Foto: Olímpia Mairos/RR |
Meus dias passam como
águas mansas do Rio Tejo em um dia de calmaria. A casa está sendo reformada aos
poucos e, tenho que confessar, já me sinto bem afeiçoada a ela. Gosto
especialmente das varandas grandes e do jardim extenso com buganvílias e outras
espécies. Mas ela também me assusta, acho que isso é consequência de ler todos
aqueles cadernos. Por vezes quando estou só, sentada na cadeira de balanço que
coloquei de fronte para o jardim, sinto a estranha sensação de que olhos
misteriosos e inquisidores me observam de algum lugar, escondidos na escuridão
dos ciprestes antigos que ainda crescem por aqui.
Às vezes me indago se
tinha o direito de violar, com minha curiosidade impetuosa, as memórias de
todas aquelas pessoas que deixaram um tanto de suas vidas nesse lugar e
naqueles cadernos enegrecidos pelo tempo e esquecimento. Compartilhei de suas
fraquezas e medos, sem ter dado nada em troca. Fico imaginando como seriam de
fato essas pessoas e que fim a vida lhes deu. Teria o destino, por descuido ou
benevolência, se apenado de alguma delas? Não há como saber. Tudo que conheço
delas é um emaranhado de letras e tintas, que possivelmente não deram conta de
refletir como eram de verdade. As pessoas são sempre mais complexas ao vivo.
Ultimamente, tento não
pensar muito nisso. Recentemente guardei os cadernos em um baú e lá as pretendo
deixar até ao fim de minha consciência nesse mundo. Quanto a mim, também tenho
escrito com frequência. Era para ser um diário, mas não tem acontecido nada de
muito emocionante em meus dias que mereçam registro. Por isso escrevo qualquer
coisa que me acuda à mente. Acredito que um dia vou reunir tudo que tenho escrito
e colocar também no baú, juntamente com os cadernos. Seria uma estranha forma
de cumplicidade entre todos os envolvidos nesse devaneio. Até lá junto meu
tédio e minha solidão, enquanto tento deixar essa casa um lugar melhor.
***
Preciso
registrar o que aconteceu e preciso fazer isso agora. Passaram-se meses (perdi
a conta) desde que enclausurei os cadernos no baú e os deixei lá para
adormecerem em paz. Mal sabia eu que ainda faltava mais coisa. Muita coisa! Um
caderno extraviado. Melhor dizendo, escondido! Sim! Apesar de tecnicamente ter
sido eu que o encontrei, acredito que era ele que me procurava. Me caçando como
um predador em silêncio, aguardando o melhor momento para o ataque final e
misericordioso.
Isso aconteceu hoje. O sol
dissolvia-se sobre a grama seca do jardim e não havia uma nuvem no manto azul
do céu. Resolvi então plantar novas flores no quintal, como tenho feito nos
últimos dias. Semana passada foram azaléas, hoje eram orquídeas brancas.
Resolvi que iria plantá-las perto da janela de meu quarto, onde a grama estava
mais verde e saudável. Enfiei as mãos na terra e comecei a cavoucar. Além de
uma minhoca se mexendo entre meus dedos, senti também que encostei em mais
alguma coisa. Continuei enterrando minha mão até enxergar a madeira envelhecida
de uma pequena caixa. Senti um frio na espinha e um arrepio correr por entre
minhas articulações. Fui o mais rápido que meu corpo permitia até meu quarto.
Tirei toda terra que cobria a caixa e a abri. Dentro havia um caderno deveras
velho. Estava com diversas páginas arrancadas e algumas soltas. Estava tão
acabado e destruído que parecia ter acompanhado um soldado em campo de batalha.
Por sorte ou pura maldição, algumas páginas ainda estavam legíveis. Respirei
fundo para me recompor. Olhei para o baú no canto do quarto e sussurrei-lhe com
os pensamentos:
- Lá vamos nós de novo...
Dr. Saavedra
Gabriel entrou aqui portando um
facilmente identificado complexo narcisista. Obsessivo por seu corpo e sua
beleza, passava horas trabalhando seus músculos. No começo achei que esse seria
um bom lugar para recuperá-lo, mas acho que mais atrapalhámos sua mente do que
realmente ajudámos. Cheguei à conclusão forçada que esse nunca foi o lugar
certo para ele e que a terapia convencional poderia ter dado conta de seu
transtorno. Ademais, a presença dele causou alvoroço entre as mulheres daqui. E
quando digo isso não me refiro apenas às suas colegas de terapia. Sim, essa é
uma revelação a ser feita apenas nessas páginas a que o tempo dará fim. Dra.
