Contos completos

14/02/23

Estendais - Capítulo 10

 

Fotografia: Estela Fonseca 

Estela - 6º Dto

 

Quem vê caras não vê corações,

 

Detesto ser acordada antes do meu despertador biológico, que nunca desperta antes das 17h! Isso mesmo, 17h da tarde! Custa-me ainda mais saltar da cama, ter que olhar a minha fronha ao espelho e recomeçar mais um quotidiano vulgar, ou que até nem será assim muito vulgar, desde que assumi a direção do 3113 e ao mesmo tempo mudei para este condomínio todo marado, com gente simpática, mas ao mesmo tempo cheia de histórias que são visíveis nas atitudes estranhas de alguns vizinhos. Antes de pôr os pés nas pantufas, espreguicei-me preguiçosa e pensei na Sónia, uma das minhas vizinhas, mas amiga também.  Depois do seu divórcio trigo limpo farinha amparo, Sónia decidiu investir efetivamente nas bolachinhas de canela e no David! Torci o nariz quando soube do seu plano. Isto de ficar sozinha e não saber lidar com a situação é muito complicado, quando estamos habituadas a ter alguém ao nosso lado. Mas estar ao lado não significa estar connosco. Sónia ainda não tinha feito o luto e já estava a tentar as suas investidas! Por todas as razões avisei-a que não seria nada boa ideia ir à casa do bonzudo lá do sítio. Mas foi! Tocou à campainha de David com um certo nervosismo de adolescente parva, e qual Golias, grande e imponente, eis que ele surge com um sorriso branqueado a pasta medicinal couto. Sónia corou, suou, sentiu borboletas no estômago e um bocadinho mais abaixo, mas apenas gaguejou um soletrar de canela e bolachas e sobras de lanche de miúdos após a escola. David agradeceu, pegou no pratinho cor-de-rosa choque, agradeceu a lembrança, e explicou que naquele momento não a podia convidar a entrar pois estava a meio de um importante trabalho, com limite de entrega até ao dia seguinte. Contudo, não se esqueceria do miminho e prometeu uma recompensa com um chazinho, um dia, de solinho, na sua varandinha, virada ao mar. Sóninha anuiu a tantos inhos, e claro, compreendia, e claro, raios-partam os sapatos de salto alto azuis cintilantes! Apeteceu-me esmurrar o rosto perfeito de David quando Sónia me contou! Eu tinha avisado! Aquilo não é boa rês! E não era mesmo! Além de que eu sabia e não interessa como, que David vivia enfadado por causa da sua Tónia e não era agora que iria aturar vizinhas recém-divorciadas à procura de um substituto fácil. Estava eu nestes pensamentos quando o telemóvel tocou. Falar, antes de acordar completamente e ainda entre o semi-dorme e as reflexões sobre os outros, irritam-me profundamente! Mas que raio!

- Desculpa, resmungou a pessoa do outro lado - O guito está a acabar. Tens algo para mim?

- Sempre tenho. Tu é que desapareces. Logo à noite, passo às 21h. Vê se te despachas a sair, já começam a fazer perguntas sobre o mercedes que de vez em quando aparece por aí. Já me basta a Benevides, que se atrasa sempre.

Levantei-me! Abri a janela meio incomodada pelo sol. O facto de ter acordado não significa que eu estivesse pronta para começar o dia ou parte do dia que restava. Fui fazer um café à moda da minha mãe. Aquele tradicional, de cafeteira, que faz um borbulhar assim que está pronto e deixa o aroma pendurado no ar durante muito mais tempo. Quase podia mudar de profissão com o jeito para definir tudo com slogans publicitários. Sentei-me na cadeira de baloiço, estrategicamente virada a poente. Ainda em pijama e pantufas, o meu «in fit» preferido para estar em casa. E lá estava eu a inventar palavras outra vez. Esta serotonina que vem do mar acalma-me a alma. Mas esta calma foi interrompida, bem como sossego do condomínio «sui generis». Subitamente tudo isto foi interrompido por risos e marteladas, algures, nos andares de cima. Ora, a Clô não estava em casa aquela hora. Usualmente ia tomar chá de gengibre e perpétua roxa com a Tixa. Era uma espécie de terapia mental para ambas. Sentavam-se na mesa do canto esquerdo, da esplanada do Bar da Moreira e sibilavam trocadilhos das vidas dos vizinhos. Até tinham um caderninho com capa vermelha, onde apontavam o que observavam, o que pensavam que tinham observado e o que supostamente iriam observar. Cogitei, então se não é Clô bem que poderia ser do andar do João. Até que simpatizo com aquele vizinho. Bem-falante, simpático e o único homem com bigode que acho sedutor. Nunca gostei de homens com bigode! Também não gosto deles lambidos de penugem. Barba! Isso! Uma barba rentinha ao rosto! Mas não quis dissipar o pensamento do barulho de cima, e foi quando percebi que só poderia ser da casa da Fernanda! Pois! O Euclides andava sempre por lá a fazer biscates. Só podiam ser as marteladas do Euclides e o riso da Nanda. Já tinha avisado a Benevides que talvez não fossem só biscates e bricolage mas a Benevides não lhe interessavam os hobbies do marido. – Temos uma relação aberta! Dizia ela. E ao pensar no diabo, o diabo tocava à campainha. Benevides entrou. Sempre toda arranjada, com maquilhagem perfeita! Costuma ela dizer que nunca sabe com quem se vai cruzar, pelo sim e pelo não, uma mulher tem que se produzir sempre. Em casa, no trabalho ou até para ir buscar o pão na padaria ao lado.

