Capítulo I
Margarida Piloto Garcia
Margarida Piloto Garcia
Sabras
deixava o olhar perder-se na melancólica planície. As árvores estavam prontas
para a colheita e os frutos maduros pendiam languidamente, carnudos e
sumarentos. Um sem número de insectos zumbia à sua volta numa azáfama que o
ensurdecia. Dormente pelo torpor do calor e dos zumbidos, dava voltas ao
pensamento em eternas questões para as quais não sabia a resposta. Naldan e
Laygar juntaram-se a ele e os três
ficaram num profundo silêncio. O vento soprava os aromas dos pomares e um
levíssimo e fresco odor do oceano perto. E os homens pensavam e pensavam. Há
muito que o faziam quando as tarefas do dia, mais fisicamente exigentes, não
lhes chegavam para cansar o corpo e impedir os pensamentos.
Nenhum
deles sabia como acontecera. Cientistas de todo o mundo tinham ao longo de
muitas décadas, elaborado inúmeras teorias, sem contudo descobrirem a solução.
E aí estavam eles, membros da última geração, com muitos anos, mas plenos de
saúde e vigor. A tecnologia evoluíra até um certo ponto que permitira uma boa
vida no planeta. A longevidade tinha aumentado e as plantações ocupavam áreas
vastas, quebrando de vez os ciclos de fome. Contrariamente ao que se previra, a
ruralidade aumentara e a humanidade criara uma maior apetência pela calma e
harmonia.
-
Continuas a pensar no mesmo, Sabras?
O
homem olhou para o amigo e abanou afirmativamente a cabeça.
-
Como não pensar Naldan? E porque não existem muitos como nós a fazê-lo?
-
Talvez o problema seja mesmo esse-disse Laygar.
De
novo se remeteram ao silêncio enquanto as papoilas dançavam nos campos
levemente abanadas pela brisa suave.
Em
breve chegaria a noite. De leste vinha o perfume da lavanda que o sol aquecera
todo o dia. Daqui a pouco os últimos raios laranja cairiam sobre os tons de
alfazema e nesses derradeiros instantes tudo pareceria perfeito. E não seria
isso a perfeição?
Afinal
não fora nenhuma guerra a destruir a humanidade, nenhuma bomba lançada, nenhum
ataque químico. Parecia que todos os vírus potencialmente mortais tinham sido
dizimados. Nenhum asteroide ou cometa atingira a Terra e os cientistas tinham há
muito, criado sistemas capazes de defender o planeta. Degelo, terramotos,
furacões, eram coisas do passado. A fome deixara de grassar. Todos eram mais
solidários, mais harmónicos. De certo modo, parecia que se tinha encontrado o
caminho para o verdadeiro paraíso. Por isso...ninguém percebera como
acontecera. Pior ainda, o torpor beatífico que assolara a humanidade, só
permitira que alguns se apercebessem da verdadeira catástrofe.
Durante
séculos a população crescente conhecera uma estagnação. Ninguém então se
preocupara com tal num planeta superpovoado. Décadas depois os homens já
superavam em 75% o número de mulheres. Apesar do alarme lançado todas as
pesquisas tinham sido infrutíferas. Nada fora encontrado contra o qual se
pudesse lutar para impedir que tudo acabasse.
Os
três amigos iam vendo os homens que regressavam dos campos. Alguma coisa lhes
faltava nos olhos e sobrecarregava os ombros. Faltavam asas quando os sonhos
morriam e a aceitação tácita impedia de voar. Tantos animais à sua volta sempre
com novas crias a cada primavera.
Mas
eles eram a última geração de humanos na terra. As suas mães e as de muitos
pelo mundo, tinham sido as últimas mulheres. Mais nenhuma nascera em todo o
planeta e parecia que toda a comunidade científica se cansara de pensar. Todos
os óvulos que tinham sido conservados se deterioraram irremediavelmente e
nenhuma alternativa se tornou viável.
Capítulo II
João J. A. Madeira
Talvez
o cair da noite lhes amansasse os pensamentos. Talvez, noite dentro, a
introspecção fosse maior, ainda que individual. Que cada um fizesse a sua e ela
lhes mostrasse a impotência do que pensavam. Sabras sabia que assim seria.
Sabia que logo após os seus apertos de mãos, Naldan e Laygar rumariam a suas
casas onde, provavelmente, não conseguiriam dormir. Porque os seus encontros
estavam eivados de hipocrisia mascarada numa felicidade que, sabiam-no, nada
mais era que aparente. O mundo actual, bem diferente daquele que haviam
conhecido, munia-se de eficaz propaganda em torno de uma felicidade tão
grandiosa que o seu brilho ofuscava toda e qualquer realidade. E ele, Sabras, sabia
– tal como os outros saberiam, sem que o dissessem – quão incómodos eram para
os governos os anciãos alimentados da memória de outros tempos. Quando o mundo
se destruía em guerras, quando o planeta rugia de dor a cada abalo de terra, a
cada ameaça de ofensiva nuclear, mas quando as estações do ano não mentiam e as
árvores de fruto não rebentavam em flor em Novembro. Haviam sido tempos ruins,
sim, mas com esperanças de sobrevivência. Já esta paz artificial, criada para o
bem-estar humanamente terreno, era, tinha a certeza, uma espécie de canto de
cisne, um acenar de mão melodioso ao definitivo adeus à espécie que outra coisa
não fizera que mascará-la. Que morressem por isso os velhos. Para que a ilusão
continuasse.