Helena tem se envolvido com ele e isso só tem agravado o complexo de Gabriel.
Pois bem, fiquei sabendo isso na
semana passada. Na verdade, apenas confirmei minhas suspeitas. Menti para nossa
psiquiatra que estaria fora para resolver problemas particulares e que não
viria para cá durante o período diurno. Foi assim que peguei os dois no flagra,
na sala de terapia. É uma lástima ver uma profissional como ela se deixar levar
por um desejo tão baixo e artificial. Pouparei os detalhes sórdidos daquele ato
pernicioso. Isso me deixou em situação delicada. Pelo bem de todos, alguém
teria que deixar a casa de repousou e eu não estava inclinado a abrir mão de
nossa dedicada Doutora.
Por isso, assinei ontem a alta do
querido paciente Gabriel. Fiz questão de acompanhá-lo até o portão de saída.
Ele não parecia surpreso. Muito pelo contrário. Acho que Gabriel é mais esperto
do que julguei. Talvez tenha planejado tudo isso com um único intento: sair
daqui pela porta da frente.
***
A porta bateu com força, trepidou as
paredes e me fez saltar da cadeira. Dra. Helena entrou como um furacão pela
sala. Estava branca como uma geleira do Ártico. A órbita dos seus olhos parecia
querer saltar do rosto.
- Doutor, aconteceu uma coisa
terrível - Disse ela, com a voz claudicante.
- Sente-se mulher, ou vai ter um
desmaio. – Respondi, apontando para a poltrona de fronte à minha mesa. Ela se
afundou no assento e respirou fundo.
- Agora me conte que diabos
aconteceu?
Tão rápido como havia sentado, Helena
se levantou, saltitando sobre os pés.
- Acho melhor você vir comigo, Dr.
Ramon. Vai querer saber disso pelos olhos e não pelos ouvidos.
Saímos da sala e Amélia – aquela de
quem já falei noutras folhas anteriores – estava com as mãos unidas e trêmulas.
Lançou sobre mim um olhar de misericórdia, com um misto de incredulidade.
Tentou me falar algo, mas a força da voz parecia ter abandonado a pobrezinha.
- Não precisa dizer nada. O Dr. virá
conosco. – Disse a Dr. Helena, de forma inquisidora. Amélia só se limitou a
fazer um sinal afirmativo com a cabeça.
Fomos em silêncio até a parte
externa, onde os pacientes costumavam sentar para escrever em seus cadernos ou
desfrutar um pouco de ar puro. Ainda era muito cedo e o sol começava a
despontar para o dia. Descemos as escadas e a Dra. Helena me levou até além dos
ciprestes, onde a vegetação estava densa e crescida. Ela afastou alguns
arbustos grossos e pude ver o corpo de Dinis esticado, de costas para o chão e
com uma das mãos no pescoço.
- Foi Amélia que o encontrou. Seu
sangue ainda parece fresco. Deve ter acontecido há poucas horas. Ontem mesmo vi
Dinis no quarto antes de amanhecer. Quem poderia imaginar?
As palavras de Helena foram se
dissipando em minha cabeça e a figura de Dinis, sem vida e alma, fez meu
estomago se remexer dentro do ventre e uma vontade de vomitar veio à baila.
Respirei fundo e tentei me acalmar o máximo que se é possível diante de um
cadáver. Amélia parecia em choque e a Dra. Helena, incrédula, olhava para o
defunto como se nunca tivesse sentido o cheiro da morte tão perto de suas
narinas.
- Mas que diabos você fazia aqui
fora a umas horas dessas, Amélia? – A pergunta saiu de minha boca quase que
involuntariamente.
- Eu...eu... – Amélia soluçava. – Eu
estava tendo pesadelos. Acordei e fiquei com medo de continuar em meu quarto. Abri a porta com uma chave-mestra que
consegui com Matilde em troca de algumas caixas de cigarro e uma garrafa de Gin
que surrupiei de um serviçal e vim correndo para cá. Precisava respirar ar
puro, o cheiro das paredes estava me sufocando. Então andando por entre os
ciprestes vi um sapato e então.... então encontrei Dinis já assim. Mas eu juro,
não tenho nada a ver com isso. Não faria mal a uma mosca. Nunca deveria ter
fugido do quarto. Me desculpa. Preciso me comportar. Eu...
