Desta
vez, o nosso formato de escrita partilhada tem inspiração no texto “A
Quadrilha” de Carlos Drumond de Andrade. Numa séria brincadeira que pretendemos
homenageadora para o autor, vamos interpretar os personagens deste texto à
medida da nossa imaginação.
A Quadrilha
João amava Teresa que amava Raimundo
que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili
que não amava ninguém.
João foi para os Estados Unidos, Teresa para o convento,
Raimundo morreu de desastre, Maria ficou pra tia,
Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes
que não tinha entrado na história.
que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili
que não amava ninguém.
João foi para os Estados Unidos, Teresa para o convento,
Raimundo morreu de desastre, Maria ficou pra tia,
Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes
que não tinha entrado na história.
Mas
como o número de participantes é superior ao número de personagens do texto,
inventámos alguns.
Variações em Quadrilha
João amava Teresa que amava Raimundo
que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili que era amada por Alberto que também amava Elvira que amava Leonor que amava Pedro que amava Amélia que também amava Lili que não amava ninguém.
João foi para os Estados Unidos, Teresa para o convento,
Raimundo morreu de desastre, Maria ficou pra tia,
Joaquim suicidou-se, Alberto casou secretamente, Elvira perdeu-se no mundo, Leonor fez-se árbitro de futebol feminino, Pedro tornou-se aviador, Amélia parteira e Lili casou com J. Pinto Fernandes que não tinha entrado na história.
que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili que era amada por Alberto que também amava Elvira que amava Leonor que amava Pedro que amava Amélia que também amava Lili que não amava ninguém.
João foi para os Estados Unidos, Teresa para o convento,
Raimundo morreu de desastre, Maria ficou pra tia,
Joaquim suicidou-se, Alberto casou secretamente, Elvira perdeu-se no mundo, Leonor fez-se árbitro de futebol feminino, Pedro tornou-se aviador, Amélia parteira e Lili casou com J. Pinto Fernandes que não tinha entrado na história.
Capítulo
1
Albino
Pereira
João
Sempre lhe dissera o
mesmo: só tens que cumprir três regras. A primeira, nunca ultrapasses, em kg, o
peso ditado pelos dois últimos dígitos da tua altura, em cm. A segunda, mal
possas, põe de parte o equivalente a três dos teus salários mensais e não lhe
toques nunca a não ser em caso de extrema necessidade. A terceira, e a mais
importante, nunca entregues todo o teu coração a ninguém.
João continuou, pela vida
fora, a tentar seguir estes ensinamentos, confiando na sua bisavó nonagenária.
Alguma razão deveria ela ter, afinal não conhecera nunca ninguém que tivesse
uma bisavó sequer.
Cumprir a primeira das
regras trouxe-lhe um dos prazeres de que já não abdicava. Era assíduo no
ginásio da moda, corria pelas manhãs e ia dando uns mergulhos nas praias frias
do Norte o que lhe assegurava o equilíbrio necessário para aproveitar o que os
dias lhe iam oferecendo além do corpo bem tonificado.
O trabalho como docente
convidado num dos Institutos Superiores mais requisitados da zona do Grande
Porto satisfazia-o. O contacto com os alunos, muitos deles a viverem os
primeiros anos das suas vidas adultas, era desafiante e o facto de lidar com a
necessidade de acompanhar o que de mais recente se fazia na sua área de
trabalho trazia-o bastante ocupado e apaziguava, de alguma forma, o seu estado
permanente de inquietude curiosa. Assegurada a segunda das regras, ainda ia
tendo, graças a algumas colaborações como freelancer
em revistas especializadas, uma conta bancária que, longe de generosa, pelo
menos dir-se-ia suficientemente apetrechada.
O tempo dedicado quer às
viagens que fazia, algumas por obrigação profissional outras por puro deleite, quer
às aulas e à prática do exercício físico, ia garantindo o cuidado necessário
para não infringir a terceira das regras. Estava disponível para relações
curtas e intensas. One night stand bastava-lhe e os olhares de desejo que adivinhava em muitas
das suas alunas, e em algumas das suas colegas, alimentavam o seu ego quanto
baste.
Quando aquela nova colega
chegou ao Instituto para lecionar espanhol a uma das suas turmas do curso de
Relações Internacionais, João achou-lhe uma certa piada. Era o oposto de
Marivi, a anterior professora que deixara o lugar vago ao regressar a Barcelona
para acompanhar os tratamentos da mãe, tanto quanto rezava a versão oficial.
Entre os colegas, dizia-se que quisera afastar-se de Leonor, uma professora do
curso de Educação Física na faculdade que ficava no mesmo campus. As desilusões
que cada um carrega são mais esconsas que as ilusões que às vezes partilham com
almas próximas.
Teresa, jovial e
irrequieta, aparentava estar nos inícios dos seus trinta anos e o facto de
trazer uma mochila vermelha às costas em vez da tradicional puída pasta
castanha, chamou a atenção de João.
Já em casa, querendo
saber mais sobre Teresa, João procurou-a nas redes sociais. Encontrou-a no Instagram e, como a conta era privada,
pediu para a seguir. A autorização foi quase imediata e João teve a
oportunidade de verificar que Teresa não era daquele tipo de pessoas que o
irritavam de sobremaneira. Não era exibicionista (na sua conta não havia apenas
fotos da sua pessoa, em poses de diva e bocas de silicone) nem era mais uma
daquelas instagrammers que partilham
constantemente pensamentos irritantes em inglês ou em português do Brasil com
recados sabe-se lá para quem, nem pertencia àquela terceira categoria dos que
exibem tudo o que comem em fotos sucessivas de pratos de peixe, de carne, de batatas
e verduras, de muitos vinhos e muitas sobremesas. Na sua conta podia-se ver
fotos de monumentos visitados, de paisagens captadas, de livros, filmes ou
referências a músicas. Tudo muito em torno da cultura espanhola, exceto uma ou
outra ligação a alguns clássicos universais. Curioso, procurou algum registo
que envolvesse Portugal ou as suas gentes. A única coisa que encontrou, que
remetesse para Portugal, foi uma fotografia de um trabalho da Ronda dos Quatro
Caminhos, Terra de Abrigo. João desconhecia por completo este grupo. A ausência
de fotos suas com amigos ou de fotos de familiares aguçava a curiosidade de João.
Revelaria alguém que estava sozinha no mundo ou traduziria alguma forma de ser
mais independente?
Buscou informações sobre
o disco e descobriu que datava já de 2003. Tratava-se de um disco de cante
alentejano, largos anos antes de ser considerado Património Cultural Imaterial
da Humanidade pela UNESCO, envolvendo oito Grupos Corais do Alentejo, a
Orquestra Sinfónica de Córdoba, uma cantora de flamenco, outra marroquina, uma
fadista portuguesa e dois virtuosos guitarristas, um português e outro
espanhol. Que mistura!
Procurou o disco no Spotify e ouviu-o. Tinha bom gosto
musical a nova professora.
Estes tempos modernos não
deixavam de ser algo estranhos. O quanto se poderá saber sobre alguém a partir
de alguns posts seus numa rede
social? Tinha consciência que só acedia ao que Teresa quis mostrar da sua vida,
mas agradava-lhe o que via.
Quando foi atualizar o seu
Instagram viu que tinha alguns
corações (traduzindo agrados) novos. Estava habituado a que as suas fotos
(nunca recorria a vídeos) tivessem muito sucesso. A sua conta era aberta ao
público pelo que não precisava de autorizar seguidores e, deste jeito, Teresa
pôde mostrar que gostara de algumas das fotos mais recentes que ele disponibilizara
nessa conta.
Na manhã seguinte,
procurou-a no Instituto tentando encontrar-se, casualmente parecendo, com ela.
Mas não a encontrou. Nem nos outros dias dessa semana.
Quando a reviu, reparou
que o olhar dela procurava o seu e o sorriso que os lábios retinham, os olhos não
conseguiam disfarçar. Assim, habituado a estabelecer primeiros contactos
certeiros, João, com o melhor dos sorrisos, apresentou-se e convidou-a para
almoçar.
Começou assim o que seria
o quebrar da terceira das regras que João aprendera da sua bisavó Maria.
Teresa deu-lhe a conhecer
o novo cinema espanhol, muito para além do já seu Almodôvar, e trouxe-lhe o
mundo de Albert Espinosa. Em espanhol, dos latino americanos, ele conhecia os
mundos encantados do Gabriel Garcia Márquez, do Luís Sepúlveda e da Isabel
Allende, mas nunca tinha ouvido falar deste vizinho peninsular nem dos seus amarillos.
João falou-lhe de outros mundos encantados, também provenientes dessas
latitudes sul americanas mas descritos em português. Foi assim que lhe deu a
conhecer Jorge Amado, Monteiro Lobato e José Mauro de Vasconcelos. Mas também
lhe falou de Dulce Maria Cardoso e de Manuel António Pina. Ouviu com ela Maria
de Medeiros, António Zambujo e Cristina Branco. Levou-a a Serralves e aos
jardins do Palácio de Cristal. Foram à Casa da Música e ao Coliseu.
Nem se davam conta de que
os meses se passavam tão enlevados estavam nas descobertas múltiplas que iam
fazendo juntos.
Assim, desta forma, achou
natural aceder ao convite dela para passarem aquele fim de semana a seguir ao
feriado de quinta-feira, em Salamanca. Aproveitaram a ponte, e partiram na
quarta-feira, ao fim da tarde. Pernoitaram em Belmonte, numa casa de turismo local
rural. Antes de chegarem a Salamanca, pararam em Ciudad Rodrigo e visitaram,
depois, La Alberca a povoação de onde era natural a avó de Teresa. Tiraram
muitas fotografias e Teresa postou, no Instagram,
uma foto da rua onde brincava quando era criança e ia visitar a sua avó. João
tinha escolhido e postado uma fotografia que tirara quando subiam para visitar
o castelo de Ciudad Rodrigo. Na praça principal de La Alberca onde estava
estranhamente instalado, no que teria sido em tempos idos uma prisão, o posto
de Turismo da povoação, comeram umas tapas de presunto e beberam, cada um uma
cerveja bem fresca pois o calor fazia-se sentir e o presunto era “puxadito”,
como dizia Teresa.
Quanto mais conviviam,
mais João se deixava apaixonar por Teresa.
Teresa levou-o a conhecer
os locais onde sempre vivera, antes de se mudar para o Porto. O seu apartamento
ficava situado na zona histórica de Salamanca, bem perto da Praça de Colon,
numa rua pedonal. Dali à catedral, eram uns minutos a pé. Mostrou-lhe a fachada
belíssima da Universidade e desafiou-o a encontrar a rã escondida entre as
largas dezenas de esculturas que a adornam. Contou-lhe a lenda antiga segundo a
qual se um estudante da Universidade fosse capaz de a encontrar, sem ajuda,
seria bem-sucedido nos exames e se não fosse estudante, mas encontrasse a rã,
encontraria também o amor da sua vida e seriam felizes. João bem tentou mas era
de facto muito difícil… só com as dicas de Teresa conseguiu, por fim, encontrar
o bicho. Numa das muitas lojas de Recuerdos que por ali pululavam Teresa
comprou uma rã de Salamanca e ofereceu-a ao João.
Desceram até à zona do
rio e sentaram-se numa manta para descansarem. Naquele torpor, João deixou-se
adormecer. Quando acordou, Teresa estava a uns metros a conversar com alguém. Apresentou-lhe
Raimundo como sendo um amigo de longa data e, a Raimundo, disse que João era um
colega português que a acolhera no Porto e a quem estava a devolver a simpatia,
mostrando-lhe Salamanca.
João esperava que, por esta
altura, já fosse um pouco mais que isso. Ele já se via a assumir, pela primeira
vez na sua vida, um compromisso com alguém. Estava a sentir-se descartável…
Pensando bem, sempre tratara assim as suas conquistas. Seria isto a lei do
retorno?
Na verdade, que sabia ele
sobre Teresa? Sobre o seu passado e os seus sonhos?
Enquanto regressavam, ao
passar por uma das pontes, João quis fazer uma selfie com Teresa, pois o lusco-fusco trazia uma luminosidade a
todo aquele entorno realmente digno de registo. No entanto, contrariando todo o
comportamento daquela semana, Teresa negou-se com um simples abanar de cabeça e
disse-lhe que estava cansada e com pressa. Outro sinal do desconforto causado
por aquele reencontro com Raimundo.
No dia seguinte, João
levantou-se mais cedo e foi correr pelas ruas estreitas da cidade descendo até
ao rio e acompanhando as suas margens. Perdido nas reflexões nem ouvia a música
que escolhera para essa corrida. Mais tarde, Teresa levou-o a conhecer a Casa
Lis e a sua magnífica coleção de peças Art
Nouveau e Art Déco. Deveras
impressionante, para João, foram as criselefantinas pela total novidade para
ele: a mistura requintada do bronze com o marfim e as impressionantes bases de
ónix e mármore faziam daquelas pequenas esculturas umas magníficas obras de
arte.
Não foi de somenos
importância o chá tomado no café do museu, que o transportou para uma época de glamour e ilusão fazendo-o sentir-se a
viajar no tempo.
No entanto, apesar de
todo o ambiente de romantismo do local, no rosto de Teresa algo se perdera.
Apesar dos sorrisos rasgados, o seu olhar transmitia tristeza.
João não resistiu e começou
a fazer perguntas. Por que razão quis Teresa abandonar aquela cidade onde tão
bem se sentia e ir ensinar espanhol para o Porto? Afinal o que tanto a
transtornara na conversa da tarde anterior com aquele seu amigo?
Teresa não foi capaz de
continuar a levar os seus intentos por diante. Disse-lhe que queria mesmo, que
tentou muito, conhecer alguém que lhe fizesse esquecer Raimundo. Tinha sido o
seu único amor, desde os tempos da adolescência. Raimundo nunca lhe dera qualquer
esperança mas Teresa achava que isso se devia ao facto dele ser muito aplicado
nos estudos e que tal o impedia de estar disponível para namoros pois, na
verdade, nunca lhe conhecera qualquer amor. E citou Albert Espinosa “Si crees
en los sueños estos se crearán.” (Se acreditas nos sonhos, estes tornar-se-ão
reais). Mas os anos iam esgotando o tempo e a amizade com Raimundo nunca
evoluíra para o que ela ansiava. Teresa precisava de sair desse encantamento a
uma voz apenas.
Quando Marivi, amiga de
infância da sua mãe, lhe falou da oportunidade de Teresa ir para o Porto
trabalhar, substituindo-a, ela não hesitou. Mal João lhe estendeu a hipótese de
algo mais, Teresa agarrou-se com unhas e dentes e dispôs-se a amar e a deixar-se
amar por outro homem que não Raimundo. João era bem-parecido, charmoso e
sedutor.
Tudo correu relativamente
bem até reencontrar Raimundo, naquela tarde. Tudo nela se reacendeu e ela
percebeu que nunca nada nem ninguém lhe faria esquecer aquela insana paixão.
João não insistiu pois o
olhar de Teresa dava-lhe acesso ao mais íntimo dela e não negava nada daquilo
de que agora se inteirara. Regressou ao Porto, sozinho. Calmamente, recusou-se
a voltar pelo mesmo caminho e escolheu outra fronteira para deixar Espanha.
Parou em Gismonde e chorou como nunca antes o tinha feito.
No final desse ano
letivo, anunciou a sua decisão aos superiores do Instituto: concorrera a uma
bolsa de doutoramento nos Estados Unidos e, também ele, sairia do país para tentar
esquecer um amor.
Na bolsa, levava uma rã
de Salamanca.
Capítulo 2
Joaquim Henriques
Teresa
Sim, sabia-se complicada.
Sempre de cabeça no ar, cheia de ilusões artísticas, frustrações de quem
adorava arte e não pintava uma árvore ou escrevia duas folhas de texto.
Refugiava-se num pretenso conhecimento artístico, conhecia os museus todos e
até muitas das obras que por lá ganhavam bolor e em segredo suspirava vontade
de criar algo semelhante, infinitamente semelhante, no mínimo.
