Contos completos

05/04/19

Ecos de Mentes - Capítulo 12

Alegada foto de Dionísio durante o internamento


2 de Janeiro, segunda-feira.
- Cheguei no dia 27 ao fim da manhã. Comigo entrou uma tal Matilde.
- Na mesma furgoneta em que viemos saíram quatro, cerviz derrotada, passos lentos, olhar vagaroso como quem vai sem destino anunciado. Disseram-nos que iam para a consulta externa. A Matilde também duvidou.
- A recepção foi feita pela empregada Ilda, um virago autoritário faz-tudo e manda-tudo que nos despejou as ordens e os utensílios necessários no aquartelamento. É verdade; isto parece mais um aquartelamento do que uma casa de repouso ou, “Comunidade Terapêutica”!, como já lhe ouvi chamar. Tem quartos partilhados para dois ou mais, refeitório com self-service, casas de banho colectivas, sala de estar com televisão e. Um piano! Um piano, senhoras e senhores… Quem será o maluco que sabe música?! Ah-Ah-Ah… Só lhe falta um bar de caserna com baralhos de cartas e dominós. Também tem um pátio interno para quem está confinado, e o jardim, quando está Sol, é para todos os bem comportados. A televisão só dá filmes; nada de notícias do exterior. Às quintas temos projecção. E vivó luxo! Ah-Ah-Ah…
Correcção. Parece mais uma prisão do que um aquartelamento.
 - Hoje conheci a dra. Helena. Primeira consulta a que chamou, “de acolhimento”. Deve ser graça. Quer saber tudo além do que está na ficha de internamento e do relatório. Eu sei lá o que ela quer que lhe diga. Não gostei nada daqueles olhos parados; como quem me mirava os miolos à procura de poeiras estranhas, insondáveis confissões, memórias entranhadas. Incomodativa, pronto. Depois rabiscava qualquer coisa e lá voltava ao mesmo, parece que estávamos a jogar ao sério; intimidante, desconfortável. Depois da crise do Natal eles acharam melhor que viesse para tratamento; disse-lhe já com o suor a escorrer pelas pernas. «Crise do Natal?!», perguntou. Sim. E lá lhe contei o que ela parecia já saber tais foram as perguntas complementares. Depois levantou-se, olhou-me outra vez de frente e disse «Estes cadernos, todos têm um, são um indicador para “análise de tratamento” do dr. Saavedra e serão utilizados como diário para que possamos monitorizar os vossos progressos. Deve ser mostrado a cada consulta, com o registo do que entender ser importante em cada dia para evoluirmos em conjunto.».
 - Quem diabo será o tal dr. Saavedra?
«Pode retirar-se. Está na hora de passear no jardim até a Ilda chamar para a merenda. Se se lembrar de mais alguma coisa relevante, venha; venha cá contar-me».
3 de Janeiro, terça-feira.
- Isto começa bem... Temos cá a polícia. Vários. Cercaram o edifício e estão a fazer perguntas. A Ilda anda numa aflição, as empregadas estão na cave a passar a ferro com ordens expressas de não saírem sem serem chamadas. Estão proibidas de falar seja com quem for na ausência da Ilda. Não entendo, ela parece a dona do estabelecimento. A confusão é tal que a polícia me chamou para lhes contar o que sabia dum desaparecimento acontecido há umas semanas, um tal Dinis, encontrado este domingo a boiar no rio. Aparentemente, a organização conjecturou uma fuga e tinha mantido segredo para não alarmar ninguém. Há umas semanas?! Mas, o que é que eu tenho a ver com isso, se só cheguei faz hoje oito dias?! O inspector olhou a ficha, olhou para mim, olhou a ficha e «Vá-se lá embora! Se souber de alguma coisa venha falar connosco, ouviu?!» Está tudo maluco?!
4 de Janeiro, quarta-feira.
- Hoje chegaram mais… Duas mulheres e um homem, de facto, um casal e uma jovem uma vez que os mais velhos vinham de braço dado. Coitadas, vinham completamente desfocadas do mundo. Ele; estranho… parecia farejar, como se já conhecesse o recinto.