Antes que Amélia continuasse
mandei-a fechar a boca e ficar calada. Cheguei mais perto do corpo. Estava ensanguentado
e todo o sangue vinha do pescoço. Havia sido um golpe preciso na jugular. Uma
mão ainda estava no pescoço e a outra segurava um caco de vidro pontiagudo.
- A janela do banheiro da ala
feminina. – Disse Helena.
- Como? - Perguntei sem entender.
- Uma das janelas do banheiro das
pacientes femininas estava quebrado, ontem à tarde. Mas não me dei conta do que
poderia ter acontecido. Simplesmente ignorei.
Amélia se agachou e apoiou os
cotovelos nos próprios joelhos e começou a chorar.
- Leve-a daqui Dra. Helena e
certifique-se que irá ficar bem, e principalmente, calada! Não podemos ter um
surto de pânico aqui.
Helena saiu de mãos dadas com Amélia
e rapidamente desapareceram dentro do saguão enquanto eu pensava o que faria
diante daquele grave incidente. Não demorou muito para Helena voltar.
- Dei um sonífero a ela. Vai dormir
com os anjos.
- Ou com os demônios. – Completei.
- De qualquer forma, o que faremos
agora? Acha que foi suicídio?
- Pode ser. Dinis era extremamente deprimido e
já não falava coisa com coisa. De
qualquer sorte, diga aos pacientes que ele ganhou alta e foi embora.
- Com todo respeito Dr. Ramon, mas
Dinis andava espalhando para alguns pacientes que era a própria reencarnação de
D. Sebastião. Acho que não acreditarão muito nessa história de alta.
- Você tem razão. Se demos alta para
alguém como ele todos se sentirão no direito de sair.
- O que diremos então?
- Nada. Faremos de conta que sabemos
tanto quanto eles sobre o que aconteceu. Para todos os efeitos ele deve ter conseguido
fugir de alguma forma.
- Então assim será feito. Contudo,
temos um cadáver em nosso jardim e não tardará teremos pacientes deambulando
por aqui.
- Então não temos tempo a perder. Eu
carrego ele daqui e você limpa o sangue. Corte esses arbustos se for preciso.
Não deixe nenhum sinal. Nenhuma gota.
-
É claro! Mas o que o Dr. fará com o corpo?
- Não sei. Vou tirar ele daqui e
depois penso numa solução. Sem policiais entendeu? Não queremos ninguém
bisbilhotando por aqui. Temos muitas irregularidades aqui que as autoridades
não gostariam de ver. Fui claro?
- Com certeza Dr. Ramon.
A essa altura as coisas estavam complicadas
e tive que tomar uma decisão rápida e que melhor solucionasse o problema. Que
isso fique registrado apenas aqui e em lugar mais algum. Coloquei o corpo na
ambulância e com ajuda de um enfermeiro que preservarei o nome aqui, enterramos
o cadáver em um terreno baldio que havia perto da casa de repouso. Enterramos
de fronte para um pé de oliveira que crescia em meio a um matagal. Tomara que
ninguém resolva construir por aqui. Para todos os efeitos Dinis havia
conseguido fugir. Se alguém por ventura encontrar o corpo dele no futuro, já
não será mais minha responsabilidade. “Fazemos de tudo para mantê-lo seguro,
mas erros podem acontecer nas melhores instituições, não somos infalíveis e,
infelizmente não temos orçamento suficiente para vigiá-los com maior
eficiência. Mesmo assim, esse é um caso isolado, que jamais acontecera antes e
nunca mais se repetirá”. Essas seriam minhas palavras para os jornalistas se um
dia encontrassem o corpo moribundo desse amaldiçoado homem.
Hoje o dia foi pesado. Não tenho força para colocar mais nada
no papel. Minha cabeça dói. Que noite infernal terei.
***
Estou com o tempo escasso e as costas castigadas. Por isso
hoje serei breve. David ganhou alta. Méritos dele. Não irei me ater aos seus
comportamentos, pois já o fiz em diversas páginas anteriores. Em outras circunstâncias
manteria ele por mais tempo, porém, temos que estar com o foco voltado aos
problemas reais que nos cercam cada vez mais. Ele recebeu a notícia com um
silêncio que lhe era peculiar. Depois, estranhamente, abriu um sorriso de canto
de boca e um brilho que nunca tinha visto nele ganhou seus olhos, enquanto fez
um sinal positivo lentamente com a cabeça.
