Adriano
Fiquei por um tempo, que me pareceu ser
longo, mas que com certeza foi apenas de alguns segundos, à espera que Afonso abrisse
a caixa. Mas ele não a abria. Acariciava-a em círculos como se os seus
pensamentos também andassem às voltas, à espera de uma decisão. Até que parou, mas
continuou sem dizer palavra.
Confesso que já me estava a sentir
inquieto. Talvez inquieto seja um termo demasiado forte, mas que me estava a
provocar um certo nervoso miudinho, lá isso estava; aquela atitude do velho
Afonso estava a empatar-me a caminhada. Se até ali não tinha tido dúvidas em
relação ao voltar atrás, naquele momento algumas me surgiram. E estendi a mão
em direcção ao objecto de culto, que aquele ancião venerava com o olhar vítreo,
com o propósito de levantar a tampa; mas uma mão ligeira impediu-me…
– Não, não a abra já.
Se já estava com as ideias baralhadas
antes disto, mais ficaram naquele momento.
– Leve-a… leve-a consigo – e com aquele
olhar dos velhos pensadores, acrescentou: – saberá quando chegar o momento de a
abrir.
Não entendi nada daquilo, mas pronto: faça
se a sua vontade. Até porque se aquela nossa quase loucura, minha e da Estrela,
iria causar alguma transformação em nós, como eu tinha lido no tal relato de um
peregrino, lá na biblioteca municipal, eu começava já ali. A aceitar carregar
com resiliência aquela caixa, que sabe-se lá que revelações guardaria.
E, com a caixa dos segredos daquele velho
homem no fundo da mochila, lá reiniciei o caminho. Por mim, abria-a logo ao
virar da primeira curva, desvendava-se o mistério e eu ficava completamente
livre para o propósito que inicialmente me tinha movido. Mas pronto, estava decidido:
ia esquecê-la no fundo da pouca bagagem que levava e não pensaria mais em tal
coisa, que o tal momento havia de chegar. Assim esperava!
Ai Estrela, minha Estrela, que aventuras
já viveste tu neste início de peregrinação? Sim, é uma peregrinação esta nossa
façanha; uma peregrinação que cultua o amor. Bem sei que combinámos não fazer
uso dos telemóveis para relatos exaustivos das nossas experiências diárias
(isso ficaria para depois), mas agora já estou em querer que isto seria muito
mais fácil se o fizéssemos. Tenho tanta vontade de te contar o que já me
aconteceu. Se estou a tomar as decisões certas… se estou a fazer o que devo. Como
sabes, sempre fui uma pessoa que gosta de partilhar as dúvidas e de ouvir todas
as opiniões antes de chegar a uma conclusão. E claro, também gostava de saber
mais do que estás a passar. Enfim, são as regras que definimos e vamos lá
cumpri-las. Estou ansioso por te encontrar.
Para evitar o terreno mais acidentado da
serra algarvia, tenho vindo a deslocar-me para noroeste; com a ajuda da
bússola, claro está, que o meu sentido de orientação não é assim tão apurado. Não
sei bem onde estou, mas pelo que já andei, diria que estou prestes a avistar o
mar. Bem, não só pelo que já andei, que foi muito mesmo (o dia todo desde que
saí da casa do Afonso, só com duas paragens para comer, numas tascas que
encontrei pelo caminho e mais algumas para me molhar, beber água e encher a
garrafa que trago, nuns regatos que também atravessei e fontanários com que me
cruzei), mas também pelo cheiro a maresia que só quem o sente todos os dias o
reconhece, ainda que a alguma distância. Só não sei se já cruzei a linha de fronteira
entre o Algarve e o Alentejo, mas também a diferença – se é que a há – é tão
ténue que com certeza não a decifraria.
Isto até parece coisa de outros tempos. É
claro que eu já fiz o percurso Faro/Lisboa e vice-versa bastantes vezes, principalmente
para visitar o meu filho, mas por autoestrada ou estrada nacional; o que não
tem nada a ver. Isto até parece outro mundo, outro país, distante daquele que
eu pensava que conhecia.