5 de Janeiro, quinta-feira.
- Os quatro da consulta externa nunca mais regressaram. A Matilde perguntou por eles à Ilda e não correu nada bem. Ficou de castigo pela insolência. Ora esta…
- O filme de hoje, não devem ter arranjado nada sobre os reis magos, foi um super oito a preto e branco sobre a Rainha Santa Isabel. Quando chegamos à sala de estar já estavam as cadeiras posicionadas e lá nos fomos sentando a contra gosto, tendo em conta a obrigatoriedade da presença e o apelativo do tema. Sussurrávamos comentando quando, nos três lugares destacados da frente se sentaram a dra. e a Ilda e de seguida, apagando a luz e entrando pelas nossas costas, o dr. Saavedra. Ele mesmo… o dr. Saavedra. Entrou mudo e saiu calado do sonoro. Dele só memorizei a cabeça de amendoim peludo. Poucos o tinham visto ainda.
6 de Janeiro, sexta-feira.
- Esta manhã na consulta, a dra. Helena binoculou-me o pensamento com aquelas lentes grossas. O olhar era tão fixo, tão absorvente, que em cinco minutos fiquei vazio e comecei a falar como um hipnotizado, sei que falei, que falei muito, mas não me lembro de nada, nada. No final disse-me, «ainda bem… ainda bem…». Que lhe terei eu contado?...
- Lá vai a Claudia… descendo o passeio que dá acesso ao jardim peneirando as ancas roliças, como quem soletra um poema…
7 de Janeiro, sábado.
- Disse-me hoje a Cláudia, que a Matilde foi denunciada pelo vizinho do 2º esq.. Tudo se sabe… Dão-se muito bem, cochicham muito, principalmente quando a Matilde está ao piano. Aquele jazz dedilhado com coração e carinho é o único lenitivo que tenho. Paz nos meus ouvidos…
- Têm-se encontrado no quarto à noite. Umas personagens, essas duas. Vai dar romance.
8 de Janeiro, domingo.
- No velório do Vicente falou-se que tinha sido a Beatriz (que, afinal se chama Alice), com medicamentos que o dr. Lemos secretamente lhe receitava para as insónias. Pensado com tempo mas, tiro e queda, digamos assim… O jeito que dá ter um irmão médico. Ajuda-a a eliminar o empecilho e a dormir o dos justos. E todos a desconfiarem do Gabriel, por ter sido apanhado com a “Beatriz” no lado encoberto do jardim, hein?…
- Quando levantaram o cadáver do Vicente, estava um rato morto debaixo dele. Que nojo!
- O padre habitualmente destacado para as missas de domingo, celebrou a missa de corpo presente. A alegada assassina, assistiu serenamente escoltada por dois polícias e será levada imediatamente para o chilindró sem autorização de acompanhar as exéquias. É o que dizem. A improvisação da sala de estar em capela, já o tinha sido em cinema, deu-nos uma ideia de precaridade e da rapidez com que o Mundo se adapta às nossas fases transitórias. Amanhã, sala de estar novamente, daqui a pouco, cinema e risota. Ninguém chorará ninguém e a vida seguirá como ontem e anteontem. Menos para o misterioso casal.
9 de Janeiro, segunda-feira.
- A noite está como eu, fria, cinzenta, trovejante. Há muito tempo que não me sentia tão infeliz. Miserável mesmo… Não sei o que tenho, mas não aguento muito mais
- Começa a desfazer a mala o meu camarada de quarto. Chama-se Sebastião. Parece-me bom moço e será um bom companheiro pelo que já conversamos. É simpático, educado, e de boa cara; coisa rara nestes tempos. Talvez tenha sorte com a companhia e me alivie desta ansiedade em que estou mergulhado.
 10 de Janeiro, terça-feira.
- Hoje não te conto nada! Estou exausto. Vai dormir! Eu vou tentar.
11 de Janeiro, quarta-feira.
- Apanhei a Cláudia na varanda a… a pertencer-se. Tinha-se com uma violência de possessa, como quem renunciava a este mundo entrando noutro num rompante de etéreo êxtase; do seu peito esvaía-se um gemido animal, um mugido longo… um arrebatamento prolongado… Lá ao fundo, por uma fenda do arbusto, via-se o Gabriel a espelhar suor e vigor no seu treino matinal. Era para ele que ela se fazia… existindo-se singularmente…