- Estava a terminar o meu café para te ligar, logo à noite vais ter companhia. Não te importas, certo? Até te alivia um pouco as tarefas. Sorri, enquanto noticiava Benevides das tarefas. Costumam dizer que eu não preciso falar, comunico com os olhos. E com o olhar malicioso, ou zangado, ou feliz, tudo dizia!

- Já algum tempo que não tinha companhia! Mas não me faz sombra! Negócios são negócios e os clientes também são diferentes!

- E o que vais dizer ao Euclides desta vez?

- O de sempre! Noite das mulheres! E além disso, o estendal da Fernanda não ficou bem colocado. Depois do jantar ele vai lá voltar a ver se arranja a coisa de uma vez por todas!

- Pois…o Estendal! Claro, que mais poderia ser!

Benevides encolheu os ombros! Sentou-se ao meu lado na cadeira de baloiço e ali ficou em repouso de preguiça malandra até o sol desaparecer na linha do horizonte.

Tive que me ir vestir e abispar-me. Esta noite é a minha vez de abrir e gerir o 3113. Quando cheguei ao restaurante-bar, fui verificar as reservas. Casa cheia! Não reparei nos nomes do livro das reservas. Mais importante era ter a certeza que o 3113 nunca perdesse o requinte e o glamour. Que o gourmet dos pratos fosse os preliminares das noites quentes e sensuais, da diversão e da libertação do corpo e da alma. Certifiquei que estava tudo ótimo antes de dar um salto a casa, antes de começar realmente a confusão da noite! O 3113 ficou nas mãos do meu fiel sócio. Sem problema. Dentro de uma hora estarei de volta. Assim foi! O prometido é devido e uma hora depois regressava ao 3113 acompanhada de dois amigos. Benevides vinha comigo. O ambiente de vozes altas e risos misturavam-se com o deguste de bons vinhos e dos odores de bons perfumes. Por detrás do bar principal, Benevides deixou sair um - «não posso acreditar»!

Olhei com atenção redobrada para o recinto e o meu rosto completamente embasbacado também não queria acreditar. Logo, à frente do palco, estavam três dos meus vizinhos: o Pedro do 4ºdt, a Cristina do 5º dt e a Luísa do 3º dt.

Mas o que era aquilo? Uma reunião da ala da direita do condomínio? Assim uma espécie de confraternização de um partido radical de direita? De repente lembrou-me de onde conhecia o Pedro. Sempre que nos cruzávamos no elevador ou no átrio do prédio, olhava-o e reconhecia aquela cara sem saber de onde! Tinha agora aí a resposta! Pedro era cliente do 3113. Tudo fez sentido! Havia um cliente, soturno, sempre vestido de preto, solitário, que frequentava sábados à noite o restaurante-bar! Pedia sempre a mesma bebida, um Croft, sem gelo. Simples e forte! Nunca se expunha, escolhia sempre a mesa mais afastada e no local mais sombrio, onde as luzes muito dificilmente o focavam. Passava despercebido, mas desta vez ali estava ele e acompanhado das suas vizinhas. Olhei para Benevides, ambas encolhemos os ombros! E agora? E agora era tarde de mais. Apagaram-se as luzes. O foco era o palco. O instrumental do filme Oficial e Cavalheiro começou. O dançarino vestia a rigor um fato de oficial da marinha. Alto, moreno, sensual. As palmas e os gritinhos histéricos das senhoras sobrepunham-se à música, mas nada o detinha! Com uma mão segurou-se no varão e com a outra despiu o fato de oficial, ficando apenas com uma tanga minúscula e uma proteção de tintins, apropriada para o efeito! A música mudou! It´s raining men. E o dançarino fazia mil e uma piruetas provocadoras. As mulheres rejubilavam. Quase todas, com exceção da Cristina e da Luísa! Pasmas, embasbacadas, interrogavam-se sem palavras. Olharam para o Pedro que deixara o seu lado soturno e sorria entre o divertido e o ar triunfal! – Sim, minhas senhoras, estão a ver bem. Quem ali está dependurado no varão qual salpicão no fumeiro, é o David, o nosso vizinho do 4º esq.

Nem Benevides nem eu tivemos coragem de contar a David quem estava ali mesmo à frente, assim que ele terminou a sua dança. Talvez a ala direita ficasse calada! Pensei no caderninho de capa vermelha da Clô e da Tixa! Aquilo sim, daria pano para mangas, para uma reportagem erótico-vizinhal!

Benevides apreensiva deixou-se ficar nos bastidores. Foi uma noite perdida. Paciência!

Depois do show Cristina e Luísa pediram a Pedro que as levasse para casa. Tinha sido demasiada informação para uma noite só. Tinham que digerir o que viram. Afinal aceitaram o convite de Pedro só porque achavam um tipo singular e solitário. Tinha falado num restaurante muito bom, com boa música e diversão, mas nunca imaginaram um bar de strippers. Chegaram ao condomínio em silêncio. Pedro mantinha o sorriso vingativo. Mas porquê vingativo? E porque as teria levado aquele bar específico?

Despediram-se com um até amanhã e quem sabe uma próxima vez num local mais calmo. Pedro procurava a chave do seu apartamento, quando ouviu uns passos conhecidos que de repente desciam a escada. Não queria acreditar. Era a sua cadela Troia! Mas junto a ela uma voz familiar: Finalmente, chegas! Já estava quase a desistir. Resmungou Filipa Arouca, entregando-lhe languida, a trela de Troia!

 

    Estela Fonseca

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