Por outro lado, sempre
presente estava a sua educação católica, profunda, imensamente castradora, que
não parava de lhe segredar o que não devia fazer, os eternos pecados… Raimundo
era do seu mundo, criado e educado da mesma forma, crente e casto, sincero nas
suas convicções, sem mentiras ou hipocrisias, parecia…
Todos de boas famílias,
cumpridoras dos castos deveres, missas dominicais e outros ais. Cresceram
juntos, viu-o crescer, era o seu ídolo. Raimundo estava sempre entre os
preferidos, ajudava na missa, na catequese ou nos campos de férias, até se
falava que seria padre, tão aplicado era na mensagem. Ajudava em tudo mas nunca
se envolvia com ninguém do grupo, estava noutra dimensão: perfeito,
inatingível, como as peças de arte que aprendeu a adorar.
O amor, ou o que ela
pensava ser tal sensação, cresceu assim, descontrolado. Teresa tudo fazia para
estar perto, ser a primeira das ajudantes, e ele gabava-a, dizia que era uma
excelente rapariga, bonita até, mas nada mais do que isso…
Durante anos, apesar de
tudo, bastou-lhe. Afinal ele não abdicava da sua presença, da sua ajuda, e
também assim, ela estava no centro das atenções. As beatas, principalmente, as
mais velhas e encarquilhadas, tantas vezes desenganadas pelos seus, também
castos maridos, incentivavam-na, transferiam para ela as suas frustrações, alinhavam
com o santo padre, na mensagem: “a virtude, e a esperança, são as últimas
coisas a perder…”
Houve algumas tentativas,
alguns esfreganços, até. Uns beijos e mexidas em sítios inconfessáveis sempre
travados à última hora por ele, sempre por ele! Por ela, por muitas avéns
Marias ou padre nossos que tivesse de dizer depois, há muito que se lhe teria
entregado toda, sem limitações, sem se ralar se era pecado ou não!
E assim continuou a sua
vidinha; suspirando pelos cantos, certinha e adorada por todos, bolorentos… até
que um evento mudou a sua vida. Raimundo, o exemplo a seguir, aquele que todas
as suas amigas também disputavam, afinal tinha duas faces: um hipócrita! Não se
sabe se sempre fora assim ou se tal começara quando saíra para estudar na
capital, mas pelos vistos descobrira o prazer da carne, e pouco lhe importava
se era tenra ou rija. Foi um marido enganado que, inventivo e destemido, o
desmascarou. Foi em plena missa em que o “santo” participava, que lhe deu uns
abanões vigorosos.
Estranhamente, ou talvez
não, depois da surpresa, vieram as desculpas, as confissões e contrições. A
família influente e abastada pagou a bula e rapidamente tudo caiu no
esquecimento de todos, menos no dela…
Não importava que ele
tivesse tido mulheres, poucas ou muitas, era-lhe indiferente, até o tornava
mais humano e apetecível. Mas o que não aceitava, de forma alguma, era o facto
de todas as coisas de que o acusavam não terem acontecido, consigo também!
Os primeiros dias foram
complicados. Mirava-se ao espelho, nua ou vestida, de costas ou de frente,
maquilhada ou desgrenhada, e só conseguia ver um excelente espécime feminino.
Aliás, os homens na rua, de forma mais ou menos elegante, todos os dias a
lembravam disso.
Depois do desgosto, veio
a revolta, a raiva por se sentir preterida! Caramba, era adulta, tinha
pretendentes e algo que estava constantemente sonhado, sempre só com ele,
guardado e intacto, de repente tornou-se um fardo, exemplo da sua
incompetência…
Lembrava-se da cara dele,
até do nome, mas do resto, nem por isso. O sonho, na sua forma platónica, deu
lugar primeiro a alguma dor fugaz e depois a imenso prazer. Mas, depois do
depois, veio a malvada da consciência, bem lavada por anos e anos de doutrina,
que acordou e não parava de lhe cobrar.
O Porto foi a sua fuga;
não do Raimundo, de si própria. Tinha de sair dali e encontrar-se, perceber
onde estaria o equilíbrio entre o que a sua condição de humana sentia e queria
e o que lhe impunham os ensinamentos.
O João, homem culto e
interessante, apareceu-lhe no meio de todas estas cogitações, mas para algo
acontecer com ele, tinha de exorcizar o seu demónio: Raimundo! Esperava ver-lhe
na cara uma expressão arrependida, mas o que encontrou foi alguém de curso
terminado, cada vez mais inserido na sociedade, a sorrir cinicamente e a
desejar-lhe felicidades. No regresso ao Porto, no Instituto ainda tentou falar
com o João, mas ele, despeitado, não lhe deu qualquer hipótese, não lutou!
Uma manhã, qual bruxa má,
quando se olhava pela milionésima vez ao espelho, disse:
“Que se lixe, para
hipócrita, hipócrita e meio! O meu espírito precisa da igreja, mas o meu corpo
também. Vou para um convento e de certeza que também há padres que são homens…
cuidem-se!”
Capítulo 3
Rosa Lídia Santos
Raimundo
Ao contrário do que Teresa
pudesse pensar, Raimundo acordara tarde para as coisas do amor e do pecado.
Que força aterradora era
essa que o impelia a pensamentos e atos insanos e impuros?
Chamavam-lhe desejo,
vontade própria do corpo desalmado e sem freio, ainda em toda a sua
inexperiência.
Assaltavam-lhe
pensamentos impróprios que lhe subjugavam o olhar cobiçoso, que embora
simulado, interiormente desnudava as mulheres com que se cruzava. Bastava-lhe
uns lábios desenhando um sorriso fresco, um botão inadvertidamente desapertado,
um roçar de tecido de uma saia denunciando as formas femininas, para que os
seus sentidos imaginassem sem pudor um corpo vivo, quente e sumarento como uma
romã rasgada sob o sol doirado.
Pensava que se o inferno
deveras existisse, se assemelharia a essa loucura que lhe inflamava a mente e a
pele, e lhe prendia as mãos e os pés e lhe secava a voz mesmo ainda antes de
ousar as palavras.
E procurava o frio dos
claustros e a mudez do homem preso na cruz, vítima de um suplício tão
agonizante como o seu, e a solidão em que se recolhia.
Conhecia Teresa desde que
se lembrava.
Haviam sido irmãos nas
brincadeiras e, até há algum tempo, também confidentes sem qualquer receio de
julgamento. Isso até ao momento em que a desejou. E não fosse terem sido
interrompido, teria ousado um gesto, um toque inconsciente e irresponsável. Na
frieza da solidão, analisara a confusão de sensações de que fora acometido e
agradecera em oração, a imprevista entrada da mãe dela na salinha onde fingiam
estudar.
No entanto, a consciência
do impossível não abrandara a sua reação ao corpo esguio de mulher que
despontava em exuberância,
Quase que pressentira que
Teresa sentia o mesmo, mas a inconcebível hipótese do seu relacionamento
justificava-se como sendo praticamente incestuosa. Por outro lado, se cogitando
se o passado partilhado por ambos poderia aliar-se a este recente sentimento,
logo desconfiava que o que os seus sentidos lhe ditavam nada tinha a ver com o
amor de que lera nos clássicos: seria pura e ferozmente uma fome que, depois de
saciada, nada mais teria para oferecer a não ser o fim de uma amizade que
prezava.
Assim, sentenciou-se ao
afastamento, à reclusão na igreja que frequentavam; por tradição apinhada de
crentes aos domingos, mas despovoada de gente de fé aos dias de semana. Só os
santos purulentos nas suas chagas expostas e iluminados pela frágil e
tremeluzente chama das velas amarelecidas, velavam a sua inquietude. E sempre
que uma beata ou outro devoto inoportuno invadia os seus claustros, escondia-se
no confessionário de madeira escura que exalava um pesado e estranhamente
apaziguador aroma céreo.
Por entre o pó incrustado
na craticula do vestíbulo indiscreto ou nas cortinas de veludo vermelho que
vedavam os segredos ali confecionados, Raimundo observava quem ali esporadicamente
se recolhia; os seus rostos sofridos ou até irados, o mover dos lábios em
surdas orações, o gesticular do sinal da cruz a terminar cada ato de fé na
procura de ajuda ou absolvição.
E foi assim que a viu; um
anjo de negro ou era negro o véu que mal dissimulava os longos cabelos loiros
que, por debaixo dele, desciam revoltos. Mais que qualquer outra coisa, foi a
curiosidade que se lhe aguçou na procura do rosto daquele vulto feminino.
Mas a revelação do
desconhecido semblante não se proporcionou: o ângulo de visão do pequeno
estande face ao banco onde a mesma se ajoelhara tornava-o alheio a qualquer
vislumbre de um simples traço que fosse. Apenas aquela cascata de caracóis
dourados se lhe oferecia a instigar o seu diletantismo.
Raimundo percebeu que ela
chorara – vira-a retirar de uma bolsinha de renda atada ao fino pulso um
lencinho de cambraia que levara aos olhos a ele velados.
E como chegou, logo se
levantou e partiu.
Mas voltou outras vezes,
sempre discreta, sem que Raimundo a pudesse confrontar e lhe ver o rosto
desnudado.
E a curiosidade levou à
ansiedade da antecipação dos momentos que já considerava de ambos tão íntimos,
mesmo que ela dele nada soubesse nem o pressentisse sempre ali escondido na sua
alcova.
Lá fora, o sol por ele
ignorado, assim como todo o restante mundo exterior, já descia na sua
exuberância de ruídos de cor e de sons frenéticos, quando ela finalmente
entrou.
Não se ajoelhou em sinal
de reverência, nem iniciou quaisquer preces caladas.
Sem aviso, desvendou a
cortina de veludo e ajoelhou-se de frente para o rosto surpreso e impreparado
de Raimundo. Entre eles, apenas a pequena rede que separava o padre do
penitente e logo ela abriu a pequena porta. A respiração dele contida, a dela
um sopro ansioso e os gestos nervosos.
- Padre, desejo me
confessar. Tem a sua porta fechada, mas, desculpe-me o atrevimento, vi os seus
pés por debaixo da cortina e eu estou tão necessitada!
Incapaz de lhe falar, ele
abriu a porta e acenou-lhe com a cabeça.
- Padre, eu hoje vou
matá-lo, o meu marido!
- O quê? Mas senhora, o
que me dizeis? – Balbuciou ele levantando-se.
Ela levantou-se também e correu para a outra
cortina, sem que tivesse tempo de se cobrir com o véu.
- Mas padre, eu sei que é
contra a natureza dos homens e de Deus, a decisão que lhe anunciei, mas, como
sabe, tenho mais do que justificações. Não lhe contei já tudo sobre a minha
situação? Aquele homem é um demónio. Nunca deveria ter acatado a decisão do meu
pai e casado com ele. Tudo para salvá-lo da ruína e da vergonha e, de nada
valeu. Estão mortos ambos os meus pais, nada resta. Apenas a solidão… … sempre
a violência das suas palavras e dos seus gestos.
Ele de nada sabia.
Certamente tomara-o pelo sacerdote que talvez nunca tivesse visto ou conhecido
bem. E que pobre criatura aquela; a fonte de tudo o que sentia que sabia ser
agora amor.
Se lhe revelasse a sua
identidade, provavelmente, fugiria e não a poderia dissuadir de tal loucura.
- Mas, filha lembra-te da
tua alma e da perdição eterna … - fora o que lhe ocorrera, enquanto tentava
organizar uma contra-argumentação credível e eficiente.
- Que alma, padre? Com
toda a selvajaria daquele homem, se alma eu tivesse já me havia de a ter
arrancado.
Estavam ambos expostos no
exterior do confessionário, falando num tom nada condizente com o eco do
silêncio da nave.
Estavam sós, mas poderiam
ser facilmente vistos e ouvidos da larga entrada da igreja.
Raimundo, tocando-lhe
levemente o braço magro, orientou-a por umas escadinhas laterais que levavam ao
balcão do coral.
Sentaram-se frente a frente
e só ali Raimundo se apercebeu do castanho aveludado dos seus olhos e receou
perder-se neles.
- Mas recorde-me o seu
nome… - pediu-lhe.
- Chamo-me Maria do
Rosário de Lemos. Sou casada com o Dr. Joaquim Lemos, o diretor clínico do
Hospital de S. Teotónio.
Já ouvira falar dele como
um bom profissional e era estimado pela comunidade. Era também filho de boas
famílias, bastante abastadas pelo que se dizia.
- Conte-me novamente como
tudo começou, talvez possamos arranjar uma solução que não seja essa que a
levaria à prisão.
E Raimundo ouviu-a com o
coração dilacerado pela impossibilidade do seu descoberto amor, assim como pela
angústia que lhe ouvia no rosto ao contar-lhe todas aquelas histórias barbaras.
No fim, deixou-a chorar
agarrada aos seus braços, desejando logo que não o tivesse feito. O seu corpo
reagia ao dela como se o conhecesse desde o primeiro respirar, antecipando cada
movimento, moldando as suas concavidades nos seus convexos ângulos, como se de
um só ser temporariamente divisível se tratassem.
Que loucura os tomou que
logo a sua boca procurava os lábios de Maria, abertos para si e as suas mãos
que tremiam buscavam o que a sua alma sempre conhecera do corpo da sua outra
metade.
Era um fim que se
transformava em início e um recomeço continuo e em crescendo que o assustava e
deliciava, restando-lhe a completa subjugação.
Já Maria o despia e lhe
orientava as mãos incautas para si, levando-o a ousar o mesmo.
Amaram-se ali mesmo no
chão frio e duro da pedra escura e desnuda.
E já Maria repousava no
seu braço, enquanto Raimundo a observava languidamente. Maria era pequena e
esguia e a sua pele clara era seara de pequeninos pelos muito alvos, onde agora
repousavam pequeninas gotículas de suor. Os seus olhos estavam fechados,
notando-se-lhe os longos cílios de mel. Tudo nela lhe parecia pueril, quase
divino na sua perfeição.
De repente, sem uma
palavra ou olhar que denunciasse o que haviam vivido, ela vestiu-se e saiu.
Raimundo não percebia o
que sentia, nem o sentido do que se passara. Não tinha vivências que o
situassem nem palavras que o firmassem num ponto preciso da sua existência.
Nada o prepara para o que acabara de experimentar.
Apenas a memoria ainda
viva em toda a sua pele lhe provava que não sonhara, que fora real e palpável
para si, agora só naquele refúgio da igreja.
A noite invadira todas as
ruas e recantos da cidade e os seus passos na calçada ritmavam o mudar do
sentido dos seus pensamentos. Ora pensava que Maria também o amara naquele ato,
ora pensava que ela partira daquele modo porque não conseguira fazê-la um pouco
mais feliz e que para ela nada significara, ora que estavam destinados um ao
outro num futuro muito obscuro…
Era tarde e não comera
desde a sopa da mãe e entrou no Restaurante Tradicional, centro de repasto para
corpo e para a alma: lá se cantava o fado, hino dos atormentados.
Sentou-se na obscuridade
de um canto pouco iluminado. Sorvia um caldo farto e quente, quando as luzes do
pequeno palco se iluminaram.
Acompanhou com o olhar a
chegada dos músicos que já tentavam algumas notas em jeito de breve ensaio e
afinação das guitarras, mas logo se absorveu no prato de carnes agora disposto
à sua frente.
Ouviu o bater das palmas,
mas não olhou.
Só quando ouviu aquela
voz aveludada é que quase se levantou de rompante.
Maria do Rosário, ou
fosse quem ela fosse, cantava à sua frente. Os mesmos caracóis dourados sobre
as costas nuas que o vestido preto deixava antever, os lábios vermelhos e no
cabelo, uma rosa cor de sangue.
E ela cantava e contava
uma história de amor mal-aventurado, uma severa cujo amor entregara a um homem
cruel e sem moral, mas que mesmo assim ainda sonhava mudá-lo com a força do que
sentia… a sua história, a história que lhe contara.
O que significava tudo
aquilo?
Haveria de haver uma
explicação. Viu-a sair do palco para se dirigir a uma mesa do outro lado da
ampla sala. Segui-a e quando quase a acercava, ouviu a voz do homem que a
esperava:
- Cantas sempre
divinamente, meu amor.