Observei pela janela ele indo
embora. Antes de sair pelo portão, lançou um olhar por todo o casarão, como se
para contemplá-lo pela última vez. Respirou fundo e com passos firmes e
decididos seguiu em direção a saída. Uma mulher de pele morena e cabelos negros
e escorridos até os ombros lhe esperava do lado de fora. Se encararam por
alguns segundos, como alguém que encara um fantasma que conhece bem e já não
assusta mais. Depois, deram um abraço que demorou mais de um minuto, até
finalmente darem as mãos e desaparecerem subindo a avenida que leva para o
centro da cidade.
Sinceramente, para o bem de nós
dois, espero nunca mais vê-lo por aqui.
***
Hoje é um dia complexamente triste.
Ilda morreu. Eu sei que muitos aqui vão comemorar em silêncio e depois pediram
perdão para sua própria consciência por pensamento tão vil e mesquinho. Ela era
rude e autoritária com os pacientes, mas não podemos julgá-la, não é fácil
estar na situação dela. Quem a conhecia como eu sabe que ela tinha tanto medo
dos pacientes como eles o tinham dela. Além do mais, quando estávamos a sós,
não raras vezes ela deixava transparecer alguma fraqueza em sua alma. Aquela
mulher de ferro também tinha certa ternura escondida debaixo da armadura.
Há quem diga que nem sempre foi
assim. Conheci um pouco da história dela. Em parte, pela boca da própria e, em
outra, por mérito de minha capacidade investigativa. Soube que nascera na
região conhecida como A Raia, na fronteira entre Portugal e Espanha e que, por
mais difícil que fosse de acreditar nisso no presente, havia sido uma jovem
muito bonita, de longos cabelos castanhos e seios de Pêra. Também era muito
inteligente e leitora assídua de grandes clássicos. Seu pai achava nela um
prodígio a quem depositava toda a fé paternal. “Terá um futuro brilhante” dizia
aos quatro cantos. Mas algo irrompeu em seu destino, como uma força inafastável
e incontrolável: uma paixão. Há quem diga que o conheceu na fila do teatro, mas
ninguém sabe ao certo. O que se sabe é que, antes de atingir a maioridade,
fugiu com ele, um toureiro oriundo de Pamplona que sabe-se lá o que fazia por
aquelas bandas, para viverem um amor sórdido e caliente, como em alguns livros proibidos que lia escondida. Dizem
que seu pai morreu de desgosto no mês seguinte e sua mãe declarou para quem se
interessasse que sua filha, para todos os efeitos, havia morrido. Entretanto,
por crueldade de alguém que ocupava o lugar de Deus naquele momento, o que era
para ser uma história de amor e desejo acabou se findando antes do tempo. O toureiro
(que nunca descobri o nome) morreu de tifo um dia depois de casarem escondidos
em um vilarejo perto de Sevilha. Daí em diante a vida de Ilda correu ladeira
abaixo. Antes tivesse ido junto com o marido para o crepúsculo da eternidade.
Pelo pouco que soube, Ilda passou a peregrinar de lugar em lugar, e ganhando
dinheiro de todas as formas que se apresentavam ao alcance. Esteve em bordeis
de quinta categoria e em vários estabelecimentos especializados em transmitir
doenças venéreas. Em uma altura da vida,
chegou a ir para o circo, quando se envolveu com um malabarista francês. Só não sabia que esse trocava de mulher como
se troca de roupa. O romance durou um ou dois meses, até esse conhecer uma
cigana a quem jurou amor eterno. Dele
não se sabe mais nada.
Quanto a Ilda, a esquizofrenia acabou com o que restara
daquela moça ávida e bonita. Já não me recordo com precisão há quanto tempo ela
cá se encontrava. A verdade é que ela estava piorando cada vez mais. Em
especial depois do incidente com Dinis, com quem mantinha um estranho caso.
Ilda morreu de madrugada. Infarto
fulminante foi o que me pareceu. Os serviçais só notaram de manhã, quando
estranharam o silêncio nos saguões. Por mais que neguem, Ilda fará falta por
aqui. Tinha-a como de extrema confiança. Que sua alma encontre a paz que o
mundo lhe tirou...
