Alegada foto de Dionísio durante o internamento |
2 de Janeiro, segunda-feira.
- Cheguei no dia 27 ao
fim da manhã. Comigo entrou uma tal Matilde.
- Na mesma furgoneta em
que viemos saíram quatro, cerviz derrotada, passos lentos, olhar vagaroso como
quem vai sem destino anunciado. Disseram-nos que iam para a consulta externa. A
Matilde também duvidou.
- A recepção foi feita
pela empregada Ilda, um virago autoritário faz-tudo e manda-tudo que nos despejou
as ordens e os utensílios necessários no aquartelamento. É verdade; isto parece
mais um aquartelamento do que uma casa de repouso ou, “Comunidade
Terapêutica”!, como já lhe ouvi chamar. Tem quartos partilhados para dois ou
mais, refeitório com self-service, casas de banho colectivas, sala de estar com
televisão e. Um piano! Um piano, senhoras e senhores… Quem será o maluco que
sabe música?! Ah-Ah-Ah… Só lhe falta um bar de caserna com baralhos de cartas e
dominós. Também tem um pátio interno para quem está confinado, e o jardim,
quando está Sol, é para todos os bem comportados. A televisão só dá filmes;
nada de notícias do exterior. Às quintas temos projecção. E vivó luxo!
Ah-Ah-Ah…
Correcção. Parece mais
uma prisão do que um aquartelamento.
- Hoje conheci a dra. Helena. Primeira
consulta a que chamou, “de acolhimento”. Deve ser graça. Quer saber tudo além
do que está na ficha de internamento e do relatório. Eu sei lá o que ela quer
que lhe diga. Não gostei nada daqueles olhos parados; como quem me mirava os
miolos à procura de poeiras estranhas, insondáveis confissões, memórias
entranhadas. Incomodativa, pronto. Depois rabiscava qualquer coisa e lá voltava
ao mesmo, parece que estávamos a jogar ao sério; intimidante, desconfortável.
Depois da crise do Natal eles acharam melhor que viesse para tratamento;
disse-lhe já com o suor a escorrer pelas pernas. «Crise do Natal?!», perguntou.
Sim. E lá lhe contei o que ela parecia já saber tais foram as perguntas
complementares. Depois levantou-se, olhou-me outra vez de frente e disse «Estes
cadernos, todos têm um, são um indicador para “análise de tratamento” do dr.
Saavedra e serão utilizados como diário para que possamos monitorizar os vossos
progressos. Deve ser mostrado a cada consulta, com o registo do que entender
ser importante em cada dia para evoluirmos em conjunto.».
- Quem diabo será o tal dr. Saavedra?
«Pode retirar-se. Está na
hora de passear no jardim até a Ilda chamar para a merenda. Se se lembrar de
mais alguma coisa relevante, venha; venha cá contar-me».
3 de Janeiro, terça-feira.
- Isto começa bem...
Temos cá a polícia. Vários. Cercaram o edifício e estão a fazer perguntas. A
Ilda anda numa aflição, as empregadas estão na cave a passar a ferro com ordens
expressas de não saírem sem serem chamadas. Estão proibidas de falar seja com
quem for na ausência da Ilda. Não entendo, ela parece a dona do
estabelecimento. A confusão é tal que a polícia me chamou para lhes contar o
que sabia dum desaparecimento acontecido há umas semanas, um tal Dinis,
encontrado este domingo a boiar no rio. Aparentemente, a organização conjecturou
uma fuga e tinha mantido segredo para não alarmar ninguém. Há umas semanas?! Mas,
o que é que eu tenho a ver com isso, se só cheguei faz hoje oito dias?! O
inspector olhou a ficha, olhou para mim, olhou a ficha e «Vá-se lá embora! Se
souber de alguma coisa venha falar connosco, ouviu?!» Está tudo maluco?!
4 de Janeiro, quarta-feira.
- Hoje chegaram mais…
Duas mulheres e um homem, de facto, um casal e uma jovem uma vez que os mais
velhos vinham de braço dado. Coitadas, vinham completamente desfocadas do
mundo. Ele; estranho… parecia farejar, como se já conhecesse o recinto.
5 de Janeiro, quinta-feira.