O seu riso, ainda para
ele desconhecido, brotou cristalino de dentro da fina garganta de Maria.
- Meu amor, minha paixão,
meu querido futuro marido, de divino eu nada tenho.
- Eu sei e por isso te
amo ainda com mais loucura. Que história para mim caçaste hoje, meu pequeno
demónio? Diz-me. Mal posso esperar. Quase não me contenho. – E o homem
abraçou-a possessivamente, sentando-a no seu colo.
- Que tal uma com um
jovem pároco, tenro como um cordeiro?
E riram ambos em sonoras
gargalhadas.
Raimundo já saía porta
fora em busca de ar fresco, algo que o fizesse voltar a sentir os pés no chão,
naquele remoinho de raiva, vergonha, medo, tudo o que invadia em catadupa o seu
coração destroçado.
Pensou nas piores
loucuras, mas rapidamente as abandonou.
Entrou num botequim e
bebeu. Pensou no que os seus amigos foliões que haviam dito: que tudo parece
mais fácil depois de uns bons copos de cachaça…
As meninas, adivinhando
carne fresca, rodearam-no, pensando que talvez aquela noite e aquela vida fosse
mais feliz com um rapagão tão bonito. E
o levaram para um dos seus quartinhos.
Uma a uma, foram cuidando
daquele coração de bater tão ingénuo, entre beijos e caricias, entre risos e
suspiros, num inebriante frenesim. Raimundo sentia-se revigorado pela manhã.
Jurou a Deus e ao Diabo não mais se apaixonar tão estupidamente e apagou todas
as capelas e igrejas do seu itinerário.
A vida era frívola e bela
e ele queria vivê-la, sorvê-la até ao último trago.
Mas cada corpo de mocinha
que dedilhava o lembrava da textura da pele de Maria. Na verdade, todas as
vezes que amava, era Maria do seu Rosário, que revisitava.
Sentia que o demónio ria
do seu juramento.
- Seria Deus a resposta?
– Pensou, enquanto caminhava pela rua que levava à capela da Nossa Senhora dos
Aflitos, repleta de transeuntes, de turistas, de vendedores de rua, de
automóveis e das suas buzinas, e dos elétricos deslizando nos seus eixos
metálicos.
Sabia o que o demo de si
esperava, mas o tormento de eternamente amar a Maria do Rosário que idealizara,
tão diferente da verdadeira, apresentava-se como um sofrimento demasiado penoso
para uma alma como a sua.
Lembrou-se da paz em que
vivera na sua juventude, antes das tentações dos paraísos demoníacos.
E quis regressar.
Correu a passos largos,
mas agora decididos para a igreja matriz. Iria ingressar no seminário e aceitar
os votos eclesiásticos. Era o que o mais faria feliz a longo prazo, pensava.
Corria pelo passeio,
entre as pessoas, e rodeando os edifícios que invadiam a estrada.
Não o viu, o automóvel
que o colheu.
Viu-se deitado no asfalto
agora escarlate e a sua pele tão branca. E ele lá do alto, viu o horror
daqueles que ali chegavam e o desatino incrédulo do condutor. Viu até não mais
se importar e virar o rosto para o alto.
Ouviu duas vozes
distantes que conversavam entre elas:
- Dizes-me a razão? Não
entendi esta safra, meu grande amigo.
- Com males menores,
evito grandes tragédias. Seria a perdição de muitas beatas…. e já cá temos tão
poucas almas…
Lá em cima era esperado.
Deus e o Demo, irmãos na
criação do mundo, duas faces da mesma moeda, o aguardavam de braços abertos.
Capítulo 4
Fernanda Simões
.
Maria
Dias passados do acidente
em que Raimundo partiu para uma outra vida, Maria, ao contrário do que lhe era
habitual, andava curiosa de saber do jovem lindo, inexperiente, doce. Seu
último objecto de sedução... Maria do Rosário ou muito simplesmente Maria, logo
decidiu visitar o jovem "padre", como Raimundo gostava de parecer,
até por questão de defesa relativamente às mulheres que tanto o intimidavam.
Foi uma e outra vez à Igreja onde sabia poder encontrá-lo e nem vislumbre de
Raimundo. Repetiu a visita na semana seguinte e a ausência do jovem era
notória. Cada vez mais se empolgava na sua procura, já num misto de ansiedade e
suspeição...
Uma noite, após a sua
actuação no restaurante tradicional, indo ao encontro de Joaquim que sempre a
esperava na mesma mesa, ouviu alguém ao lado, perguntar ao doutor o que
acontecera ao jovem que dias antes fora atropelado à saída do Bar do outro lado
da rua. Joaquim ficara a saber que falava com o individuo que chamara o socorro
e logo depois desaparecera no meio da multidão de curiosos que ali se juntara e
lembrando-se do caso recente, informou-o que o jovem chegara ao hospital já sem
vida. E segundo constava afirmado por um enfermeiro que o conhecia desde os
bancos de escola, era alguém que estava hesitante entre a vida mundana e o
recato do sacerdócio... Maria quase saltou do colo de Joaquim em que se
enlaçara. A sua cara cheia de espanto ficou lívida, o que deixou Joaquim
preocupado. Rapidamente, Maria trémula, sussurrou-lhe que tal jovem fora o que
ela havia seduzido há dias, no chão da Igreja que invadira. Tendo reparado nele
numa das ruas paralelas ao seu local de trabalho, e achando-o homem
interessante, começou a segui-lo e logo engendrou um plano para o usar a seu
bel-prazer, aproveitando-se da ingenuidade e bonomia do jovem, para engrossar a
lista já extensa de suas conquistas demoníacas. Também para gáudio de Joaquim a
quem, estes contos e enredos de sedução e mistério, proporcionados pela sua
companheira, o deixavam em ponto de rebuçado para os encontros de alcova com
ela. Diziam ambos que o prazer lhes resultava em dobro. Excitação total Mas
nunca nenhum outro - peça de caça - poder-se-á assim entender, a havia tocado
ao ponto de querer revê-lo. Não sabia porquê, para quê, nem como seria
recebida, mas arriscaria!
Oh... agora não, já não
iria. Não poderia inverter o sentido dos nefastos acontecimentos - Intuíra, de
imediato, que o triste caso estava ligado ao seu acto, de excentricidade
malévola. Um sentimento de desespero, de dor, a preencheu de imediato. Caiu
desfalecida nos braços de Joaquim. Maria do Rosário fora uma menina
desafortunada pelo destino. Seus pais ainda jovens pereceram num grave acidente
de automóvel, que apanhou todos de surpresa (como sempre acontece). Maria foi
surpreendida numa fase ainda muito precoce dos seus afectos. Filha única de
pais algo abastados era muito mimada em casa. Tê-los perdido foi como lhe
"tirarem o tapete debaixo dos pés". Acolheu-a uma irmã da mãe, que
casada e sem possibilidade de gerar, prontamente a acolheu e amou como sendo
sua. Os mimos vieram em dose redobrada e o ego de Maria ia aumentando com o seu
crescimento: Os tios não lhe poupavam elogios, que ela se habituou a aceitar e
guardar como verdades absolutas. A sua autoestima tornou-a muito vaidosa. E
sendo a vaidade o caminho mais curto para o paraíso da satisfação, procurou
aplauso… foi crescendo, fez-se mulher de poucas virtudes e muita arrogância e
convencimentos. Achou-se no direito de jogar com os sentimentos alheios e aos
homens que para ela olhassem com alguma insistência, ou não olhassem de todo,
decidia de imediato que os haveria de ter todos ali, a seus pés. Com jogos e
submissões aparentes, agindo com todo o seu glamour; assumiu-se uma pessoa
fria, sem alma: destrutiva! Facto aproveitado pelo seu companheiro, a quem
verdadeiramente amava, que premiava os seus actos diabólicos com momentos de
enorme prazer, que ambos desfrutavam até ao êxtase. De certo modo, este
comportamento era apoiado e incentivado por Joaquim que estranhamente não
mostrava sentir ciúmes. Pelo contrário, promovia em Maria uma tendência, embora
veladamente, de melhorar cada ocasião de conquista fútil. A nossa mente é algo
misteriosa relativamente ao que nos respeita, mas muito em actos ligados ao
amor, já que este sentimento é o impulsor de nossas breves Vidas! Tanto nos
poderá tornar no delicioso par Romeu/Julieta como nos monstros que foram
Bonnie/Clyde...
Joaquim preocupava-se com
o estado psíquico de Maria, que não recuperava do choque causado pela notícia
abrupta do acidente mortal de Raimundo... como médico, dera-lhe alguma
assistência, mas logo depois recorreu a um colega do foro psiquiátrico para que
a ajudasse. Maria que vivia em casa de Joaquim, lá continuou, após pequena
estadia no Hospital local. Agora sob alguma vigilância de uma enfermeira da
área de psiquiatria, recomendada pelo colega de Joaquim: a jovem Lili, mulher
doce e profissional competente, zelava pela boa recuperação da enferma.
Tratava-a do corpo, mas também lhe tentava amaciar a alma. Grande parte do dia,
Maria mostrava-se alternadamente ora apática ora agreste... para com Lili, para
com o psiquiatra, mas sobretudo para com Joaquim, que silenciava lentamente o
ardor da paixão que sentira pela amada, talvez por saber-se em grande parte
culpado e por perceber em Maria o apagar lento da chama. Perdera todo o seu
encanto, evidenciando agora um desinteresse por muito do que a havia motivado.
Antes queria sim, encerrar a página deste seu percurso de vida atribulada. A
pouca credibilidade que formara relativamente à Igreja parecia agora
transformar-se aos poucos no seu suporte para tentar reaver a sua sanidade
mental.
Um dia de sol bem
luminoso Maria regressa a sua casa. Há muito que não a habitava - Desde o
início do seu romance com Joaquim. Era necessário arejar salas, quartos,
arrumar roupas e ideias também, colorir o enorme jardim, agora com aspecto algo
abandonado, e que havia proporcionado alguma alegria à sua ainda curta Vida.
Começava a sentir-se em paz. Sozinha e possuída de uma calma inusitada, estava
agora centrado no seu principal objectivo. A sua casa, casa que fora dos seus
pais e onde chegara a viver com sua tia, pouco antes desta partir. Joaquim
começara a ser uma neblina no seu percurso. Perdera já o fulgor que por ele
sentira anos atrás, quando o conhecera na casa de fados. Era agora algo que
tinha de ser acomodado bem no fundo do seu coração para que a paz de espírito,
que adquiria, fosse mantida. O tempo passava e Maria percebia-se em transformação
pessoal. Perdia vaidade, porque esta não convivia bem com os actos de
solidariedade a que se entregara piamente. Quem sabe, talvez Raimundo
procurasse, do lugar em que agora se encontrava, trazê-la ao bom caminho,
tornando-a mulher virtuosa.
Capítulo 5
Luísa Vaz Tavares
Joaquim
Sempre soubera que Maria
era fraca, mas que o caso do jovem padre a fosse afectar daquela maneira,
jamais imaginara. Afinal, já tinham sido tantos os incautos a cair na sua
excentricidade aparentemente maléfica… é certo que, possivelmente, nenhum outro
chegara a saber o verdadeiro propósito do assédio de que tinha sido alvo,
porque assédios verdadeiramente não eram, mas que raio, não era caso para se
desesperar até à morte. E Maria, também porque é que tinha de tomar as dores do
rapaz? Se o tivesse esquecido, como havia feito com os outros, não tinha sabido
do acidente e consequente morte e tudo teria continuado na mesma: ela a caçar
presas durante o dia, para à noite, os dois se deleitarem com os seus segredos
de alcova.
Agora, da jovem fogosa e
apaixonada, nada mais restava que os pequenos resquícios de beleza que ainda
vislumbrava naquele corpo magro, quando às escondidas a vigiava. Sabia que ela
não o queria ver mais, mas ele sentia essa necessidade, como uma obrigação.
Quando a conhecera era tão jovem, tão inexperiente das coisas da vida, que só
aquele palco e o xaile no gingar do microfone podiam tê-lo levado ao engano.
Talvez a culpa de tudo aquilo, de toda a situação por que Maria passava agora,
fosse dele. Incentivara a frieza e a ausência de carácter, que logo lhe
reconhecera, em proveito próprio, sem sequer se preocupar com os danos que toda
aquela clandestinidade poderia provocar numa mente de estrutura frágil.
Por isso a ajudou, para
expurgar a culpa que ainda não tinha a certeza se sentia. Procurou ajuda
profissional e deixou-a continuar em sua casa. Antes não o tivesse feito!
Lili, com a sua postura
arejada e jeito falsamente meigo de ser, fê-lo apaixonar-se. Em pouco tempo,
absorveu toda a sua atenção e disponibilidade para se dedicar a outra pessoa.
Os olhares, os toques inusitados, as palavras quase codificadas… tudo isso,
Maria observava com um sofrimento profundo. Até que um dia, fingiu estar bem e
foi para a casa que herdara. Sim, Joaquim tinha a certeza de que Maria fingira.
Ninguém muda de um dia
para o outro o que lhe foi cimentado desde a raiz. Maria até poderia iludir-se
a si própria, convencer-se que era capaz de enveredar pelo caminho altruísta
que planeava com extremo afinco, mas um dia viria em que a construção
desmoronaria. Porque ela não era assim, ela não tinha sido feita assim. Ela
tinha sido feita para ser servida e não para servir. E nesse dia, ele tinha de
lá estar. Já que não tinha estado quando Maria pedira socorro, em silêncio.
Envolvera-se numa paixão
maldita que o cegara por completo. Paixão essa que ainda o consumia…, mas já
não lhe tirava a lucidez, como acontecera até então.
Lili era o demónio em
forma de mulher. Mulher sensual é verdade, mas demoníaca na mesma proporção. Enfeitiçara-o
com o prazer da carne e ainda mais com o delírio da mente, nas alvoradas em que
juntos ascendiam aos céus. Durante dias e principalmente noites fizera-o
esquecer Maria, a sua doença e a sua necessidade de protecção. Quando por
momentos a lembrava e tentava chamar a atenção de Lili para o facto de Maria se
encontrar no quarto ao lado, esta logo o tranquilizava com a maior desfaçatez,
dizendo que passara por lá antes de vir ao encontro dele e que a coitadinha
dormia o sono dos anjos. De seguida enrolava-o em luxúria e de imediato,
Joaquim entrava na rota do torpor em que vivia por aqueles dias.
Até ao momento em que, a
altas horas de uma madrugada, num esgueirar de olhos se viu confrontado com a
expressão desesperada de Maria, pela porta entreaberta. Olhou para Lili e viu o
riso pérfido soltar-se-lhe em sonoras gargalhadas. Percebeu, naquele instante,
o que Lili tinha andado a fazer: usara-o para enlouquecer Maria, pois sabia que
Maria o amava. O pior é que também ele já a amava irremediavelmente a ela:
Lili!
Maria ainda ficou mais
uns dias em casa de Joaquim, depois de ele mandar Lili embora, mas quando saiu
foi para não mais voltar.
Estranhamente, ou talvez
não, Joaquim começou a preocupar-se com Maria, por entremeio aos sonhos
acordados e adormecidos que tinha com Lili. E o seu tempo tornou-se algo sem
nexo, que o atormentava cada vez mais. Entre as idas e vindas do hospital,
vigiava Maria, mas não procurava Lili. Ainda não percebia o porquê do seu
comportamento, mas naquele momento, nem o seu próprio compreendia.
No entanto, mais cedo do
que previra, veio o esclarecimento. Lili esperava-o, no consultório, numa manhã
ao chegar para trabalhar.
- Bom dia, meu amor!
- O que é que fazes aqui?
- Então, não gostaste da
surpresa? - Lili exibia um sorriso irónico - Não tens vontade de recordar os
velhos tempos? Oh, que pena… tinha umas coisinhas para te sussurrar ao ouvido.
- Lili, sai daqui!
- Já? Mas ainda não te
disse o que vim cá fazer.
- Não quero saber, sai!