***
Tomei
um belo susto hoje pela tarde. Um dos pacientes me disse com a voz trêmula e
dissonante que haviam encontrado o corpo de Dinis! Isso mesmo. Imagine como
ficou meu estado de consciência ao ouvir essas palavras que me atravessaram
como facas.
- Como assim? - Me fiz de
desentendido.
- Pois é exatamente isso.
Encontraram seu corpo boiando no rio aqui perto. Mortinho!
“Boiando no rio”. Quando escutei
isso, um alívio percorreu meu corpo. Estava claro. Alguém desconfiado do sumiço
de Dinis inventou essa história com o intuito de descobrir alguma coisa. Tentar
fazer eu dar com a língua nos dentes. Porém, sou vacinado contra esse tipo de
artimanha e quem morderia a língua não seria eu.
- E quem espalhou uma sandice dessas?
- E o que ganho com isso?
- Uma carteira de cigarro.
- Vicente! Ele sempre sabe de coisas
que ninguém mais sabe!
Então fora esse maldito espertinho
que espalhara tal boato. Já era de se desconfiar. O sabichão sabia mesmo como
contar uma história convincente. Mas qual seria o interesse de Vicente em saber
o que realmente acontecera com Dinis? É no mínimo estranho e curioso. Vicente
não dá ponto sem nó. Todas as suas atitudes são dirigidas para um fim e eu
precisava estar à frente dele para não ser enganado.
- Não conte para ninguém que teve
essa conversa comigo. Compartilharei só com você. Dinis conseguiu fugir, mas ao
contrário dos rumores, não foi encontrado em lugar algum. A essas horas deve
estar longe daqui, quiçá estará na Itália. Sabia você que ele tem parentes por
lá? (resposta negativa com a cabeça).
- Pois então homem, Dinis não é
problema mais nosso. Tome suas medicações e pare de bisbilhotar a vida alheia.
Isso não ajudará ninguém aqui.
Entreguei uma carteira de cigarro
para ele e saiu pelo corredor em completo silêncio.
***
É claro que sabia que meu querido
confidente iria, mais cedo ou mais tarde, abrir nossa conversa para Vicente.
Foi Dra. Helena que presenciou, escondida atrás de umas buganvílias, a cena dos
dois conversando. Segundo ela me relatou, Vicente pareceu contente em saber que
eu, o grande Dr. Ramon Saavedra, acreditava que Dinis havia conseguido êxito em
sua empreitada fugitiva e estava agora longe daqui. Mas o que Vicente tem a ver
com isso?
Quando voltava para minha sala,
encontrei a paciente Anabela parada em frente à porta.
- Preciso falar com você a sós, Dr.
Saavedra.
- Não tenho tempo.
- É sobre Dinis e Vicente.
- Dinis e Vicente? - Inquiri, incrédulo.
- Eu sei tudo o que aconteceu.
Olhei para os lados para perscrutar
se algum outro paciente ou alguma daquelas criadas com sotaque castelhano
estavam por perto. Por sorte não havia ninguém. Abri a porta e fiz sinal para
ela entrar. Depois tranquei a porta.
- Seja direta! – Ordenei.
- Como deve saber, eu e a Amélia
desenvolvemos um grau de amizade e ela é a única pessoa em quem confio aqui
nesse lugar e acredito que seja recíproco. Tanto que ela me confidenciou algo
que não contaria a ninguém mais. Acho que você sabe o que é. Dinis, o defunto
inconveniente.
- Onde você quer chegar?
- Não me interessa saber o que disse
para os pacientes. Essa história de fuga e tudo mais. Vim aqui apenas para
dizer que acho que quem fez isso foi Vicente.
- Vicente? E por qual motivo lanças
tamanha acusação?
- Porque o vi na noite em que Dinis
morreu. Mas não foi só isso. Escutei um grito abafado de dor uns minutos antes.
Na hora achei que estivesse alucinando. Mas, depois que Amélia me contou, as
coisas ficaram claras na minha cabeça. Era real. Vicente saiu das sombras dos
ciprestes e correu para os corredores. Sempre desconfiei dele! Só pode ter sido
ele.
- Dinis se matou e tudo indica isso.
Estava deprimido e com um caco de vidro nas mãos. Você tem tomado seus remédios
corretamente, Anabela?
- Sabia que não acreditaria em mim.
Pois saiba que cumpri com meu dever de consciência, contando-lhe a verdade.
- Agradeço sua preocupação, mas está
tudo sob controle. Preocupe-se com sua medicação, quem não se comporta bem aqui
demora mais para sair, se é que você me entende?
