiros protagonistas do novo Tomo do livro Terra.
Depois de,
mais uma vez, aguentar toda a agonia e todo o sofrimento, Theo suspirou
aliviado. O novo Tomo estava iniciado e os eleitos tinham agora o seu destino
nas próprias mãos. Cabia a Rafael, Iosef e Laíssa, adultos corajosos e
honestos, que nunca tinham sujado as mãos com sangue humano, educar as
crianças, sem injustiças, invejas, nem violências desnecessárias. O seu próprio
exemplo, a retidão do seu carácter e a sua capacidade de cumprir os Dez
Mandamentos eram imprescindíveis, mais do que qualquer sermão.
Theo esperava
que não tivesse de, novamente, sofrer as agruras da cruz.
À saída da
nave, Laíssa foi surpreendida por uma pomba branca com um ramo de oliveira no
bico.
Cristina Torrão
Uma pomba branca! O eterno símbolo da Paz.
ResponderEliminarPois é assim!
Que excelente forma de acabar este conto! :) Bom fim de semana.
ResponderEliminar--
O diário da Inês | Facebook | Instagram
Cristina, que lindo final puseste!!!!!!!! Obrigada pela deliciosa leitura!!! Parabéns, querida, mil vezes!!! Tenho ainda mais orgulho de fazer parte deste grupo!
ResponderEliminarA PAZ para finalizar um conto bem interessante!!!
ResponderEliminarbj
Gostei bastante. Parabéns.
ResponderEliminarEspero que continuem a brindar-nos com mais contos.
Bom fim-de-semana
Magnifico final!
ResponderEliminarParabéns, Cristina.
Great post, love it!
ResponderEliminarHope you can click on link at the end of my last post and if you want that we follow each other let me know :)
http://beautyshapes3.blogspot.com/2018/06/elegant-romper-outfit-zaful-part-1.html
Parabéns, Cristina. Serão sempre conturbados os tempos enquanto for conflituoso o Homem. Resta-nos essa pomba branca e a esperança de uma "Luz ao Mundo" num ramo de oliveira. Bonito.
ResponderEliminarUma postagem de respeito, Cristina. Parabéns, assim também imagino!
ResponderEliminarGrande abraço,
Jorge
Continuo à acompanhar com bastante interesse esta muito bem escrita história.
ResponderEliminarUm abraço e bom fim-de-semana.
Andarilhar
Dedais de Francisco e Idalisa
Livros-Autografados
Imaginação a rodos do princípio até ao fim.
ResponderEliminarJá pensaram concorrer com este conto a um concurso??
Fica a sugestão.
Boa semana
Gostei do conto em que perdi parte, mas mesmo assim o que li me maravilhou pois os textos todos eram de excelente qualidade e forma e conteúdo, muito bem escrito. Parabéns! Gostei da simbologia final da pomba com o ramo de oliveira. Lindo! Grato pela partilha. Grande abraço. Laerte.
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