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19/02/22

Na Fragilidade do Barro - Capítulo 7

 

Escultura e Fotografia: Fernanda Simões 

A vida de António, sem grande compromisso, parecia fluir...

Agora que Manuela havia percebido suas fraquezas no comportamento para com as mulheres, assentido por Adelaide, no que lhe acontecera, quando a questionou sobre isso, decidiu que haveria de falar-lhe o mais rápido possível. Queria que António assumisse, sem demora, a paternidade da pequena.

Nem Manuela nem ninguém sabia algo da vida escusa de António, embora esta já andasse desconfiada depois de observar algumas atitudes. Homem fechado a conversa ou convívios, de poucas falas… desde que o amigo Américo fora preso, mais de três meses atrás, que alguém da oposição política o abordara num enorme sigilo, para que continuasse o seu trabalho de propaganda noturna. Não que António tivesse grande apetência política - vivia muito centrado nas coisas dele. Nele próprio. Mas amigo era amigo, tinha poucos, e tudo faria para colmatar a ausência do Américo, ajudando no que pudesse. Também por esse vínculo existente entre os dois, tão visível a todos, raro em António, ele fora contactado. Obviamente, se enchera de cautelas.

O ano letivo não demoraria a acontecer e a transferência de Clarinha para Lisboa era agora premente, conhecidos que eram os resultados dos exames médicos. Manuela teria de se valer de uma atitude bem diplomática para não tornar Adelaide uma culpada aos olhos de António. Das atribuições pensadas para cada um dos pais, a dra. pouco iria incumbir a Adelaide.

Mulher pobre que já fazia muito pela sua menina, sem nunca se lhe perceber uma queixa, no rosto precocemente desgastado. Clarinha apesar das limitações económicas da mãe, era criança bem cuidada. Acarinhada, a mãe nunca permitira que se sentisse infeliz. Dela aceitara a explicação dada pela falta do pai e como nunca o conhecera, parecia viver bem sem sua presença.

Relativamente a António, Manuela fá-lo-ia assumir a paternidade da miúda, era sua determinação fazê-lo, para logo o encarregar prioritariamente de certas despesas de saúde – iriam ser precisas! Manuela já deixara recado na loja de António. Recado esse que não deixava azo a alterações de datas, conforme mencionara no bilhete que lhe fora endossado.

Como o tempo não espera, falara também com Lurdes, amiga e colega de faculdade que trabalhava num hospital público de Lisboa, na ala pediátrica. Lurdes concordara não só conduzir o processo de Clarinha no que preciso fosse, como achou por bem que ela ficasse a morar em sua casa. Tornava tudo mais fácil para ambas e far-lhe-ia companhia, o que seria uma experiência nova em sua vida, visto que sempre vivera só.

Quer o hospital quer a escola secundária eram próximas de casa, o que facilitaria muito as necessidades da garota. Que bom! Pensara Manuela.  Verdadeiro milagre! Coisa que se colocava de alguma dificuldade no início, era agora simples, oportuna. Restavam, porém, outras dificuldades.

No dia seguinte, chamaria Adelaide a sua casa. Pediria ajuda a Rosa, sua governanta e mulher de sua confiança, único ser vivente além dela própria, naquele casarão. Iria passear e entreter Clarinha, o tempo devido para uma boa conversa com Adelaide, já que este encontro serviria também para ajudá-la a pôr os pontos nos is, num assunto que deveria ter sido resolvido há muito! A médica iria fazer o possível para Adelaide concordar com o seu plano, resultando assim tudo em bem para ambas: mãe e filha. Logo de seguida e rapidamente, contactaria António, o pai. Haveria de o avisar disso mesmo.

O que iria resultar desta corajosa atitude de Manuela dependeria talvez da sua enorme vontade em ajudar uma criança que sempre conhecera, e que sabia agora, desde o último exame que lhe fora feito, não estar nas melhores condições físicas. Teria de ser cautelosa com António.  Teria de dar alguma força a Adelaide, que embora quisesse o bem da filha, tinha receio de ser confrontada com o amor de sua vida, neste assunto tão delicado. Mas sim, a doutora tinha razão: quem mais que ele, António, deveria ser chamado á razão?

Clarinha estava longe de imaginar o que se tecia à sua volta. Estava contente por ter terminado a escolaridade obrigatória. Ainda nada sabia das matrículas do novo ano letivo que se avizinhava. Vivia expectante em relação ao novo quadro estudantil - novas colegas, novas amigas, novas matérias de estudo. Muita novidade para a menina da aldeia que iria, pensava ela, frequentar o liceu da vila mais próxima... já descobrira, pelas amigas da escola, que iriam ter transporte assegurado de ida e volta. Que bom iria ser andar de carro!  Mas já não lhe era simpática a informação que corria, de terem de acordar muito cedo. Gostava de dormir, de se aninhar no calorzinho das mantas, se possível na cama da mãe, que a chamava a si nos fins de semana, já que a filha adorava adormecer a seu lado depois de alguma conversa entre as duas, por não haver horários de acordar.

Bem, teriam ambas de se habituar á mudança, um pouco de cada vez, pensava Adelaide.

Manuela decidiu pôr os pensamentos de parte, agora, que iria fechar o consultório e rumar a casa. Não! Antes, passaria por casa de Adelaide, para marcarem uma hora de encontro, no dia imediato. Depois do regresso a casa e do descanso habitual do final do dia, ao atravessar a vila, pararia um pouco na igreja. Teria uma breve conversa com Deus, a quem pediria apoio especial na condução das conversas do dia seguinte, com as duas pessoas que seriam as mais importantes na vida de Clarinha, daqui para a frente: a Adelaide, que sempre fora a responsável desde a sua vinda ao mundo, juntar-se-ia o pai, que passaria a ser o seu tutor. Pressagiava alguma dureza na conversa com a pessoa de António. Daí a sua preocupação maior e esta sua prece a os Céus!

 

Fernanda Simões


2 comentários:

  1. Fernanda Simões, gostei muito, tanto da escrita como do desenvolvimento que deu ao conto.

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  2. preces ao céu sempre vão sendo necessárias
    neste caso,
    com esperança em relação à situação da Clarinha!

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