- Perfeitamente!
Abri a porta e Anabela saiu me
encarando com olhos enegrecidos de raiva. É melhor assim. Precisa saber os
limites desse lugar. Quanto a Vicente, minhas suspeitas estão se concretizando.
Anabela veio para cá apresentando um quadro que incluía alucinações, em
especial do pai já falecido. Entretanto, dessa vez pode ter sido real. Vicente não
é apenas um espertalhão. Há algo de podre nessa história e ele fede a cadáver.
De qualquer modo, para o próprio bem de Anabela, é melhor ela achar que tudo
foi uma alucinação. Preciso ter uma conversa com a Dra. Helena.
***
Estava saindo do consultório quando
Dra. Helena entrou de supetão.
- Reputo que não seja o melhor
momento, mas precisa saber de uma coisa. Não tenho mais ninguém para contar.
- Sou todo ouvidos.
- Estou grávida!
- Meu Deus! – Respirei fundo, olhei
dentro dos olhos de Dra. Helena e vi o quanto estava confusa.
- Não me diga que...
- Gabriel! Só pode ser dele.
- E o que vai fazer?
- Criá-lo sozinha! Ninguém pode
saber quem é o pai, ouviu?
Fiz que sim com a cabeça e Dra.
Helena saiu da sala sem olhar para trás. O que mais precisa acontecer nesse
lugar?
***
As coisas estão saindo do controle. Sinto que
já não tenho mais a autoridade de outrora. Ilda morreu, Dra. Helena engravidou
de um paciente, Dinis foi assassinado por outro paciente e há boatos e rumores
cada vez mais criativos correndo pelas bocas dos internos. “Somos cobaias de
experiências do governo”, foi o que ouvi esses dias pelos corredores. Estão
cada vez mais inquietos. Pressinto que outra tragédia acontecerá, debaixo de
nossos narizes.
Preciso dar um jeito em Vicente. Mas
ainda não tenho provas para colocá-lo contra a parede, a não ser uma testemunha
ocular que sofre de alucinações. Dra. Helena conversou com ela ontem. Anabela
disse, durante a conversa, que não lembra se viu Vicente ou seu próprio pai
saindo das sombras, naquela maldita noite.
Talvez
o caderno de Vicente diga alguma coisa. Não aquele que me entregou na semana
passada, com relatos triviais e histórias artificiais inventadas por ele. Dra.
Helena me contou que já o viu escrevendo em outro tipo de caderno, de capa
menor. Confissões de um assassino? Preciso descobrir com meus próprios olhos...
***
Revistei todo o quarto desse
infeliz, mas nada encontrei. Se esse outro caderno existe está guardado em
outro lugar. Procurei no quarto de Beatriz também, sem sucesso. Preciso vigiá-lo
de perto. Não lhe darei sossego até descobrir a verdade.
Nesse momento enxergo-o pela janela, está sentado debaixo de
uma buganvília enquanto toca um piano imaginário. Logo nota que estou
observando-o. O patife me encara com um sorriso no rosto e acena em minha
direção com a mão direita. Ignoro. Deve estar achando que me contornou
direitinho, que está anos luz à minha frente. Não consegui chegar aqui à toa.
Vai descobrir da pior maneira quem é o Dr. Ramon Saavedra.
***
O
telefone interrompeu meu sono em uma noite em que esse custou para chegar.
Estava na minha casa. Ao contrário do que muitos pensam, eu não moro naquela
maldita casa de repouso, apesar de passar muito mais tempo lá. Onde eu moro é
segredo até para essas páginas. Voltando ao telefone, levantei zonzo para
atendê-lo.
- Alô!
- Dr. Ramon, é Helena. Vicente e
Beatriz sumiram. Eu e as serviçais já procurámos em toda parte. Nem sinal dos
dois.
- Malditos! Vou para aí agora mesmo.
- Não é só isso, Dr. Ramon. Tem
outra coisa. Anabela...ela morreu!
- Morta? Como assim? Meu Deus do
céu!
- Os vidros do quarto estão quebrados.
Parece que se jogou pela janela. Já estava morta quando a encontramos no chão.
Desculpe.
- O desgraçado deve ter a jogado
pela janela antes de fugir. Estou saindo daqui agora.
- Desculpe. – Disse Dra. Helena
novamente antes de desligar.