Acho que não posso dizer que seja
exactamente sol-posto, mas depressa será. Caminho num estradão de terra batida,
com o sol a dar-me pelas costas; o que alonga a sombra e aumenta a sensação de
lonjura, fazendo-me assim pensar no que ainda tenho para andar.
Mais adiante, na estrada, um casal de uma
idade já com alguma experiência de vida caminha a um ritmo sincronizado, tal
como as vivências que partilham, com certeza. Não consigo perceber se
conversam, mas apertando um pouco o passo, acerco-me e percebo que nem uma só
palavra desarmoniza aquele quadro de natureza idílica. Talvez já se conheçam
tanto que não necessitem delas para dialogar. Afinal, o silêncio é a coisa mais
bonita de se partilhar com alguém. Mas também a mais difícil. Não me atrevo a
aproximar-me, sinto que não tenho esse direito; ainda que algumas informações
me dessem jeito para saber onde estou… e para onde vou.
A poeira do caminho amortiza os meus
passos, ficando assim uma total ausência de ruído. Só os sons inerentes aquela
obra de arte, talvez divina, embalam o meu andamento, que naquele momento se
torna leve, como um voo de pássaro rumo à derradeira existência desde sempre
adiada; como uma promessa que finalmente ia ser cumprida. A promessa que há
muitos anos vi nos teus olhos de criança.
Foi a mulher que, finalmente, se virou
para trás e me viu. Acho que mais por instinto do que por qualquer outra coisa.
Elas são mais instintivas que nós homens, todos o sabemos. E também todos
sabemos que sempre acabamos por as seguir. Seja onde for, em que época ou
contexto for, é assim! Como tal, ele seguiu o gesto dela, notando assim a minha
presença e proporcionando a minha aproximação.
– Ora, muito boas tardes! – Adiantei-me no
cumprimento, procurando causar uma primeira boa impressão.
– Muito boas tardes, amigo! – Responderam
sincronizadamente, tal como o seu caminhar.
– Então o que se faz por aqui?
– Olhe, a gente recolhe a casa, e o senhor
o que o traz por aqui?
– Olhe, eu também busco um lugar para me
recolher… quer dizer, quero perguntar-vos se há por aqui alguma pousada ou
assim para passar a noite.
– Ah, o senhor é daqueles caminhantes que
andam por aí a ver a natureza. – Disse a mulher, que até então tinha estado
calada. – Passam por aqui muitos.
– Pois passam. – Corroborou o homem. – Mas
essas casas que diz não há muitas aqui na zona, só mais ali para o litoral…
para ali sim, por causa das praias.
– E isso é muito longe?
– Ainda é um bom bocado. E assim, a pé,
não há de chegar lá muito cedo.
Perante aquela informação, comecei a
cogitar a ideia de outra vez, dormir ao relento; se bem que da primeira vez não
foi bem isso que aconteceu. Mas o homem continuava a falar…
– Aqui pela região também podia haver
algumas, que até faziam falta… para pessoas como vossemecê. Havia por aí umas
casas desabitadas que bem podiam ter sido arranjadas para os tais alojamentos
locais. Mas agora já não, agora já não dá… estão cheias com essa estrangeirada
que para aí tem vindo.
– Estrangeiros, é? Há muitos aqui na
região?
– Oh, se há… vossemecê nem faz ideia.
Estão sempre a chegar aos magotes.
– Ah, então e o que é que vêm eles para
aqui fazer? – Perguntei apenas para confirmar, que pelo rumo da conversa já me
estava a situar, já sabia em que etapa do caminho me encontrava.
– Atão, são os que vêm para aí a trabalhar
para as estufas e para toda a agricultura.
– Mas aqui não vejo estufas.
– Deixe chegar ali àquele altinho que já
começa a avistá-las.
Mais algumas palavras trocadas e o casal
despediu-se, entrando num outro caminho que ia dar à casa que se via um pouco à
frente. A sua casa.
Eu, que agora já via o sol pôr-se no
horizonte, preparava-me para encontrar um lugar para passar mais uma noite sob
as estrelas… rumo à minha Estrela.
Luísa Vaz Tavares
De volta depois de um relaxante período de férias, passo para desejar uma boa semana.
ResponderEliminar