- Pensei que me amavas…
- O que é que isso
interessa? Tu não me amaste.
- Hum, hum… aí é que tu
te enganas. Interessa e muito! É aborrecido sentirmos na pele o mal que fizemos
aos outros, não é?
- Mas tu enlouqueceste ou
quê? Do que é que estás para aí a falar?
- Do futuro padre…
Raimundo. Lembras-te?
- Esse é o padre que
morreu em consequência de um atropelamento.
- Que tu e ela mataram,
queres tu dizer!
- O quê? Mas onde raio
foste buscar essa ideia?!
- Eu sei de tudo,
Joaquim. Sei que ela, a tua amiguinha, fez com que ele se apaixonasse e os dois
esfregaram-lhe na cara o gozo de que tinha sido alvo.
- Isso não faz com que
tenhamos tido alguma coisa a ver com a sua morte.
- É como se o tivessem
matado com as próprias mãos, não vês?
- Não, não vejo…, mas o
que é tu tens a ver com isso? Amava-lo?
- Amar? – Lili soltou a
sonora gargalhada, aquela que ele tão bem conhecia. – Ó meu querido, amar é
para os fracos.
- Então… não entendo…
- O Raimundo era de uma
família riquíssima. Essa riqueza ia ser toda minha… se aquela… se tu e aquela
cabra não tivessem estragado o meu plano.
- Ele era padre.
- Quase padre! Ainda não
era padre, nem nunca seria. Estava quase a fazê-lo desistir da ideia, quando
ela apareceu.
Joaquim, atónito com tais
revelações, deixou-se cair na cadeira atrás da secretária.
Mas Lili ainda não tinha
terminado e aproximou-se, olhando-o no fundo dos olhos.
- É claro que já relatei
os acontecimentos à polícia, numa versão cheia de pormenores bem requintados.
Afinal, manipulação é rotina para mim, como tu bem sabes!
Joaquim levantou-se
rapidamente da cadeira para tentar agarrar Lili, que saía apressada, com um
sorriso no rosto, mas foi interrompido pela recepcionista:
- Sr. Doutor, estão ali
dois agentes da polícia judiciária que querem falar consigo.
- Peça-lhes para
esperarem cinco minutos e depois mande-os entrar…
Naquele dia, as primeiras
páginas de todos os jornais vespertinos exibiam o mesmo título:
MÉDICO SUICIDOU-SE NA CASA DE BANHO
DO HOSPITAL
Capítulo
6
João
J. A. Madeira
Lili
Lili não amava ninguém. Não compreendia sequer a razão pela qual
deveria amar. Afinal, tanto quanto percebia, o amor não era mais que uma capa
para os ciúmes, o asco, a desconfiança, quantas vezes o ódio, que todos de
todos tinham. Não amava ninguém, sublinha-se. Mas procedia de modo a simular
amar toda a gente, e, por isso, ninguém havia que a não amasse. E esse feito,
conseguia-o facilmente pela indiferença, um quase desdém que pessoa alguma
destruía porque, simplesmente, não o detectava. Era dócil por feitio,
desprendida por qualidade, simpática e aparentemente submissa porque a ira
provoca rugas e ela gostava de se apaixonar por si. Parecia amar, desprezando.
E recolhia amor por parecer que amava. Tudo fazia ao contrário. Toda ela,
falsamente, se dava, até que as pessoas, conquistadas, se dessem. E ela pudesse
manipulá-las. Submetia-se às vontades dos outros ao ponto de deixarem de ver
que essas mesmas vontades, quando satisfeitas, já não eram delas, mas suas.
Conseguia, unicamente gostando de si, que todos dela gostassem e poder
assim odiá-los ainda mais. Era quase como se, logo à nascença, tivesse tirado
um curso de psicologia que lhe concedia o dom de funcionar com tudo do avesso.
Despercebidamente, baralhava e dava as cartas de um jogo cujas regras só ela
conhecia, ao ponto de serem seus os trunfos de naipes que só a sua mão faziam
triunfar.
As suas armas eram o seu corpo sedutor, a sua doçura no trato, o riso
fácil e o olhar mentiroso que, também ele, fazia crer a quem consigo se
cruzasse o contrário daquilo que habitualmente sentia. Que era nada. E, com
alguma modéstia, a este seu modo de jogar com as pessoas, nem sequer apelidava
de inteligente. Não. Era tão só uma habilidade intrínseca, nata, de saber
manobrá-las. E para a qual, sem sombra de dúvidas, muito contribuíra o seu
diploma de enfermeira na área da psiquiatria.
As mulheres eram as mais fáceis de anular. Porque, habitualmente, nem
necessitam de intervenção para que não se entendam. A inveja, os ciúmes, as
intrigas entre si acerca de outras obviamente ausentes, o desdém sobre o
penteado desta, que, “coitada, deve pensar que tem vinte anos”, o corte da saia
daquela, que, “desgraçada, vê-se mesmo que anda a oferecer-se”, a “lingerie”
comprada, apreciada e elogiada a outra, que, entre-dentes, “olha-me esta
putéfia, então mas comprou aquilo para mostrar a quem? Ao marido não é,
certamente”, derrotavam-nas à nascença. Quando isso não acontecia e urgia
eliminar a senhora em causa, vítima sabe-se lá se de depressões, desilusões ou
até a falta de outros “ões”, lá aparecia ela e o seu “simposium terapêutico”
que, além de soluções, lhe granjeava prestígio. Fora assim com Maria, “tomas
umas gotas disto, uns comprimidos daquilo e verás que melhoras”. Normalmente,
sendo essa a sua intenção, não melhoravam – tal como a Maria, ficavam todas um
pouco taralhoucas – mas também nunca ninguém a poderia acusar de crime algum.
Qualquer técnico de saúde sabe que o “Simpósium” existe para se poder receitar
o que, eventualmente, fará bem ao paciente. Se as reacções não são as
desejadas, paciência. Nem todos os corpos reagem do mesmo modo àquilo que lhes
dão. Não somos todos iguais, ora essa!
Era, portanto, fácil afastar do caminho as mulheres empecilhos quando
não se empecilhavam a si próprias.
Já com os homens a coisa piava mais fino. Mais unidos, mais cúmplices,
menos intriguistas, tornavam-se por vezes mais perigosos, acima de tudo por,
amiúde, serem mais papagaios e se porem a palrar sobre o que comeram sem nada
terem comido.
E ela era bela, sabia-o. Que queriam eles de si, nesse caso? Pois,
todos o mesmo. Só o modo de o conseguir diferia, ainda que sempre com a
promessa de amor a pender-lhes dos lábios, sem nunca entenderem, coitados, que
ela não amava ninguém. Assim conhecera Raimundo que a desejava como a Jesus nas
palhinhas deitado. Ela atiçava-o, espevitava-o, punha-o louco, e quando os
olhos já se lhe reviravam, a baba luzia e as mãos lhe procuravam o corpo como
ao náufrago em busca de jangada, então, só então, ela dizia-lhe que não, que
era pecado, ao que ele retorquia não fazer mal, não se importar. “Mas não
queres ser padre? Como vais tu conseguir lidar entre a profissão de fé e a fé
de que te entregue o que tanto anseias?”. E o homem definhava, tresloucava,
vivia com um pé na terra que não sentia e outro no céu onde (ainda) não estava.
Ainda hoje recordava, sorrindo, a confusão em que andaria o pobre diabo quando
se deu o desastre. Nunca lhe fora tão fácil fazer de um homem um perfeito
desastrado.
Depois veio o Joaquim. Bom, com esse cedera. Afinal, até mesmo uma
mulher que não ame ninguém tem as suas necessidades fisiológicas. Mas aí matava
não dois coelhos, como soe dizer-se, mas três – Ah, caçadora! – com uma só
cajadada. Saciava-se, saciava-o e ainda deixava Maria a efervescer de raiva ao
permitir-lhe que espreitasse pela porta entreaberta. Como foi feliz nessa
altura. O prazer na cama e o gozo atrás da porta. Quase não precisou de agir
para o aniquilar, as circunstâncias encarregaram-se de lhe ditar o destino.
Maria de um lado a azucrinar-lhe a cabeça e o desgraçado definitivamente
enfeitiçado por Lili, só poderia ter como consequência a decisão que então
tomou, ao saber que também ela tinha sido a causa do esfrangalhamento do
primeiro.
É que – é justo que se diga – as capacidades manipuladoras de Lili não
se cingiam ao corpo ou ao modo afável do trato. Note-se aqui o uso da palavra
“azucrinar”. Pois bem, era termo alheado do dicionário de Lili. Nunca maçava
fosse quem fosse, precisamente por desprezar toda a gente. Aquelas frases
sobejamente conhecidas, tipo “porque deixaste as meias em cima da torneira da
casa de banho e…pfff!, há quanto tempo andas com elas?”, ou “já tomaste o
comprimido das quatro e meia? Depois não te venhas queixar da azia”, ou “larga
lá a porcaria do futebol e chega aqui para eu te contar o que me disse hoje a
vizinha”, ou “deixa mas é as gajas do facebook e vê se pões a mesa que isto cá
em casa não há criadas”, essas frases, ou parecidas, nunca viriam de si para
moer o juízo de um homem. Porquê? Precisamente porque não amava ninguém e lhe
era indiferente tudo o que todos fizessem. E qual o membro do chamado sexo
forte que não fraqueja, não cede, perante uma mulher plena de amor (falso!, mas
isso só nós sabemos) que não lhe frita os miolos com coisas de meias e
comprimidos, vizinhas e “pores” de mesas? Quase apetece dizer que homem que não
se satisfaça com uma mulher assim, não é homem, nem é nada.
Por essa razão, por ver nela alguém que lhe respeitaria a liberdade
mesmo depois de casado, andava agora Alberto a dar à costa. Tipo machão, camisa
aberta a mostrar o fio de ouro que a mãe lhe dera – e assim ele não precisara
de roubar – aquando da última despedida da senhora, não parava de telefonar a
convidá-la para isto e para aquilo. Fazia-se muito romântico – uma voz melada,
pausada, sussurrada, como quando se muda a fralda borrada a bebés que berram –
mas ela já percebera a confusão que ele fazia entre Lili e “Pipi”, assediando
uma para conseguir chegar à outra. Só tinha um problema, coitado, facilmente se
lhe dava a volta. Há poucos dias telefonara-lhe para a convidar a irem ver a
reposição do filme “Love Story” de Arthur Hilley (o realizador só Lili sabia,
obviamente) e ela já estava a ver o “outro filme”: ele, no escuro do cinema, a
chegar-se a ela, a dizer-lhe ao ouvido que precisava da sua mão, que não podia
com aquelas injustiças do destino, que coitadinha da rapariga e tal com um
cancro e coisa, logo agora que lhe aparecera um gajo, e ele que até lhe vinham
as lágrimas aos olhos com tamanho castigo de Deus… Sim, seria tal e qual como pensava,
ou não fosse um dos segredos do seu sucesso a antecipação de cenas. Então
sugeriu que, em vez daquela, fossem ver uma outra reposição, “A Fúria do
Dragão” com Bruce Lee. Ele aceitou enternecido, desarmado com o gosto dela em
lhe agradar e, como calculara, nada aconteceu. O homem ficara de tal modo
agarrado à pancadaria, aos músculos e aos truques acrobáticos, remexendo-se na
cadeira e pontapeando a da frente, que se esquecera dela. Lili sabia
perfeitamente que todos os homens são assim. Ponha-se à frente dos olhos aquilo
de que gostam e rapidamente se esquecem daquilo que realmente queriam. Agora só
tinha de pensar como ia “tratar-lhe da saúde”. Tinha dinheiro, fruto de uma
qualquer missão no Afeganistão ou no Azerbaijão ou outro “ão” qualquer, cujo
nome tinha tatuado no braço onde dobrava a manga curta da camisa para que
melhor se visse. Mas não havia pressa.
Mas não se pense, apesar do insinuado no parágrafo anterior, que Lili
agia assim por dinheiro. Não! Ainda que, obviamente, se um casaco tem de ter
botões, melhor será que sejam de madrepérola que de latão ou cordel. E se o
puder ganhar com esperteza, antes isso que com trabalho. Não se transpira tanto
e a recompensa é quase sempre maior. Mas não era pelo dinheiro, não. Lili tinha
sobretudo prazer em sentir-se como uma bela flor a que toda a gente deita a
mão, mas que tardia e repentinamente a afasta, já com um dedo a menos por ser
carnívora a planta.
No entanto, este mundo é um conto a que a todo o instante se
acrescenta um ponto. E Lili, como qualquer pessoa, tem o dever de projectar o
futuro. E, por isso, reflecte. Não amando ninguém e sendo efémeros os que a
amam, que lhe reservará o destino baseado num passado com tão pouco que contar?
Sabe-se – sabem os narradores – que desposará, não já, mas daqui a uns
anos, um homem chamado J. Pinto Fernandes. Segundo consta, alguém ligado à
construção civil e familiar afastado de um tal J. Pimenta, cujo apelido – não o
apelido do fim, mas o do início (há códigos civis que, bem pagos, fornecem
apelidos onde se quiser) na primeira inicial do nome, mais snob por diferente –
cujo apelido, dizíamos, lhe abrirá portas à velhice que merece. Fiel à sua
linha de conduta, Lili não o amará. Não porque seja feio. O seu estrabismo e os
pêlos a evadirem-se pelas narinas até lhe dão um ar engraçado. E não tem os
dentes todos, mas quando ele lhe confessar que os substituirá por uns de ouro,
ela irá pensar em como partir-lhe os restantes. Para além disso, chama-se Pinto
e, os pintos, vêm a nós quando lhes damos comida e deixam-nos em paz quando
nada lhes damos. Nunca ela lhe confessará que não o ama, mas exigirá dele o
amor, quanto baste, que obrigatoriamente ele lhe terá de dar. Só assim se
consolidam os matrimónios. Assim, ou numas idas ao dentista para que removam os
dentes postos, porque mesmo de ouro, há próteses que não encaixam bem. Cereja
em cima do bolo, verá nele uma enorme qualidade – lida em tempos idos num livro
antigo – nunca encontrada em homem algum. A de ter inteligência suficiente para
reconhecer que é estúpido. Quem sabe – desconhecemos sempre o que a idade nos
reserva – se não conseguirá amá-lo um bocadinho por isso?
Capítulo 7
Grégor Carlos Marcondes
Alberto
Alberto era uma criatura
complexa por excelência. Seu corpanzil avantajado, seus mais de 1.90 de altura
e sua fisionomia sempre cascuda lançavam a todos a falsa ideia de que era um
machão saído de um filme de ação dos anos 80. Contudo, se o virassem do avesso
poderia se ver com nitidez o quanto era sensível, confuso e inseguro. Além
disso, detinha um coração bipolar e que despencava no colo da paixão com
extrema facilidade. O menor sinal de afeto da parte contrária, ainda que apenas
imaginada por ele, era suficiente para arrastá-lo a um mundo quente de amor e
sonhos primaveris.
Porém, a situação se
agravara mesmo nos últimos meses, quando conseguiu alcançar a façanha de amar
duas mulheres ao mesmo tempo, fazendo Vênus orgulhosa de seu trabalho.
A primeira a despertar
esse amor ambíguo foi Lili, uma mulher de feições nobres e sorriso
desconcertante. Foi amor assim que
grudou os olhos nela pela primeira vez. O fato aconteceu dentro de uma livraria
de esquina e, por mais incrível que possa parecer, foi ela quem puxou assunto
dando início ao cataclisma romântico. Talvez tivesse achado curioso o fato de
um homem com trejeitos tão rudes estar lendo poesia. Alberto ficou inebriado
enquanto Lili falava. Sua voz era suave e seus lábios delicados guardavam
harmonia com os traços sutis do rosto que, por sua vez, parecia ter sido
desenhado por um artista perfeccionista até a alma. A conversa não alcançou o
quinto minuto, mas esse instante vertiginoso foi suficiente para plantar, regar
e fazer florescer a semente de uma paixão pueril no terreno fértil do coração
de Alberto. Antes de ir embora, além de deixar seu contato, Lili elogiou a
corrente de ouro que Alberto usava. “Foi presente da mamãe!” – disse orgulhoso,
sem perceber a ironia do elogio.