Assim que coloquei o aparelho de
volta no gancho, escutei um barulho vindo da parte debaixo da casa. Parecia
vidro quebrando. Em seguida, o som de passos sincronizados rompia o silêncio.
Pisavam sobre meu tapete da sala. Em seguida escutei-os, calmamente, subindo as
escadas de madeira. Olhei para a porta de meu quarto e notei que não estava
trancada. Uma gota de suor começou a escorrer de minha testa enquanto os passos
ficavam mais próximos. Cinco metros e meio. Era a distância de onde estava até
a minha porta. Levantei correndo da cadeira e como um relâmpago cheguei até ela.
O som da chave girando e trancando a porta foi como uma música para meus
ouvidos. Ofegante, me debrucei contra a porta. Podia escutar a respiração de
quem estava no outro lado. Fosse quem fosse, percebeu que eu a trancara e
desistiu da investida. Seus passos recuaram e os ouvi saindo. Corri para janela
que dá para a rua lateral da casa. Só me restou ver uma silhueta toda vestida
de preto desaparecendo na escuridão.
***
Estou enlouquecendo com todos os
acontecimentos dos últimos dias, em especial o da noite passada. Dra. Helena
estava em prantos. Enterrámos Anabela ao lado de Dinis, com a enorme oliveira
como única testemunha. Não demorariam muito para descobrirem as mortes e tudo
estaria acabado. O projeto de curar as diversas perturbações que afligiam a mente
humana estaria fadado ao fracasso total e a casa de repouso seria fechada para
sempre. Meu único alento era encontrar o maldito que fizera tudo isso: Vicente.
E isso não tardaria a acontecer.
Os pacientes foram impedidos de
deixar seus aposentos até segunda ordem. Ministrámos calmantes pesados para que
as ordens fossem obedecidas sem resistência. Um silêncio sepulcral se arrastava
pelos corredores e salões. Até mesmo Dra. Helena se encontrava em repouso
completo.
Eu tentava entender como chegámos nesse
ponto. Onde havíamos errado? Talvez devesse ter seguido os conselhos de meu pai
e entrado para o exército quando atingira a maioridade. Tudo poderia ter sido
muito diferente. Coloco as duas mãos sobre os olhos. Queria dormir e não
acordar mais. Acho que é hora de testar um desses medicamentos que entorpecem
até a alma. Que bálsamo seria simplesmente esquecer tudo isso.
Porém, essa história ainda não está
terminada e existem limites que, uma vez ultrapassados, não há mais volta. E eu
estava metido em um deles. Não havia fuga possível para mim.
Nesse momento, uma batida forte em
minha porta. Uma das serviçais me chamava ofegante. “Necesita verlo”. Era a única coisa que falava. Então me agarrou
pelo braço e me fez acompanhá-la. Chegámos até a cozinha e ela abriu uma
geladeira antiga que acompanháva o lugar desde a sua construção, fechando os
olhos em seguida. O que vi espantaria qualquer um com as faculdades mentais
intactas, mas não a mim. Podia dizer que estáva talhado o suficiente para não
me impressionar com mais nada. Por isso, conto aqui sem rodeios o que vi:
Vicente morto e congelado geladeira a dentro. “Dios mio” disse a criada fazendo o sinal da cruz mais desordenado
que já havia visto. A mim apenas uma única palavra vinha a mente: Beatriz!
***
Fazia um calor escaldante quando
Helena deu à luz uma linda menina de olhos verdes. O céu estava imerso num
oceano azul e límpido e uma brisa fresca nos tocava o rosto quando o primeiro
choro daquela divina criaturinha ganhou os ares. Estava disposto a criá-la como
se fosse minha filha. Filha de Ramon Saavedra, ou melhor, Raul Sampierri. Esse
é o nome falso que se tornou o meu desde o dia em que Helena – agora Eleonor -
e eu partimos da casa de repouso com documentos falsos rumo a Itália (não era
bem Dinis que tinha parentes por aqui). Vivemos hoje no Vale da Sicília, bem
longe das paredes e corredores cheirando a produtos químicos daquele lugar amaldiçoado.
Fugimos na mesma madrugada em que encontrei Vicente congelado na geladeira. Na
época, eu e Helena fugimos juntos por comodidade. Tínhamos apenas um ao outro e
segredos inconfessáveis que somente entre nós poderíamos falar. Ninguém mais
entenderia. A morte nos uniu e agradeço a ela por isso, às vezes ela acerta em
alguma coisa.