- Os quatro da consulta
externa nunca mais regressaram. A Matilde perguntou por eles à Ilda e não
correu nada bem. Ficou de castigo pela insolência. Ora esta…
- O filme de hoje, não
devem ter arranjado nada sobre os reis magos, foi um super oito a preto e
branco sobre a Rainha Santa Isabel. Quando chegamos à sala de estar já estavam
as cadeiras posicionadas e lá nos fomos sentando a contra gosto, tendo em conta
a obrigatoriedade da presença e o apelativo do tema. Sussurrávamos comentando
quando, nos três lugares destacados da frente se sentaram a dra. e a Ilda e de
seguida, apagando a luz e entrando pelas nossas costas, o dr. Saavedra. Ele
mesmo… o dr. Saavedra. Entrou mudo e saiu calado do sonoro. Dele só memorizei a
cabeça de amendoim peludo. Poucos o tinham visto ainda.
6 de Janeiro, sexta-feira.
- Esta manhã na consulta,
a dra. Helena binoculou-me o pensamento com aquelas lentes grossas. O olhar era
tão fixo, tão absorvente, que em cinco minutos fiquei vazio e comecei a falar
como um hipnotizado, sei que falei, que falei muito, mas não me lembro de nada,
nada. No final disse-me, «ainda bem… ainda bem…». Que lhe terei eu contado?...
- Lá vai a Claudia…
descendo o passeio que dá acesso ao jardim peneirando as ancas roliças, como
quem soletra um poema…
7 de Janeiro, sábado.
- Disse-me hoje a Cláudia,
que a Matilde foi denunciada pelo vizinho do 2º esq.. Tudo se sabe… Dão-se
muito bem, cochicham muito, principalmente quando a Matilde está ao piano.
Aquele jazz dedilhado com coração e carinho é o único lenitivo que tenho. Paz
nos meus ouvidos…
- Têm-se encontrado no
quarto à noite. Umas personagens, essas duas. Vai dar romance.
8 de Janeiro, domingo.
- No velório do Vicente falou-se
que tinha sido a Beatriz (que, afinal se chama Alice), com medicamentos que o
dr. Lemos secretamente lhe receitava para as insónias. Pensado com tempo mas, tiro
e queda, digamos assim… O jeito que dá ter um irmão médico. Ajuda-a a eliminar
o empecilho e a dormir o dos justos. E todos a desconfiarem do Gabriel, por ter
sido apanhado com a “Beatriz” no lado encoberto do jardim, hein?…
- Quando levantaram o
cadáver do Vicente, estava um rato morto debaixo dele. Que nojo!
- O padre habitualmente
destacado para as missas de domingo, celebrou a missa de corpo presente. A alegada
assassina, assistiu serenamente escoltada por dois polícias e será levada
imediatamente para o chilindró sem autorização de acompanhar as exéquias. É o
que dizem. A improvisação da sala de estar em capela, já o tinha sido em
cinema, deu-nos uma ideia de precaridade e da rapidez com que o Mundo se adapta
às nossas fases transitórias. Amanhã, sala de estar novamente, daqui a pouco,
cinema e risota. Ninguém chorará ninguém e a vida seguirá como ontem e
anteontem. Menos para o misterioso casal.
9 de Janeiro, segunda-feira.
- A noite está como eu,
fria, cinzenta, trovejante. Há muito tempo que não me sentia tão infeliz.
Miserável mesmo… Não sei o que tenho, mas não aguento muito mais
- Começa a desfazer a
mala o meu camarada de quarto. Chama-se Sebastião. Parece-me bom moço e será um
bom companheiro pelo que já conversamos. É simpático, educado, e de boa cara;
coisa rara nestes tempos. Talvez tenha sorte com a companhia e me alivie desta
ansiedade em que estou mergulhado.
10 de Janeiro,
terça-feira.
- Hoje não te conto nada!
Estou exausto. Vai dormir! Eu vou tentar.
11 de Janeiro, quarta-feira.