A verdade é que Lili não
se interessava por ele, nem um cêntimo. Achava-o entediante a maior parte do
tempo e ria dele sem que esse percebesse. Mesmo assim, o mantinha por perto,
dando pequenas doses de atenção, aqui e ali, só para não perder o costume e
lustrar seu ego inflamado. Lili tinha um jeito meigo e parecia ostentar uma
cândida inocência. Era educada e transparecia gostar de todo mundo, porém, eram
todos manipulados a seu bel prazer e Alberto foi um alvo fácil. Seu coração um
tanto ingênuo acreditava verdadeiramente que Lili era a melhor pessoa do mundo
e a mulher certa para se casar e ter filhos. Ela representava um amor inocente,
juvenil e romantizado que ele ainda acreditava.
Todavia, ainda havia o
outro lado do coração. Esse encontrava-se ocupado por Elvira. Mulher madura, de
feições sinceras, olhos negros e coxas bem torneadas e esbeltas. Alberto não
sabia dizer o quão mais velha que ele ela era, mas o ar de mulher feita
deixava-o caído de joelhos por ela. Elvira se mudara há poucos meses em uma
antiga casa a apenas uma quadra de Alberto. Começaram a conversar depois que
ele se ofereceu para descarregar as compras de Elvira numa tarde ensolarada de
sábado. De lá para cá as conversas só aumentaram. Chegaram até a combinar um
cinema, que nunca aconteceu. Mas, foi em uma visita despretensiosa que tudo
começou a ganhar forma e cheiro. Num dia preguiçoso, Alberto estava indo fazer
compras no mercado municipal quando passou pela frente da casa de Elvira. Teve
a ideia de convidá-la para ir junto. Ela abriu a porta com uma toalha de banho
enrolada no corpo.
- Desculpa, estava indo
tomar banho quando você tocou a campainha.
- Então sou eu quem tem
que pedir desculpas. Eu só estava indo no mercado municipal e pensei em convidá-la,
caso precisasse comprar alguma coisa.
- Claro! Preciso comprar
verduras. Entre e me espere, tomo banho rápido!
Alberto entrou e sentou
no sofá da sala. A casa era pequena, porém, aconchegante. Havia quadros por toda
a parte. Depois de uns minutos sentado, começou a imaginar Elvira nua tomando
banho. Sua consciência logo pesou, pois parecia estar traindo Lili, ou melhor,
seus sentimentos por ela. Então, de repente, ouviu a voz de Elvira atravessar
os corredores:
- Alberto. Poderia vir
até aqui? Preciso que me alcance uma coisa.
Ele foi até a porta que
estava entreaberta e timidamente perguntou do lado de fora o que ela queria.
- Esqueci de pegar meu
shampoo. Poderia pegar ele para mim? É o de tampa vermelha, está no criado-mudo
de meu quarto. A porta à sua frente.
Alberto disse que sim com
a voz claudicante e foi até ao quarto. Pegou o shampoo e bateu com o nó dos
dedos na porta. Escutou a voz de Elvira dizendo:
- Pode entrar e me
alcançar. – Alberto hesitou no começo. Mas, acabou entrando todo envergonhado.
Entretanto, seus olhos esbarraram no corpo ensaboado de Elvira deitada numa
banheira de azulejos brancos. Ela esticou o braço direito em direção dele para
pegar o shampoo e deixou à mostra parte de seus seios morenos que Alberto fitou
instintivamente. Depois, os olhares dos dois se encontraram e um silêncio se
fez presente por alguns segundos, até Elvira, com a voz quase sussurrada, lhe
perguntar:
- Gostou de meus seios?
Você quer tocá-los?
Essa foi a porta de
entrada para Alberto mergulhar de cabeça na paixão e também no corpo de Elvira.
Naquela tarde, os dois tomaram banho juntos. Se ensaboaram e fizeram amor entre
espumas e gemidos. Alberto estava entregue ao amor e ao torpor. Porém, esse
amor era diferente daquele que sentia por Lili. O sentimento pela primeira era
pueril e cândido, parecido com aqueles muito bem narrados nos romances de
época, repleto de melodrama e sentimentalismo fantástico. Um amor platônico por
uma musa que ele sequer havia tocado.
Com Elvira era diferente.
Seu sentimento era carnal, voraz e bruto. Ele amava-a dos pés à cabeça. Amava
seu cheiro. Seu corpo e suas curvas. Amava seus beijos e seus gemidos. Mas, até
quando iria conviver com dois amores assim?
A verdade é que os
encontros com Elvira estavam mais corriqueiros. Visitava sua casa com
frequência. Lá, entre goles de chá e doses de conhaque, conversavam sobre tudo
e depois faziam amor loucamente. Mesmo assim, Alberto sentia que ela não era
dele. Na verdade Elvira não pertencia a ninguém. Por isso se mudava
constantemente de casa. Era como o vento, passando por vários lugares sem se
deter em nenhum. Um dia, deixou escapar que gostara de uma tal Leonor. Alberto
se sentiu enciumado, mesmo sem saber se essa fulana de tal pertencia apenas ao
passado ou se ainda se ainda existia no presente.
Talvez fosse por isso que
Alberto nunca deixou de cortejar Lili e de pensar nela, com o coração quente,
quase toda noite antes de dormir. Chegou a ir com ela ao cinema uma ou duas
vezes. Não aconteceu nada demais, na verdade, do ponto de vista de Lili esses
encontros foram um verdadeiro fracasso. Mas, isso não desanimava o frêmito
coração de Alberto que acreditava inocentemente estar ganhando terreno no campo
dos sentimentos dessa. Contudo, ele estava para levar um grande baque. Ou
melhor, dois.
O primeiro aconteceu num
domingo pela tarde. Estava voltando pra casa quando um menino que morava na
esquina lhe entregou em mãos uma carta dizendo que era da mulher da casa azul
debaixo. Era Elvira. Ele abriu a carta e leu em tintas pretas:
“Estou indo embora como
sempre, para sempre. Não me leve a mal nem me odeie por isso. Vou lembrar de
você com carinho, mas preciso partir. Meu coração não pertence a esse lugar.
Felicidades, Elvira”.
Um bilhete curto e em poucas
palavras, metade do coração de Alberto estava destruído. Contudo, ainda havia a
outra metade para se quebrar. Depois de dois meses sem Elvira, Alberto focou
todos seus esforços em conquistar definitivamente um lugar no peito de Lili.
Ligava constantemente. Enviava flores. Chocolates. Livros. E, quando finalmente
achou que estava perto de conquistá-la de verdade, teve seus sonhos desfeitos
pela ventania da realidade. Passeava taciturno pela cidade quando, por um
feitiço do acaso, se deparou com Lili aos beijos e amassos com outro homem à
porta do cinema. Não conhecia o sujeito e nem gostaria de conhecê-lo. Apenas o
invejou por ter conseguido a dádiva de beijar os lábios então sagrados de Lili.
Era o golpe final nas suas infantis esperanças. Estava perdido. Se sentia
traído. E ainda por cima tinha que extirpar duas mulheres do coração. Se
esquecer uma já era difícil, imagina duas?
Os meses que se passaram
foram terrivelmente angustiantes. Alberto se fechou cada vez mais dentro de si.
Parou com os telefonemas e os presentes. Lili achou estranho, mesmo assim ele
nunca contou para ela o que viu e o afastamento foi natural. Aos poucos,
começou a recuperar-se. Todavia, havia jurado para si mesmo que não se
apaixonaria mais tão facilmente. Endureceria seu coração e não cairia mais em
encantos fugazes. Estava decidido a viver a vida toda sozinho se assim fosse
necessário.
E foi nesse estado de
espírito que Alberto saíra da casa naquela tarde. Já estava voltando quando uma
voz feminina o interpelou.
- Moço, você sabe onde
ficava esse hostel?
Ele olhou para a dona
daquela voz enquanto ela apontava para um nome num pedaço de papel amassado.
Logo se encantou com aquele rosto angelical e seu sorriso cândido que lembrava
em muito o da Lili. A moça – uma morena de cabelos longos e lisos e o pescoço
de cisne – insistiu na pergunta. Ele disse que sim, mas não fazia ideia onde
ficava aquele lugar.
- Você poderia me mostrar
onde fica?
- Posso acompanhar você
até lá. A propósito. Meu nome é Alberto.
- Desculpa. Não me
apresentei. Sou Tahila Mendy.
E foi assim que ele
conheceu Tahila. Uma indiana muçulmana que havia fugido do país para escapar de
um casamento arranjado com um homem que detestara. Foi só ela começar a falar
que as promessas de Alberto de nunca mais se apaixonar se dissiparam pouco a
pouco. É como se estivesse se apaixonando pela primeira vez. Os dois fizeram
amizade logo e ela também parecia gostar dele.
Quando começaram a falar
sobre algo mais íntimo Tahila lhe disse que era um erro ele gostar dela, pois
ela carregava uma série de problemas, que iam do jurídico ao psicológico. Mas,
ele não se importou e os dois começaram um improvável namoro que durou pouco.
Isso porque resolveram se casar com apenas dois meses de relacionamento. Ele
tinha certeza, pela centésima vez, que havia encontrado a mulher da vida dele e
que jamais amaria alguém como amava Tahila
- Meu pai e o pretendente
que ele arrumou para mim ainda devem estar me procurando. Temos que casar
escondidos. – Disse Tahila aflita. “Minha mãe, uma católica fervorosa, não ia
gostar nada de me ver casando com uma muçulmana” – pensou ele em silêncio. “Eu
caso primeiro e depois conto pra ela”. Completou em pensamento.
E foi assim que Alberto e
Tahila, que nem na história estava, se casaram secretamente e passaram a lua de
mel escondidos debaixo de uma árvore qualquer perdida quase às margens do Rio
Tejo. Não importa quantas Alberto amara e quantas poderia amar, aquele momento
era só deles e de mais ninguém e a única coisa que desejavam é que ele não
acabasse tão logo.
Capítulo 8
Bartolomeu Frederico
Elvira
-
Passport please!
Depois
de recolher a escassa bagagem e cumprir as rigorosas e intermináveis
formalidades de entrada no país, Elvira abandonou o Aeroporto Internacional de
Lhasa. A esperá-la no exterior, encontrava-se o guia que iria acompanhá-la
durante os 8 dias que duraria a visita.
Sem
prestar grande atenção ao rapaz e ao movimento frenético que a rodeava, quase
desprezando a oferta da tradicional Kha-Tag, atirou-se literalmente para o
interior do táxi que os aguardava rumo à cidade, capital do Tibete.
Depois
de acomodada no banco traseiro, o guia, sentado ao lado do motorista, indicou -
Shangri-La Lhasa Hotel.
Mal acabou de se instalar no quarto que tinha
reservado, Elvira deixou que o seu corpo se entregasse de forma abandonada a um
longo e relaxante banho de imersão.
Antes
mesmo de desfazer por completo a sua bagagem, vestiu-se e decidiu sair para um
pequeno passeio.
De
novo na rua, e acompanhada do guia que se desfazia em mesuras, dedicou-se a
admirar os tradicionais edifícios, deixando-se aos poucos envolver naquela
atmosfera estranha, impregnada de cores, tradições e aromas.
Sem
notar, os passos de ambos levaram-nos até junto do Palácio Potala, onde o guia,
sempre excedendo-se em simpatia, a convidou a descansar um pouco enquanto
esperavam pelo pôr-do-Sol, espetáculo que garantia ser único no mundo.
Não
ficou desiludida, o momento foi mágico, algo a que nunca tinha assistido e que
sentiu desejo de que viesse a repetir-se todos os restantes dias da sua vida.
Agradeceu ao guia e retomaram o passeio.
Enquanto
absorvia e se deixava absorver, absolutamente deslumbrada, por aquele
incomensurável e grandioso espetáculo que a cercava, começou lentamente a
recordar os últimos acontecimentos, e tudo o que a tinha levado a iniciar uma
abrupta e radical mudança de vida.
Na
verdade, toda a sua vida, desde que se conhecia, decorrera a um ritmo
alucinante. Os acontecimentos que marcaram todos os momentos importantes da sua
existência revestiam-se tanto de imprevisibilidade como de inconstância, de
alguma frivolidade e de completa falta de programação. O acaso e o caos regiam
a sua vida desde o dia em que nasceu, moldando-lhe um caráter pragmático,
desapegado das coisas mundanas, profano. O mesmo acaso e caos regeram também a
sua vida sentimental e amorosa, tendente exclusivamente para a obtenção do
prazer imediato, sem nunca estabelecer qualquer vínculo de afeto.
Passou-se
assim desde o fim da adolescência, quando a curiosidade a levou a descobrir o
prazer, através das carícias e do contacto físico com Leonor.
A
sua “irmã de leite” herdara da mãe uma aptidão excecional para a prática de
intimidades, as quais aperfeiçoava consigo própria e potenciava quando se
encontrava nos braços de Elvira, levando-a a atingir o êxtase e algo mais,
indefinível, indecifrável mas que não tinha o poder de a deixar confortável
consigo própria.
Com
a fase da juventude chegaram os contactos masculinos, efémeros, mas sempre
muito intensos. Contudo, aquele desconforto parecia não querer abandoná-la, por
mais homens que conhecesse e fingisse amar.
Certo
dia, já adulta e na posse da propriedade que herdara, decidiu abruptamente
tomar uma decisão radical: terminar de uma cutilada com a relação unicamente
sexual que mantinha com Alberto, o último protagonista das suas “maratonas”
sexuais e.… perder-se no mundo.
Vendera
uma enorme propriedade que possuía em Nelas e com a ajuda e aconselhamento do
seu gestor bancário, aplicara parte do produto da venda em ações que lhe
garantiam um rendimento muito confortável e a possibilidade de concretizar um
sonho antigo; viajar, conhecer países, culturas, paisagens. Era esta a sua
forma de entender a liberdade e de não estar sujeita a viver num espaço único e
a conhecer pessoas que esperavam dela sentimentos que não possuía.
Talvez
esta sua forma de ser estivesse relacionada com o modo como veio ao mundo e
como foi criada e educada até à idade adulta. Estes pensamentos fizeram-na
acordar e reavivar memórias, transportando-a a uma tenebrosa noite de trovoada
em que, muito abraçada a Leonor, a sua “irmã de leite”, recebera a revelação
acerca da forma como fora parar ao palacete de Mm Blanche.
Recordava
essa noite tenebrosa e as revelações que Leonor lhe fizera em modo de discurso
direto, como se ainda ouvisse nitidamente o som da sua voz entre-cortado pelo
ribombar dos trovões. Recordava o calor aconchegante do corpo de Leonor e o
sabor do entrelaçado das suas pernas nas dela. Na escuridão do quarto, quando a
trovoada se afastou e terminou o relato da história que Leonor ouvira contar a
sua mãe, sentiu uns lábios húmidos unirem-se voluptuosamente aos seus. Ainda
trémula, esperou pelo que viria em seguida. O que veio foi estranho, foi
estonteante, foi irrecusável, foi consentido e correspondido. Aquela noite,
gravada na sua mente e no seu corpo a vários fogos, repetiu-se com uma frequência
e uma intensidade indescritíveis. De súbito, e sem motivo estruturado, terminou
de forma tão abrupta como o ribombar do primeiro trovão da primeira noite.
Elvira
fora abandonada à nascença, à porta de um prostíbulo numa fria noite de
Dezembro decorria o ano 1970.
Quem
cometeu o terrível ato de abandono, premeditou que aquela seria a hora de maior
afluência ao local, pelo que, provavelmente não demoraria a ser encontrada.
Efetivamente, a pequena Elvira fora encontrada por um distinto senhor, que visitava
regularmente a casa de Mm Blanche, no preciso momento em que as suas cordas
vocais iniciaram um estrepitoso choro.
Quando
a dona do palacete - mulher garbosa já entrada na idade, mas ainda altiva,
detentora de uma personalidade férrea e um auto-domínio que os anos de
experiência no "ramo" lhe conferiam – abriu a porta, encontrou o seu
cliente habitual segurando um cesto de verga que transportava uma ternurenta
bebé.