Quanto a Beatriz, não tenho ideia o
que aconteceu com ela. Tenho minhas teorias. Acredito que Vicente tenha matado
Dinis. Com ajuda dela? Talvez. Fato é que ela era tão fria como ele e quando
teve oportunidade o golpeou pelas costas (havia sinais de ferimento na parte de
trás da cabeça) e o deixou naquela geladeira para congelar como um animal após
o abate. Deve ter fugido com a maldita chave-mestra que havia sumido do quarto de
Amélia no dia em que encontrámos Dinis morto. Só Deus e o Diabo sabem onde
Beatriz está agora.
Nada disso importa mais. Arranquei
várias páginas desse caderno e as atirei de cima de um dos montes Peloritanos.
Faria isso com todas as páginas, mas Helena me impediu. Pegou o que sobrou do
caderno e guardou em uma caixa de madeira. Disse que antes de morrer vai enterrá-lo
em algum lugar, no quintal da casa de repouso ou do que sobrar dela. “Só assim
essas recordações encontrarão a paz”. Disse olhando para mim, antes de me dar
um beijo quente. Concordei com ela, enquanto olhava para a cadeia de montes e
vales que me cercavam e, pela primeira vez na vida me senti feliz de verdade.
Senti minha alma sair e
voltar do corpo várias vezes lendo essas últimas páginas perdidas que vieram
até a mim por força do acaso. Ou será do destino? Nunca acreditei muito nele.
Todas essas histórias não me saem da cabeça. Fico pensando o que terá
acontecido com os que sobreviveram a tudo aquilo. Terão tido uma segunda chance?
Assim como Helena e Ramon? Ou assim como David e Gabriel. E o que terá
acontecido com Beatriz? Alguma vez terá sido descoberta pelo que fez? E
Anabela, terá mesmo se jogado pelo vidro da janela num salto ao desconhecido
além da vida? Nunca saberei essas respostas. Já não tenho idade para isso. Quem
as tem? Também não sei dizer.
Resolvi
enterrar todos os cadernos que encontrei, em frente a uma enorme e envelhecida
buganvília. Depois resolvi arejar a cabeça. Lembrei que hoje vão inaugurar uma
nova praça aqui perto. Será um bom lugar para me distrair. Caminho até lá sem
pensar em nada. O dia está tão bonito quanto Ramon descreve na última página. A
praça está cheia de pessoas. Crianças correndo. Sento em um banco de madeira e
aprecio uma enorme árvore à minha frente. É uma oliveira e parece estar aqui há
muito tempo. Enquanto olho para ela dois passarinhos param em meus ombros. Eles
olham para mim como se me conhecessem há muito tempo e depois de uns minutos me
encarando, voam livres até um galho da árvore. Só então me dou conta que
Anabela e Dinis foram enterrados perto de uma oliveira. Todavia, é tarde demais
para divagações. Dou adeus para os dois passarinhos e eles parecem me entender.
Compro algodão doce de um jovem simpático e sigo meu caminho.
Grégor
Carlos Marcondes
Chegou ao fim esta bela história de que gostei de acompanhar.
ResponderEliminarUm abraço e continuação de uma boa semana.
Andarilhar
Dedais de Francisco e Idalisa
O prazer dos livros
Eu não acompanhei a história, vida corrida demais,mas vim te desejar um bom fim de semana.Bjs.
ResponderEliminarCom o cuidado de apanhar várias pontas soltas e desvendando destinos, tanto dos autores dos cadernos como de quem os leu por acaso, gostei muito deste final!
ResponderEliminarUma história bem engendrada, com algumas interrogações finais, como me parece que viria a suceder! Mas excelente! Gostei do final para todos, mas especialmente os do Gabriel e do Dinis, que saíram incólumes do hospício, e o da gravidez da Dr.ª Helena, que acaba por fugir com o Dr. Ramón!
ResponderEliminarBom fim de semana!
Li a história e adorei. Um abraço com carinho
ResponderEliminarBom dia, não acompanhei a historia, pelo que li agora da D. Helena, certamente que foi uma boa historia escrita com criatividade pelo Grégor Carlos Marcondes.
ResponderEliminarAG
Fui acompanhando e lendo aquilo que estava antes. Gostei do processo narrativo, por vezes surpreendente. Este final faz jus aos capítulos anteriores.
ResponderEliminarBeijo