- Apanhei a Cláudia na
varanda a… a pertencer-se. Tinha-se com uma violência de possessa, como quem renunciava
a este mundo entrando noutro num rompante de etéreo êxtase; do seu peito
esvaía-se um gemido animal, um mugido longo… um arrebatamento prolongado… Lá ao
fundo, por uma fenda do arbusto, via-se o Gabriel a espelhar suor e vigor no
seu treino matinal. Era para ele que ela se fazia… existindo-se singularmente…
12 de Janeiro, quinta-feira
- Aperta-se o cerco. A
dra. Helena disse-me que não passa deste fim-de-semana; que quer que eu lhe
conte detalhadamente em que consistiu a crise do Natal e o que levou aos meus
comportamentos anteriores. Quando lhe disse que foi um desvio, atirou-me um
olhar mortal do outro lado das lentes côncavas e disse; «não chega! Já lhe
disse que não-chega!, não me obrigue a medicá-lo!».
- O filme de hoje foram
desenhos animados. Mr. Magoo! Não é propriamente hilariante mas todos se
divertiram com as trapalhadas. O único que gargalhava era eu, uma vingançazinha
e não lhes posso dizer porquê. Ah-Ah-Ah… É que sempre que ele piscava os olhos
me parecia a dra. Helena. Ah-Ah-Ah… e sempre que ele era desajeitado,
destruidor até!, associava-o à falta de resultados que ela demonstrava ao não
conseguir nada dos seus “doentes” Ah-Ah-Ah… e na contra corrente que eles fazem
para não seguirem as suas ordens de confissão e medicação, desarmando todas as
suas análises. Ah-Ah-Ah… Espaireci a cabeça é um facto, mas deixei-lhes uma
ideia de loucura. Creio que foram todos dormir com a certeza que eu estava
maluco. A Ilda, que presenciou tudo com muita atenção, fará o relatório à dra.
logo pela manhã. Ah-Ah-Ah… Estou mesmo a vê-la assim, circunspecta, armada em
erudita e conhecedora «senhora doutora… por aquilo que me foi dado observar… o
Dionísio ensandeceu…» Ah-Ah-Ah…
13 de Janeiro, sexta-feira.
- Quando me deito na
relva ao céu estrelado cheio de mundos encobertos, penso na insignificância da
minha particularidade. Não é o ser; é o não-ser que sou.
- A Amélia mantém-se de
língua na boca com a Matilde. Não creio que se acalmem.
- O Sebastião veio-me com
uma conversa… Não me agradaram os avanços. Muito educados, mas muito
efeminados. Vamos a ver se não tenho que o lançar janela fora.
14 de Janeiro, sábado.
- Noite terrível. O velho
apareceu outra vez! Veadooo... Veadooo... Carantonha ominosa, coriácea;
corrente de ouro pendurada no colete, índex acusador, olhos raiados de fúria
Veadooo… Vá-se embora Veadooo!... Um cheiro a charuto invadiu o quarto, náusea,
um fedor a suor, vómito, tentei fugir e estava preso em mim, ele circundava a
cama, percorria o tecto, rodopiava, voltou ao chão e repetiu Vá embora
Veadooo!... - Quanto tempo durou? Muito tempo!... Quando acordei estava alagado
em suor, o meu corpo marcado a água no lençol, a almofada vomitada, o quarto
com um cheiro horrível. O Sebastião petrificado, manteve-se sentado na cama sem
intervir. Ficou tão assustado que não articulava uma frase com nexo. Abri a
janela, entrou o frio de Janeiro e apeteceu-me saltar, acabar com tudo, ainda
olhei, seis metros eram a distância entre a agonia e a paz. Não tive coragem.
Sou um cobarde.
- Estou para aqui a descoser-me todo contigo;
espero que ninguém te leia. A Cláudia também tem dois diários. Um é para a
dra., outro para os desabafos íntimos. Prometeu que mo dava a ler, se eu a
deixasse ler o meu. Talvez lho deixe.
15 de Janeiro, domingo.
- Fujo hoje! Antes da
missa.
- Esta casa terá um dia
quem a escreva em letra redonda, mas não serei eu a lê-la.
José
Bessa
Fez-me lembrar o filme Voando Sobre um Ninho de Cucos...
ResponderEliminarQue texto tão bem escrito :)
ResponderEliminarSonhos... Qualquer história ou conto que se faz depois em sonho, é sempre bastante aceitável por mínima irrealidade que houvesse. Gosto de sonhos. Gosto da palavra também. Ficou muito bom o feche! Parabéns! Abraço fraterno! Laerte.
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