Deu-se
um momento de estupefação e de indecisão, que fizeram Mm Blanche ficar como que
pregada à soleira da porta, de olhos muito abertos, fitando ora o Sr. Conde,
ora a pequena criança.
-
Então Mm Blanche, vai querer que a pobre criança enregele? Permite-nos que
entremos?
Como
que acordada à força de um pesadelo, Mm Blanche afastou-se dando passagem ao
Sr. Conde e à sua protegida.
-
Mas Sr. Conde, pode explicar-me o que se está a passar?
Sem
prestar atenção à pergunta formulada, o Conde do Monte a Nelas passou a
entrada, poisou o cestinho sobre uma poltrona e aliviou-se dos abafos que lhe
mantinham o já velho corpo aquecido. Depois, pegando a pequena Elvira nos
braços, chegou-a perto da luz mortiça de um aplique de parede e perguntou como
que afirmando; é linda, não é?!
Mm
Blanche, ainda insegura da situação, acercou-se um pouco mais e confirmou.
-
Sim, de facto é uma linda bebé. Mas, a quem pertence, Sr. Conde?
Lentamente
o velho conde virou-se, e de olhar penetrante e arguto concluiu:
-
Esperava que fosse a senhora a esclarecer-me essa questão. Não será obra de
alguma das suas “pupilas”?
-
Não estou a perceber a lógica da sua dúvida senhor conde, pelo facto de nos
encontrarmos numa casa de prostituição, não quer dizer que sejamos pessoas
desumanas, capazes de abandonar uma recém-nascida a um destino tão
desfavorável.
-
Bom, assim sendo, crendo na veracidade das suas palavras, tenho um enorme favor
a pedir-lhe.
-
Se estiver ao meu alcance, pode estar certo que atenderei ao seu pedido Sr.
Conde.
- Estará
certamente, Mm Blanche. Como poderá imaginar, ficar-lhe-ia muito grato se
tomasse a seu cargo a responsabilidade de criar esta menina. Estou certo que
lhe saberá proporcionar o conforto e educação apropriados.
-
E, para suportar todas as despesas com a alimentação e educação da pequena,
providenciarei amanhã mesmo com o meu advogado, o usufruto de uma das minhas
propriedades de Nelas, que será administrado por si e passará para a posse da
menina, logo que ela atinja a maioridade.
Perplexa
e sem reacção, Mm Blanche não ousa sequer contrariar a vontade do Sr. Conde.
Chama imediatamente uma das meninas e ordena-lhe que recolha a bebé, lhe dê
banho e procure com urgência uma ama que a amamente. Ao pegar no cestinho onde
Elvira fora encontrada, Mm Blanche descobre um pequeno papel onde um nome se
encontra garatujado: Elvira Clara das Neves.
Uma
hora depois, chega ao palacete de Mm Blanche, acompanhada por uma das
“meninas”, uma anafada e andrajosa mulher, transportando no colo uma bebé quase
a completar um ano de idade.
Mm
Blanche reconheceu-a de imediato. Tratava-se de uma antiga “funcionária” da
casa que um ano antes, tinha abandonado a profissão para se juntar com o
Zé-Naifas; um ladrãozeco de vielas que lhe prometera vida de princesa e lhe oferecera
fome e tareia sem parar, acabando por a abandonar, prenhe e sem poiso
minimamente decente onde pudesse criar o ser que lhe crescia no ventre.
Mm
Blanche recebeu-a com rispidez e clarificou logo ali, de uma penada, a
situação; precisava que amamentasse Elvira. Em troca, oferecia-lhe alimentação
e uma dependência no piso superior do palacete, quase nunca utilizada.
Zaldemira - era o nome da ex-rameira - aceitou a oferta de imediato sem
pestanejar. Quando já se encaminhava para a sua nova morada, Mm Blanche
perguntou-lhe o nome da criança que trazia ao colo.
-
Chama-se Leonor… é uma menina, linda como o Sol.
-
Miss Elvira ???
Como
que acordada de um sonho pelo chamamento, Elvira abriu os olhos. O Sol tinha
desaparecido por completo, restando no céu uma ténue névoa em tons
vermelho-sangue.
Levantou-se
com a ajuda do seu guia e dirigiram-se de novo ao hotel.
Nos
lábios de Elvira bailava um sorriso estranhamente luminoso que não passou
despercebido ao seu guia, levando-o a questiona-la se estaria tudo bem.
Elvira
alargou o sorriso e respondeu, como estando a responder a uma pergunta que
carregava desde que se conhecia: Estou ótima! Há poucos dias decidi abandonar a
vida que levava, as pessoas e os lugares que conhecia e… perder-me no mundo.
Percebo agora que afinal buscava encontrar-me comigo própria e com o mundo.
Este é o meu verdadeiro primeiro dia de vida. E abrindo os braços declarou bem
alto: Acabei de nascer! Sou eu, Elvira!
Elvira…
Capítulo 9
José Bessa
Leonor
pessoalmente.
E outros
pronomes.
TU:
Esperava-te
na sala de pilotos tricotando-te camisolas de malha enquanto fazias
voltas-de-pista contemplando aquele ponto móvel sempre previsível, tocou,
andou, subiu, voltou, tocou, andou, subiu, voltou, sempre à mesma altura do
horizonte, a mesma sombra reflectida no solo, o ronronar monótono do motor,
redondo, calmo, confiante, concorrendo com o tic-tic sistemático das agulhas
compridas, que, ponto após ponto, linha após linha, avançavam, hoje o peito,
amanhã a manga, depois a gola; e pensava como serias comigo na vida inteira.
Por
inteiro.
Depois
regressaste sorridente de mais um voo solo no ar laminado de Janeiro e eu,
antecipadamente doméstica, em espera mais uma tarde inteira,
Por
inteiro.
Tomei
conhecimento que tinhas combinado estudar com a Amélia navegação em regime de
voo nocturno, e desculpa não te ter avisado, esqueci-me completamente, mas tem
de ser, faremos viagem para a semana que vem…
Vem…
De
repente vejo que quem andava com a cabeça nas nuvens era eu, que, mesmo quando após
o baptismo abraçaste e beijaste calorosamente a colega de curso, vi na alegria
do momento a justificação para o ímpeto e a comunhão. Nada mais.
Sim… foi
melhor ires…
ELA:
Irmã. Foi
como a vi sempre para além das descobertas.
Quando no
liceu nos espiavam curiosos e admirados da intimidade constante, não
disfarçávamos. Ela viveu sempre comigo, irmã colaça, os brinquedos dela foram
os meus, os meus os dela, tudo-tudo mútuo.
Defendidas
pela madrinha de todas as movimentações alheias a uma família, vivemos com
aulas domésticas e outras mordomias pagas pelo sr. Conde até sermos crescidas.
Nunca desconfiamos se tínhamos algum grau de parentesco, nem isso tinha
qualquer importância. Mais tarde, aquela era uma casa especial para duas
adolescentes.
Éramos nós.
Temperamento
impetuoso, querer imenso, hoje nisto amanhã naquilo, mais tarde sabe-se lá;
dava-lhe, dá-lhe!, um poder de atracção que tem feito a vontade da sua vida.
E da
minha.
Se ela
tem pretendentes? Sim, vários, mas a sua independência leva-os a desistirem
passados os primeiros dias de deslumbramento. De todos voltou para mim.
Ela era
minha.
O único
caso com algum assunto foi o do Alberto, um bisonte sexual, carnal como ela,
espontâneo, uma débil inteligência encoberta num semblante grave. O Alberto,
dizia-vos, com que ela teve um calculado e esbraseado romance, terminou com um
papelito, sem comprometer nem sofrer, libertando-o na sua intenção de casar.
Conheci-o quando ela finalmente se mudou, eram vizinhos frescos, e ela não
descansou enquanto não o seduziu dominando-o. Até que um dia lhe falou de mim;
mudando-me o sexo!
Vejam.
Que ironia…
Depois,
voltou para mim. Voltou sempre.
E agora,
sem mais, este misterioso telegrama.
--/--
- Querida
mana.
- Vou
tornar-me monja aqui.
- O
advogado já transferiu todas as acções para a tua posse.
Despojo-me em ti.
-
Lembras-te quando te dizia que a crença era o esteio dos fracos?
- Não é!
- Um
beijo sempre. Amo-te.
--/--
NÓS:
Só com
ela atingi a desejada plenitude na compreensão dos meus afectos.
Cresceram
num lugar de especulativas liberdades e sensações onde nada, ou quase nada, era
constrangimento; dizia-nos o Pedro sem conhecimento de causa, mas adivinhando,
quando se sentia agredido pelas nossas intimidades.
Mas era a
ele que eu amava.
Nele via
a segurança, a alegria, a força, a desenvoltura que me faltava. Um companheiro,
um amigo.
Um
marido?
Não sei o
que é ser-se marido, mas era com ele que eu gostaria de passear de braço dado
no jardim da cidade, de comer um gelado no bar da praia, ir de férias para um
local exótico, quem sabe até, acampar.
É isso,
talvez ser-se marido seja ser compincha, como ouvi um dia dizer um cliente à
Mdme. Blanche «sabe o que me falta faz na minha mulher? É que ela seja
compincha.» E creio que é essa mutualidade que faz os casais felizes. A íntima
cumplicidade de ser compincha.
Não era
fácil a convivência em nós, enquanto o Pedro tinha em mim a posse, talvez
resultado de um reminiscente abandono inicial, era na Elvira que estava a minha
identidade, quase uterina, originária numa desordem de sentimentos que implodiu
a nossa amizade e demoliu planos futuros de vida conjunta.
Percebi
tardiamente que os triângulos têm demasiadas arestas.
VÓS:
E vós?...
ELES
Quando à
tardinha começam a entrar aureolados pela luz azul do candeeiro equidistante
aos dois ananases que ombreiam coloridos a porta de duas folhas, começa o dia.
Primeiro timidamente no bar, saboreando prolongadamente um cocktail, depois, já
sentados nos sofás, metendo conversa, desenhando o ambiente de soirée que se
quer morno, calmo e demorado.
Vêm de
todos os tipos e idades, porém, todos das classes privilegiadas que dão aos
seus nascituros o fino gosto e a elegância da convivência.
Consegue-se
em pouco tempo um ambiente de aconchego familiar, não fossem as origens e
pergaminhos do palacete, um boudoir em que um frou-frou de bom gosto e donaire
femininos exaltam a clientela exclusiva.
As
meninas, que gastaram tarde e saber em convidativos apuros de estética
escolhendo aprimoradamente os reduzidos trajes de convívio, vão chegando
parecendo sempre, noite após noite, ser um fortuito encontro de gente que se
gosta.
Não raro
se dança ao quente sabor do jazz inventando em cada acorde um afago, um
carinho, uma atenção a que a música era alheia.
O que os
traz aqui?
A
elegância de privar nos afectos treinados para ouvir e agradar sem responder; o
ido carinho maternal agora sem a ascendência da progenitura; a falta doméstica
Não será
a aventura, senão do momento, uma vez que estão vedadas as excursões exteriores.
Os
celibatários, e os muito ocupados, talvez o preenchimento do vazio quotidiano,
talvez; os maridos, quem sabe, procurem pagando o amor que lhes falta em casa,
talvez. Mas porque entram sempre alegres e expectantes e saem, sempre,
sorumbáticos e culpados?
O que os
faz regressar, leves e airosos, sabendo que sairão pesados e soturnos?
(Falemos
baixinho… Quando os dirijo e assisto penso no que sería um palacete para
senhoras necessitadas, envergonhadas, e escondidas no desencanto do bem parecer
conjugal. Como se comportariam cá? O meu mundo invertido – elas chegando, eles
esperando…
Deixem!
São devaneios...)
A Mad.
Nós nunca lhe chamamos Madame, para nós foi sempre a madrinha. A madrinha teve
ao longo dos anos o cuidado duma selecção esmerada e só trabalha no palacete o
crème de la crème. Todas chegam sem problemas nem pressões e assim se mantêm,
sendo o rendimento e estada de superior qualidade. Não é nada elegante
salientar estes aspectos, que, não sendo discretos, são, porém, do foro
privado.
Mas
porque vos contos isto, a vós?
EU: Até
que enfim…
Cá estou…
Não foi
um regresso à casa de infância, nem à família que conheci. Nem as pessoas são
as mesmas, não; umas foram com Deus e outras foram para longe envelhecer
sozinhas.
Tal como
aconteceu com a vossa e amigos, talvez, desapareceram... Quem ficou?
Não
regressei senão à prometida posse, agora que a madrinha faltou. Quem, senão eu?
E à
segurança. Só quando somos donos estamos seguros, a fruição é passageira.
No
entanto é uma clausura, não fora o convívio da arbitragem e as viagens para os
jogos estava sempre aqui onde me vedes, sozinha nos meus compromissos de gerir
uma casa de mulheres achadas com homens passageiros. Vocês sabem lá…
Uma
encenação diária com actrizes habituais para espectadores assíduos. Alguns
dramas. Quando me dou conta que passamos a nossa infância numa casa de ilusões
perdidas e comportamentos desviantes e não ficamos afectadas…
Bem, o
meu psicólogo chamou-lhe um dia um palavrão comprido, difícil lembrar-me.
Mas
está-se bem…
O Pedro
vai assistir aos jogos. Eu vejo-o. Gola levantada, boné grande, óculos escuros,
lugar remoto. Disseram-me que pergunta como estou.
É tarde…
Consta-me
que tem filhos, mulher gorda, prestações a pagamento, emprego periclitante, uma
correria, adianta-se-lhe a barriga, poucos prazeres. Diabo! Podia ter sido
comigo…
Uma
família…
Faz tempo
que não sei dela. Escrevo-lhe e devolvem-me as cartas com qualquer coisa
escrito. Parece que vive incomunicável e sem afectos.
Também
eu…
Procrastinação!
É isso!... O médico diz que eu me transformei numas reticências, adiando,
estagnando, com medo de apegos…
E se lhe
telefonasse… parece que se vai divorciar. Constou-se-me…
Capítulo 10
Tixa Falchetto
Pedro
Ah, Amélia...
Que mulher! Por que é que nunca
me tiveste o carinho que recebia da Leonor?
Isto de viver não é fácil! Desde que começamos
o curso, não consegui mais tirar-te do meu pensamento! Mulher forte, decidida,
ousada! Não era fácil encontrar mulheres neste trabalho, ainda mais àquela
época! Mas tu, não, tu nem sequer te parecias com uma mulher, tão cheias de
não-me-toques, tão medrosas. Tu eras
corajosa, aventureira, compincha!!! Mas, e talvez por seres assim, tão parecida
a mim, não quiseste sequer dar-me a chance de provar-te que, juntos, seríamos
perfeitos!
Anos mais tarde, foi que descobri o por quê...
eras mesmo tão parecida a mim, que tinhas o mesmo gosto... Soube, há pouco
tempo, que quando eu estava disposto a dar-te o meu nome, a minha vida, o meu
companheirismo, a cumplicidade de um casal que se entende, tu estavas a sonhar
com a tal Lili... Ora, que diabos! Aquela mulher era uma máscara! Nunca houve
quem a conhecesse verdadeiramente. Engendrava a todos em sua melíflua teia,
caíam todos a seus pés... nunca enganou-me!
À época em que estudávamos, tentei por várias
vezes dar-te a perceber o meu amor, a minha paixão, mas tu eras sempre
escorregadia, sempre te esquivavas de momentos mais íntimos. E eu, tolo, não
atinava. Julgava ser recato teu, logo tu, uma mulher tão destemida! Não, não
era recato. Era aversão ao sexo oposto... e eu, tolo, não atinava... Por várias
vezes, em minhas caraminholas, pensei em fazer-te ciúmes com a Leonor, a ver se
reagias e te chegavas mais pra mim... e nada! Mas quando estávamos juntos a
estudar, dávamo-nos tão bem! E quando fazíamos exercícios de voo, parecíamos
feitos da mesma massa. Nessas horas, ninguém era tão próximo quanto nós dois. E
eu enchia-me de esperanças outra vez, e mais, e mais vezes.