12 de Janeiro, quinta-feira
- Aperta-se o cerco. A dra. Helena disse-me que não passa deste fim-de-semana; que quer que eu lhe conte detalhadamente em que consistiu a crise do Natal e o que levou aos meus comportamentos anteriores. Quando lhe disse que foi um desvio, atirou-me um olhar mortal do outro lado das lentes côncavas e disse; «não chega! Já lhe disse que não-chega!, não me obrigue a medicá-lo!».
- O filme de hoje foram desenhos animados. Mr. Magoo! Não é propriamente hilariante mas todos se divertiram com as trapalhadas. O único que gargalhava era eu, uma vingançazinha e não lhes posso dizer porquê. Ah-Ah-Ah… É que sempre que ele piscava os olhos me parecia a dra. Helena. Ah-Ah-Ah… e sempre que ele era desajeitado, destruidor até!, associava-o à falta de resultados que ela demonstrava ao não conseguir nada dos seus “doentes” Ah-Ah-Ah… e na contra corrente que eles fazem para não seguirem as suas ordens de confissão e medicação, desarmando todas as suas análises. Ah-Ah-Ah… Espaireci a cabeça é um facto, mas deixei-lhes uma ideia de loucura. Creio que foram todos dormir com a certeza que eu estava maluco. A Ilda, que presenciou tudo com muita atenção, fará o relatório à dra. logo pela manhã. Ah-Ah-Ah… Estou mesmo a vê-la assim, circunspecta, armada em erudita e conhecedora «senhora doutora… por aquilo que me foi dado observar… o Dionísio ensandeceu…» Ah-Ah-Ah…
13 de Janeiro, sexta-feira.
- Quando me deito na relva ao céu estrelado cheio de mundos encobertos, penso na insignificância da minha particularidade. Não é o ser; é o não-ser que sou.
- A Amélia mantém-se de língua na boca com a Matilde. Não creio que se acalmem.
- O Sebastião veio-me com uma conversa… Não me agradaram os avanços. Muito educados, mas muito efeminados. Vamos a ver se não tenho que o lançar janela fora.
14 de Janeiro, sábado.
- Noite terrível. O velho apareceu outra vez! Veadooo... Veadooo... Carantonha ominosa, coriácea; corrente de ouro pendurada no colete, índex acusador, olhos raiados de fúria Veadooo… Vá-se embora Veadooo!... Um cheiro a charuto invadiu o quarto, náusea, um fedor a suor, vómito, tentei fugir e estava preso em mim, ele circundava a cama, percorria o tecto, rodopiava, voltou ao chão e repetiu Vá embora Veadooo!... - Quanto tempo durou? Muito tempo!... Quando acordei estava alagado em suor, o meu corpo marcado a água no lençol, a almofada vomitada, o quarto com um cheiro horrível. O Sebastião petrificado, manteve-se sentado na cama sem intervir. Ficou tão assustado que não articulava uma frase com nexo. Abri a janela, entrou o frio de Janeiro e apeteceu-me saltar, acabar com tudo, ainda olhei, seis metros eram a distância entre a agonia e a paz. Não tive coragem. Sou um cobarde.
 - Estou para aqui a descoser-me todo contigo; espero que ninguém te leia. A Cláudia também tem dois diários. Um é para a dra., outro para os desabafos íntimos. Prometeu que mo dava a ler, se eu a deixasse ler o meu. Talvez lho deixe.
15 de Janeiro, domingo.
- Fujo hoje! Antes da missa.
- Esta casa terá um dia quem a escreva em letra redonda, mas não serei eu a lê-la.


José Bessa


3 comentários:

  1. Fez-me lembrar o filme Voando Sobre um Ninho de Cucos...

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  2. Sonhos... Qualquer história ou conto que se faz depois em sonho, é sempre bastante aceitável por mínima irrealidade que houvesse. Gosto de sonhos. Gosto da palavra também. Ficou muito bom o feche! Parabéns! Abraço fraterno! Laerte.

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