Mas sempre que tentava levar o assunto para o
lado romântico, tu fugias como uma adolescente tímida – isto era o que eu,
tolamente, pensava. Na verdade, eras tão “meu amigo”, que não me querias
magoar, agora percebo. Não querias perder a amizade que tínhamos, e que foi,
durante anos, a melhor das amizades. Mas eu sonhava contigo a sós, só nós dois
e um quarto à penumbra, um suave perfume a rosas, das que eu despetalaria para
forrar o chão aos teus pés. E dali, seguir a vida num crescendo, casar-me
contigo, dar-te filhos que seriam como nós, aventureiros, fortes, decididos.
Não quiseste. Deixavas-me sempre sem jeito,
esfriando-me os ímpetos quando tentava aproximar-me de ti.
Até àquela vez, aquele maldito dia em que,
após quase ter feito cair o avião num looping, por estar a sonhar contigo,
decidi encher-me de coragem e pedir-te a mão em casamento, com todas as pompas,
todos os rituais de um gajo apaixonadamente romântico, como sempre fui.
Comprei-te o anel de brilhante, aquele enorme bouquet de rosas vermelhas,
contratei aquele trio de músicos para fazer-te uma surpresa ao fim do dia de
trabalho. Assim que pousaste o avião, estávamos todos à tua espera no hangar,
eu, os músicos, os colegas de trabalho. O violino começou a tocar, a cantora
soltou as primeiras notas diante do teu rosto estupefacto... eu ali, de
joelhos, com as flores e o anel nas mãos, o coração a saltar pela boca, criei
coragem e comecei..
-
Amélia...
E tu, olhos arregalados, boca aberta, olhavas
para os músicos, para mim, para os colegas. Logo deduziste o que eu tencionava
fazer, claro, nunca foste tonta. O olhar que por fim me lançaste destruiu-me as
poucas esperanças que tinha. Não precisaste dizer uma palavra. O pedido
engasgou-se-me na garganta, baixei os olhos diante da tua muda recusa.
Simplesmente deste-me as costas, deixaste-nos todos com cara de parvos à
entrada do hangar. Os colegas não sabiam se se riam de mim ou se se condoíam da
minha derrota.
Humilhado, possesso, com raiva de mim mesmo
por ter sido tão palerma, por não ter tido a esperteza de fazê-lo a sós
contigo, porque me julgava bom partido o suficiente para encher os olhos a
qualquer rapariga casadoira, ainda pensei em correr em teu encalço, mas não o
fiz. Em vez disso, pedi aos músicos que parassem, dei uma desculpa esfarrapada
para os colegas, disse que foste pega de surpresa e não souberas como
reagir. Entrei no carro e fui levar os
músicos a casa. Dei as flores à cantora, que as agradeceu, comovida e compreensiva.
Afagou-me os cabelos, ofereceu-me um café... aceitei, entrei em sua casa e
abandonei-me aos seus cuidados.
Sofri por vários dias, e ela sempre a cuidar
de deixar-me mais alegre, vinha sempre à minha procura... acabei casando-me com
ela, a pobre. Nunca lhe tive amor, e ela, sempre a tratar-me com doçura. E a
doçura que me dava era tanta, que faltava-lhe ao paladar... compensou nos doces
todo o abandono em que viveu por todos estes anos.
Não lhe quero mal, coitada, e por isso mesmo,
venho a pensar em deixá-la viver sem o peso de ter tomado por marido um homem
que só pensa em outra. Ela merecia encontrar alguém que a amasse, pois é uma
mulher delicada, de valor. Infelizmente, seu nome não é Amélia.
Os miúdos são giros, mas já são homens feitos,
não precisam mais que lhes esteja a acompanhar os passos. Um deles deu pra
aviador, como eu, e por mais que tente, desde que lhe vi o interesse na
profissão, mais o peso do teu nome martela-me a mente. Soube que tu, depois
daquela malfadada e infeliz tentativa de pedido de casamento, abandonaste a
aviação. Não sei se por birra, ou se por te apetecer mais a nova profissão,
foste pra parteira, e calhou, ó, ironia do destino, que fizesses um dos partos
dos meus filhos, e justamente esse tornou-se aviador. Foi a tua mão!
Enfim, querida Amélia, esta vida não é para
quem sonha! Isto de amar alguém é uma grande troça. Às vezes ainda me lembro da
pobre Leonor, que vivia a esfregar-me na cara o amor que sentia, e que eu não
podia retribuir... já eras tu a senhora dos meus pensamentos e desejos.
O amor é cruel. Destrói vidas! Pelo meu amor
por ti, destruí os anseios da Leonor, destruí teus sonhos de aviadora, destruí
os sonhos da minha senhora de ser amada como merecia, destruí a minha vida
enfiando-me num casamento que só me fez crescer a barriga e a prole. E a vida
passou, os anos a escorregar pelos dedos, daqui a pouco morre-se, e de que
valeu tanto amor por uma mulher ?
Não, Senhores, não amem! Escolham o lado fácil
da vida.
(Há pouco encontrei um bilhete da minha
esposa, um desabafo escrito num caderno de receitas, na última folha...
coitada! Passou todos estes anos a sofrer e a esperar que eu te esquecesse.).
“...a senhora, dona Amélia, é uma parva!
Deitou fora um homem do calibre do meu Pedro, capaz de humilhar-se por amor!
Mas, por mais que lhe agradeça por isso, por ter deixado o meu Pedro para mim,
não posso deixar de odiá-la com todas as forças do meu coração! Que diabos de
feitiço fez com que invadisse assim os pensamentos do meu homem, que até mesmo
na hora do amor, consegue mostrar que não é em mim que está a pensar? Dei-lhe
meu amor, dei-lhe filhos, dediquei a ele todos os meus dias, e o que tenho é um
resto humano de solidão e dor! Tenho pena das crianças que ajudou a trazer ao
mundo! A senhora deveria ter morrido! Mas nem para isso serve! Só serve para
destruir pessoas! ...”
Pobre desta mulher! Não a posso mais fazer
sofrer... viver é uma carga!
Capítulo
11
Margarida
Piloto Garcia
Amélia
Introdução
Ah como era belo o mar que sempre a chamava, as ondas profundas, a impoluta
areia branca antes de ser tocada! Todas as manhãs a desvirginava com as mãos
afundadas nos pequenos grãos, enquanto sorvia em golfadas os eflúvios da maré.
Todos os dias deixava na praia um pouco dela, quem sabe para exorcizar todos os
sentimentos que sempre a devastavam.
Amélia nascera na capital, mas de certo modo nunca fora verdadeiramente
citadina. Fizera o liceu com boas notas e até chegara a metade de um curso de
Letras mas sempre se sentira uma solitária.
Precisava de afundar os olhos na natureza para se sentir inteira, viva e
capaz de todas as façanhas. Vivia na cidade como uma prisioneira, encerrada
entre prédios e forçada a conviver com quem nada lhe dizia.
Um dia decidira conhecer uma pequena vila costeira e apaixonara-se
completamente. Adorava o sotaque cerrado das gentes da terra, o bulício da
chegada dos barcos de pesca, os sons do mar a quebrar na areia, os passeios
matinais mal o dia despontava. A cidade ficava lá atrás cheia de tudo aquilo
que mais detestava e lhe pesava nos ombros.
A cidade
Tinha-lhe dado e tirado tanto essa cidade! Fora lá que conhecera Pedro.
Ainda hoje não sabia se era uma boa ou má recordação. Ele nunca percebera quão
errado era o que nutria por ela. E ela fora tonta, verdade se diga, quando não
lhe travara logo de início aqueles sentimentos. Mas Pedro era um companheiro
interessante, um conversador que também sabia guardar silêncios, também ele um
amante de música e da natureza. Conhecera-o através de uns amigos que fizera
quando estudara na faculdade e descobrira com ele algumas paixões comuns.
Sentia que tinha um amigo para a vida, alguém que compreendia as suas
idiossincrasias. Infelizmente nunca se apercebera, ou não o tinha querido
fazer, de que Pedro sentia por ela mais do que uma calorosa amizade. Até ao
malfadado dia em que tudo acontecera.
Ainda hoje se lembrava do choque sentido, não tanto por si, mas pelo amigo
que defraudara.
Como eram maravilhosos os dias que passavam a tentar pilotar o pequeno
Cessna Skyhawk! A adrenalina a correr nas veias, o coração como um louco, a
concentração misturada ao riso da vitória por conseguirem uma manobra mais
arriscada. Ambos loucos pela aviação, muitas vezes se tinham abraçado envoltos
pelo enorme prazer sentido, de cada vez que cruzavam o céu.
Se ela tivesse percebido tudo o que despertava em Pedro, teria tentado
afastar-se ou mesmo confessado a sua grande paixão. Mas não! Fora preciso Pedro
sofrer uma humilhação para perceber quão distante o seu sonho estava da
realidade.
Ele nunca lhe perdoara, nem a rejeição, nem a louca decisão que tomara ao
casar com Leonor. Pobre Leonor que sempre o amara e ao mesmo tempo a desprezava
por não o ter feito.
Ela também nunca se perdoara. E esse era um estigma que guardara em si.
Nunca mais voltara às aulas de aviação, como se elas tivessem sido as
causadoras de todo o mal.
A vila
Seguira outros caminhos. Nem o curso de Letras, nem a aviação a tinham
prendido. Um por nada lhe dizer, outro pela força das circunstâncias. De certa
maneira, ainda trazia na pele aquela amizade com Pedro e a falta dos risos e
das palavras tontas enquanto estudavam, era uma recordação penosa que a
perseguia. Agarrara-se a um misto de sentimentos, a uma revolta que fazia dela
as delícias de quem a conhecia. Ninguém percebia que debaixo da capa guerreira,
existia uma mulher frágil a pedir socorro. É sabido que uma mentira dita muitas
vezes se torna verdade. Era assim com ela. Perder o amigo à conta de um
tremendo equívoco deixara rudes marcas.
A vila era o seu talismã, o local onde conjurava todos os males, o local
onde ao mesmo tempo todas as paixões eram possíveis.
Percebia que Pedro achara que nunca se poderia ter interessado pelo sexo
oposto. No entanto, isso nunca fora inteiramente verdade, pelo menos até
conhecer Lili.
Lili tinha uma vantagem em relação a todos e a todas as pessoas que
conhecera. Era de uma impudência arrasadora, sem com isso se preocupar. De
certa forma, o amoralismo dela livrava Amélia de todos os pecados. Podia ser
quem era, resguardar-se de qualquer sentimento que quebrasse o escudo que há
muito erguera e proteger-se assim das deceções que via nos outros.
Vira o pai e a mãe cruzarem uma vida de infelicidade agarrados a convenções
e jurara a si mesma levar a existência sob o lema carpe diem. Na
realidade, apenas aquela amizade quase fraternal com Pedro a tinha desviado um
pouco desse caminho. O catastrófico resultado da mesma era mais um ponto a
favor da sua teoria.
Lili era o que era, muito simplesmente. Devastadora, sensual, mestre nos
devaneios sexuais, um vulcão a despertar outro. Com ela não precisava pensar,
questionar-se, meditar no certo e no errado. Com ela a chave era viver
intensamente cada segundo, sem esperar o dia de amanhã.
Os homens que tivera, porque tinham existido, sempre lhe cobravam algo
mais. Amélia queria ser livre nas tardes de sol da vila piscatória, correr pela
areia de mão dada com Lili, ou gritar com ela no suor da cama. Na volúpia dos
sentidos, a palavra «amor» era apenas uma palavra. Nada de compromissos, de
projetos futuros ou amarras. A paixão não requeria género. Era apenas uma
explosão, um apocalipse que a purgava de todas as dores. Não necessitava que
Lili a amasse, mas somente que a desejasse nas tardes em que se encontravam. O
amor levaria ao ciúme, à posse e a tudo o que ela mais detestava por se achar
incapaz de o suportar.
A vida pelo meio
Afinal, nem tudo seria assim tão fácil. Abdicar de uma companhia para a
vida, apesar de todas as vantagens, também teria consequências e Amélia
sabia-o. Mas seguira o seu rumo levando a pose de guerreira mesmo quando ruía
por dentro. As lágrimas que fazia na cidade, ia chorá-las na vila, salgando
ainda mais o mar que amava.
O lado negro de tudo, atingia-a muitas vezes depois que decidira ser
parteira.
Quando mais tarde tinha decidido enveredar por essa profissão, regera-se
por algo que muito tinha a ver com ideais incutidos. Mas a verdade era muito
diferente de um idílico mundo imaginado.
Muitas vezes tinha trazido a felicidade a quem esperava exausta o milagre
da vida. Esses eram, sem dúvida, os
momentos de júbilo de que se orgulhava.
Mas nem sempre era assim. Certos acontecimentos eram uma sombra negra que
porfiava em não se separar dela. Agarrada à pele, trazia a memória de um local
numa rua de Lisboa, onde tantas mulheres tinham desembocado e com elas mais uma
vida perdida. Tantos dramas tinham embatido nela a tentarem devastar-lhe a
confiança!
Nunca fizera juízos de valor sobre o assunto e nem sequer era religiosa,
mas era impossível não ser afetada por tantas histórias de vida que com ela se
tinham cruzado.
Incrivelmente fora num hospital da capital que voltara a rever Pedro.
Leonor tinha dado à luz com a sua ajuda, um dos filhos do casal. Quando os
vira, ficara estranhamente amedrontada perante o que a vida deles fizera. Ambos
gordos, anafados, mas como se debaixo de toda aquela gordura balofa, existisse
um poço de raiva e de amargura que só precisasse de um pouco de força para
rebentar e explodir-lhe na cara.
Em Pedro, os olhos tinham mirrado à medida que a vida cobrara dividendos e
um breve esgar vincava-lhe os lábios. Mal lhe dirigira a palavra e o ressentimento
aprofundava-lhe as rugas, como se a presença dela o fizesse amarrotar. Já
Leonor, perdera toda a beleza que lhe conhecera na fatídica tarde em que ele a
tinha pedido em casamento. Fora com um olhar de ódio que recebera a sua ajuda
durante o parto. Achava mesmo, que se não fossem as circunstâncias e o
proverbial feitio de se acomodar, e Leonor teria mesmo pedido o seu
afastamento.
Final
Após tantos anos, era ali junto ao mar, que encontrava alguma paz. Sem
afetos, sem amarras, numa solidão pensada e assumida.
Cada onda era um sussurrar que a levava em cadência, cada grito de gaivota
era também seu, na lembrança dos muitos que se permitira naquela terra.
Rompera quase todos os laços, mesmo que não pudesse dizimar as recordações.
Nada sabia de quem cruzara a sua vida e era preferível assim.
A última vez que vira Lili, não tinham recolhido ao quarto. Ela apenas lhe
sorrira e naquele seu jeito impudente e desprendido dissera que ia ter com
Ernesto, um tolinho, como lhe chamava, mas que lhe apetecia por ser tão
volátil. E as paixões, dizia ela, queriam-se assim, a consumirem toda a lenha.
Depois ela pulava fora, antes que tudo esfriasse demasiado. Amélia aceitara
perfeitamente. Não se tratara de amor, só da aparência do mesmo e tal como as marés,
havia que aceitar o inevitável.
Curiosamente chegara a conhecer Ernesto e os seus devaneios, mais a sua
insuportável tendência para namoriscar a torto e a direito. Também ele um dia
viera à procura de Lili, que, entretanto, já tinha uma nova paixão. Naqueles
estranhos acasos que a vida proporciona, tinham descoberto que a tinham tido em
comum. Após alguns diálogos à beira-mar e a certeza de que não valia a pena
usar nela os seus esquemas de encantamento, Ernesto tinha conseguido ser uma
espécie de amigo. Ele era prosaico e dogmático, um lutador desse lá por onde
desse, o que lhe facilitara sem dúvida o percurso de vida e isso era algo que
apreciava nele.
Desse modo, ia aproveitar o convite que ele lhe fizera há uma semana.
Hoje quando o sol se pusesse romaria a Lisboa. Ernesto ia estrear-se no
Finalmente Club e ela sentia uma enorme curiosidade em perceber como é que
alguém como ele se iria sair.
De um certo modo, a sua coragem era uma espécie de motivação para ela.
Se um namoradeiro incorrigível conseguia ser travesti, quem sabe o que ela
ainda poderia ser?
Afinal nem tudo estava perdido.
Capítulo
12
João
J. A. Madeira
Calem todas as palavras para lá das que aqui deixo; cerrem-se todas as
pálpebras para que não seja visto mais que as imagens que vos darei; e não se
cocem ou arrastem traseiros nos assentos da impaciência se nada entenderem do
que lêem. Que não restem dúvidas: para vós, o meu nome é J. Pinto Fernandes,
ainda que essa designação não me pertença.
Assumi-o por ordens do meu Pai, a quem nada se nega pelo feitio
bondoso mas simultaneamente irascível quando contrariado. Tenham calma, não o
incriminem já. Ficou assim desde que em apenas sete dias fez isto tudo e
descobriu, tardiamente, que “depressa e bem, não há quem”.
Subitamente, viu-se sozinho no espaço, sentado numa estrela qualquer e
afrontado por uma terrível depressão difícil de diagnosticar, por se ter esquecido
de criar os psicólogos, e só hoje identificável como a síndrome SNPF-DTMF (sem
nada para fazer depois, de tudo mal feito). O que criara não funcionava.
Macacos e javalis morriam afogados por falta de informação sobre o espaço a
ocupar; tainhas e robalos penduravam-se em lianas, qual Tarzan muito antes do
cinema; muitas plantas eram carnívoras e provocavam conflitos de interesses com
animais que questionavam a razão da sua existência; e até as pulgas e os
piolhos saltitavam de corpo em corpo na vã tentativa de não serem chatos.
Repito: não incriminem já o meu Pai. Tentou tudo. De algumas plantas fez chás e
ia morrendo por isso; ensinou caminhos marítimos e terrestres e roubou o ar aos
grupos que se baralhassem; tirou cornos a uns e pôs cornos a outros e deu asas
a alguns até, finalmente, se rir ao descobrir que a utilidade do que voava era
a de borrar os de baixo (prenúncio, afinal, de outras espécies que só mais
tarde apareceriam). A uns quantos, puf!, eliminou-os, quando descobriu que
ocupavam áreas de latifúndio e espezinhavam o jardim que tão ciosamente criara.
Mais tarde, muito mais tarde, viria a fase VACI-qNSAN (vamos acabar
com isto, que não se aproveita nada). Uma fase negativista em que decidiu meter
água em todo o lado salvando somente umas espécies que, metidas numa barcaça,
apertadinhas, quentinhas, o coração a latejar, tudo a latejar, se foram
atracando umas às outras muito antes de o barco atracar a rebentar de enjoos
por causa da frase bíblica CeM (crescei e multiplicai-vos). Quase desistiu.
Quem o mandara criar uma bola que era afinal uma mola, saltitante e de efeitos
imprevisíveis? Por que se armara ele aos cucos – consultou a lista e viu que
sim, que o cuco já estava inventado – e fizera tudo sozinho? E foi então, nesse
instante, que descobriu como numa resposta divina, apesar de nada haver mais
divino que ele, que não estava só.
Vindo de uma nuvem cimeira, um jacto de água tingiu-lhe de amarelo o
cabelo e as barbas brancas. Humedeceu os dedos, cheirou, e pasmou-se porque já
inventara a chuva, mas só dele para baixo. E ouviu uma voz: “desculpe, pensei
que não havia ninguém”. Olhou e viu um homem empunhando um tridente.
Enfureceu-se. “E não era suposto haver ninguém, mas aí em cima. Eu não te
criei, porque nada criei acima de mim. Quem és tu?”. “Eu sou Neptuno, o Deus
dos Oceanos”, disse o sujeito. “Ah”, exclamou o meu Pai, “Então, por isso
verteste água?”. O outro corou e, numa tentativa de mudar de assunto,
perguntou-lhe quem era ele, ao que o meu Pai, apontando para a bola, disse ser
o dono disto tudo, que sem ele nada seria possível. “Engraçado. Nós dizemos o
mesmo. E só não registámos a patente porque não inventámos os notários. Mas
anda daí que eu apresento-te aos outros deuses. Somos uma catrefada deles”. Sem
dizer nada, o meu Pai começou a achar que eram deuses a mais. Falando com os
seus botões, que ainda não usava, intuiu que tantas divindades, mais tarde ou
mais cedo, dariam asneira.
Foi apresentado a um tal Júpiter – se nome, apelido ou alcunha, não
sabia – fisicamente parecido com ele, mas a dar-se ares de uma importância que
não tinha por não ser mais que um pau-mandado da mulher, Juno, que – soube-o
mais tarde – Deusa do Ciúme, sobre ele exercia coacção psicológica não punível
por lei por ainda não haver legisladores. Ao fulano repetiu ele, com uma
paciência de Job ainda não bíblico, o que já havia explicado ao pescador
arpoado: que havia feito isto tudo. Mas que, acrescentou, começava a ter a
ligeira sensação de ter feito merda. “Só pode”, respondeu o outro, “Não vias
logo que isto era muita areia para a camioneta de um gajo só?”. E desenvolveu.
Eles tinham sido mais espertos – cagança e caldos de galinha, cada um toma a
que quer, pensou o meu pai – e tinham criado directores direccionados às
necessidades de cada utente. Por exemplo, Ceres para a agricultura, Neptuno
para os mares, Éolo para os ventos, Vénus para o amor, Eros para o
triqui-triqui e até Hades para cuidar dos mortos. “E há-des reconhecer”,
continuou, “que, deste modo, a coisa se torna muito mais eficaz. Ainda que, por
vezes e mesmo assim, nos deparemos com alguns percalços. Como daquela vez em
que o filho do Apolo, o nosso cuidador do Sol, roubou ao pai o carro que todos
os dias nascia a Nascente e se punha a Poente e o deixou cair em África. Uma
chatice, tudo chamuscado. Obviamente o transformámos, ao filho, em pedra, por
castigo. O que, aliás, também fizemos com o Narciso, o angariador de beleza. Um
dia, o parvalhão viu a sua imagem reflectida num lago e apaixonou-se por si
próprio. Não fui de modas e, zuca!, transformei-o em pedra também”. “Mas por
que raio transformam todos em pedra?”, perguntou o meu Pai. “Oh, dá bem menos
trabalho que esculpi-la. Depois, temos também a Medusa, a tipa com cabeças a
dar-com-um-pau que Perseu pensou ter derrotado, mas que, talvez por ser um
semi-deus, não conseguiu. Senão, veja-se a quantidade de cabeças que ainda hoje
cortamos e parecem renascer como cogumelos”. “Por isso”, rematou, “deixa-te lá
de infantilidades endeusadas e faz como nós: arranja um cooperante e verás que
a tua obra te correrá tão bem como aos deuses do Olimpo, antes de sermos
esquecidos. O que a ti acontecerá também, inevitavelmente.”
Conheço bem o meu Pai. Como sempre, deve ter-se mostrado senhor do seu
nariz e sem dar ouvidos a ninguém. Terá deixado passar o tempo e, de repente,
dar mostras de ter tido uma ideia sem que ela fosse dele. E por isso me criou.
Aparentemente do nada, porque nem muleta feminina lhe conheci. Se bem que… se
bem que, já depois de eu ter sido criado, desaparecesse noites a fio sem que alguém
soubesse dele. Mas, talvez por decoro, nenhuma das escrituras fala disso.
Então nasci. Numa noite qual arraial parolo em que as estrelas se
fizeram cadentes e me trouxeram camelos e incenso, ao qual, por sinal, até sou
alérgico. Ele, paciente como sempre, deixou-me crescer como se faz à criação
para a engorda. O meu nome começou a ser bafejado como já o havia sido por um
burro e uma vaca; e daí a pintarem-me a figura por me ir tornando famoso foi um
passo. Um passo aldrabado, convenhamos. Nascer onde nasci, com o sol a pique,
poucos lagos e sem ar condicionado, natural seria que a minha pele fosse
tisnada e curtida como as minhas sandálias que resvalavam – estranhamente,
porque a China ainda não existia – em cada pedrita que encontravam. Em lugar
disso, pintaram-me com a pele branquinha, olhos azuis e cabelos e barba loura
em vez da correcta, hirsuta e pintelhosa, como teria. Quadros há, ainda hoje,
em que o coração me salta das costelas como se eu fosse uma aula de anatomia
ambulante. E fiz umas coisas, sim. Disse umas palavras que ninguém entendeu,
chamei a mim criancinhas que hoje me custariam a reputação e transformei a água
em vinho. Erro meu, porque depois quem lhes
aturou as bebedeiras fui eu. Só por elas, as pielas, se explica que na
hora da minha morte tenham indultado Barrabás, um bandido da pior espécie,
sacaninha até mais não, em lugar de me libertarem a mim (seria um sinal dos
tempos vindouros?). E morri. Do jeito que todos sabem, mas morri.
Pensava eu. Porque alguns séculos depois, o meu Pai chamou-me e
mostrou-me alguns “grafitti’s” de parede onde se dizia que eu voltaria para
ressuscitar os mortos, coisa que achei sinistra e pouco higiénica. “Vês?”,
disse ele, “O teu nome nunca mais deixou de ser falado”. “Coisa pouca”, pensei
eu, “afinal todos os nomes constam da lista telefónica e só se encontram os que
se procuram”, mas, submisso, calei-me. “Tens de voltar”, disse ele. Aí, não me
contive. Barafustei, esbracejei, mordi-me e disse-lhe que nem pensasse numa
coisa dessas. Levar outra vez com pregos do tamanho do melão de um político não
eleito? Nem pensar! Aquela merda, nas mãos e nos pés enquanto suportava o
hálito desdentado do pregador, dói como o caraças e não há espírito que
tranquilize a dor. “Isso foi porque na altura ainda estava a aprender a fazer
cola ou fitas de velcro. Agora, tudo será diferente. Irás como um pobre diabo
(e fez o sinal da cruz), daqueles com os quais todos são solidários até que
morram. Tudo correrá bem, verás. Assim seja feita a minha vontade”.
Comecei por essa altura a ficar farto das vontades do meu pai. Vim
como um pobre e como um pobre fui tratado. Ou seja: deixavam-me abandonado
pelas ruas e quando me aparecia alguém vinha rodeado de repórteres, falavam
coisas mais estranhas que aquelas que eu dissera da primeira vez e
entregavam-me comida para um dia. Que se estragava ao fim de dois, sem que de
novo me aparecessem. Morri de fome, roto e a cheirar mal, dessa vez. E quando,
ao terceiro dia, ressuscitei, cobriram as narinas e gritaram “Vade retro,
Satanás”, sem que forças tivesse para me benzer.
Voltei derrotado, mas o meu Pai não desistiu. Socorreu-se da minha
magia dos pães e do vinho e do caminhar sobre as águas e disse-me que teria de
voltar nessa vertente. Uma vez mais, não a última, cedi. A magia era em mim um
dom deficientemente aproveitado. E vi-me, na idade própria, em cima de um palco,
cartola numa mão e varinha de pau feito na outra. Agora, reparem: chapéu de
coco numa mão e um pau na outra. Algum de vós conseguiria tirar do chapéu um
coelho? Assim? Do nada? Tenho a certeza que não. Pois eu consegui. Do vazio da
cartola saquei pelas orelhas um láparo envergonhado que me urinou os sapatos.
Esperava uma ovação, um “Ah!” geral de bocas esgargaladas para, depois,
conquistado o público, encetar a minha doutrina. Qual quê! As gentes
enraivecidas chamaram-me aldrabão, flibusteiro, vigarista, mandaram-me voltar
para a minha mãe e atiraram-me ovos, pastilhas elásticas há muito coladas às
cadeiras e uma vez mais me abandonaram.
Regressei decidido a nunca mais ceder às ideias do meu Pai. Mas talvez
inseguro pela idade com que sempre morri, submeti-me ainda à sua última
exigência que, com falinhas mansas, como sempre as têm os espíritos ditadores,
me sugeriu que, durante um século, ouvisse música e lesse revistas cor-de-rosa,
alguns livros, e me quedasse embevecido perante certos programas de televisão.
Durante cem anos, nada me disse. Mas quando o prazo acabou, perguntou-me de
rompante: “que palavra te sugere o que viste e ouviste durante este tempo?”.
Mais maduro, não respondi de imediato. Mas pelos meus olhos e ouvidos correram
músicas do Toni Carreira, do Andy Williams, do Roberto Carlos; folhetins das
vidas dos filhos, netos e noras da realeza britânica e da mãe e dos filhos do
Ronaldo quase nascidos sabe-se lá como, como eu; romances de Corin Tellado e
Max du Veuzit; os ciúmes, os namoros, as agressões e até a cor dos vestidos
usados no dia em que por paixão, sempre por paixão, as vítimas eram desprovidas
do seu amor-próprio e tudo perdoavam até ao ponto de já nada poderem perdoar.
Visto à distância, este era um mundo onde só uma palavra tinha cabimento: amor!
Amor entre os homens, amor para com os animais, pela Natureza, pelas crianças
pobres e ricas de desejos e pelos pobres ricos tão sem riqueza de poder desejar
como os pobres. Solidariedade, amizade, companheirismo eram o nome do meio deste
mundo sem nome nas pontas. Amor! Que outra palavra poderia eu escolher como
resposta ao que me perguntara?
E os olhos sorriram-lhe sob a alvura das espessas sobrancelhas, as
pontas dos lábios ergueram-se por baixo do bigode branco e até eu me arrepiei
pela candura da missão que me destinava.
Quanto engano, quanto embuste, quanta manha e fingimento, afinal.
Todos se amam e todos se invejam e pela cobiça se matam. Querer amar é querer
ter e quando se tem adquire-se novo amor no desejo até que se possua, num imparável
círculo. Pela posse se agride, se destrói, se mente, se aniquila. Buscam-se
troféus individuais em nome de um colectivo que será desfeito pela força de um
só, o mesmo que sobre as outras cabeças trepou, venerado, amado, também
repudiado mas em silêncio, porque, no fim dos tempos, as paredes estão
realmente a adquirir o dom de ouvir. Este é, até para os semi-deuses como eu, o
planeta do amor quando visto do céu; mas o da mentira e do medo, quando descido
à terra pela vontade do meu Pai.
Dirão tratar-se da minha visão global de um todo humano, Obra
Primeira, e por isso frágil, de um Ser ao qual não se conheceu outra. E que,
sobre os erros dela, ao sétimo dia descansou. Amar, verdadeiramente, é pessoal
e intransmissível, de alguém para alguém. As multidões destilam ódio, só o
indivíduo partilha o coração. Será?
João amava Teresa que amava Raimundo que amava Maria que amava Joaquim
que amava Lili que era amada por Alberto que também amava Elvira que amava
Leonor que amava Pedro que amava Amélia que também amava Lili que não amava
ninguém. Uma enredada teia que nem o meu Pai alguma vez conseguirá desfazer.
Porque, pessoa a pessoa, são tão conturbadas as relações como as milhentas
células que entre dois corpos se cruzam. Ao contrário da lâmpada de Aladim, tudo
o que se toca foge. Como jangada perdida no mar, busca-se a salvação em quem
não se conhece porque só em quem não se conhece pode existir um Génio. Até que
se absorve e deixa de o ser, fazendo com que tudo volte ao princípio.
Como é o meu caso. J. Pinto
Fernandes, de meu transitório nome. Que não fiz parte da história e por ela
escrevo. Vou partir, talvez fugir, para os braços do meu Pai. A questão é
encontrá-lo. Com a mania das invenções, não parou de criar estrelas onde, numa
delas, estará sentado à direita de qualquer coisa. Mas, nesta abundância
estrelar, não sei onde o encontrarei, o que me preocupa. Está velho e, de cem
em cem anos, tenho de lhe dar a medicação.
Receio bem que tudo isto piore, se acaso o não descobrir.
Fim
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