Apoiou
a bota no estribo e, sem a destreza que a idade lhe roubara, acomodou-se na
sela. Rocinante relinchou como se o admoestasse pela demora. Sabras sorriu
acariciando-o na cernelha e, usando esporas e rédeas, sentiu o já habitual
gingar de ancas ao jeito do andamento do cavalo. Se alguma coisa havia de bom
nos novos tempos, era o de uma maior aproximação aos animais que, brevemente,
teriam de se haver sozinhos, sem a presença da raça daqueles que, numa ínfima
parte da existência da Terra, se haviam intitulado seus senhores.
Ainda
recordava uma juventude que a idade não apagara. Automóveis a entupirem
estradas, o negro dos escapes a consumirem o oxigénio, as mortes contabilizadas
nas épocas festivas e, por fim, o definhar das reservas petrolíferas anunciando
a electricidade como solução para um avolumar de tráfego que urgia resolver, e
se resolveu. Com o regresso a um passado a que chamaram novo futuro,
retornou-se ao meio de transporte que, segundo a propaganda, tinha sido criado
para servir o Homem que, ambicioso, o havia desprezado. E ele ali estava,
cidadão cumpridor de todas as ordens mundiais, montando o seu Rocinante que
amanhã prepararia não para qualquer batalha, mas para a curta e habitual viagem
a Malpertuis, a sua casa de campo, seu único luxo de pobre. A electricidade,
essa, sobrara somente para as poucas e pequenas naves cujos custos proibitivos
as reservavam para que altas patentes cruzassem os céus.
Batalhas,
guerras… sim, viviam também ainda na sua memória. Sangue derramado em nome da
posse e do direito que religiões de defuntos messias proclamavam pela boca de
messiânicos políticos escudados por jovens que, quase sem saberem, por eles
morriam. Tinham cessado definitivamente na célebre Convenção Mundial de 2037,
data nunca esquecida por bem celebrada nos livros de História que a própria
propaganda escrevia e publicava sem que, contudo, jamais desse a conhecer todos
os pontos em que, dizia-se, teriam existido desconhecidas cedências a troco não
se sabia de quê.
O
mundo em paz progredia. Só não se podia questionar para onde, como se, aliás,
existissem condições para questionar o que quer que fosse. Eliminados os
conflitos bélicos, a morte dos outros nas guerras dos outros, os acidentes de
viação, as intrigas políticas que a propaganda filtrava, era necessário dar ao povo
outro tipo de entretenimento, de felicidade: a tecnologia. Já há muito
instalada, desenvolvia-se de modo célere, tornando obsoleto o que no mesmo dia
tinha sido novidade. Computadores, televisões, casas inteligentes, sensores,
satélites, GPS’s, telemóveis, toda a atmosfera pulsava como um coração
invisível no silêncio das radiações ou no sorriso rasgado de novo brinquedo
simulador de guerras antigas, de níveis desafiadores, quase inultrapassáveis,
sempre tão perto de se conseguir como tão longe se ia estando de toda uma
sociedade que vivia para dentro, se auto engolia, destruindo-se crendo que se
construía, à semelhança dos cada vez mais potentes vírus criados para liquidar
o software por quem o programara. Os mesmos vírus, ou outros de outro tipo mas
sempre vírus, que subtilmente dariam início a uma nova era.
Subitamente,
sem que a ciência conseguisse resposta, toda a informação mundial guardada
informaticamente desaparecia. Novos bytes eram injectados nos cérebros
programáveis e o destino era o mesmo: nada. Um nada tão vazio como o nada que
restava para cá dos antigos e abandonados compêndios de História, dos romances,
da poesia, da fotografia, de tudo o que o decrépito papel guardara. Entre os
velhos mas regressados livros e o presente, ficara um buraco de história que
escritores quiseram reescrever, assim os autorizasse uma propaganda pouco
propensa a fracassos.
Estivesse
a Informática activa e depressa se revelaria o que, sem ela, levou anos a
detectar. O mundo regredia em termos populacionais. Porque, descobria-se, as
mulheres, verdadeiras mães de todo um planeta, estavam em extinção. Todo o
equilíbrio social era posto em causa e o sinal de alarme ecoava de tal modo
pelos quatro cantos da Terra que nem uma eficaz propaganda conseguia deter
tamanha onda de frustração. O povo colapsava. Se alguns temiam pelo
desaparecimento da espécie humana, outros, mais voltados para dentro de si,
tremiam pela falta de sexo no feminino, agora escondido, vivendo as que restavam
numa quase permanente clandestinidade. Circulavam de boca em boca, cruzavam
fronteiras, as histórias de mulheres cujo asfixiamento lhes concedera a ousadia
de sair à rua. Assediadas, agredidas, violadas e, consequentemente, mortas por
turbas de homens tresloucados por uma libido demasiado carente, as poucas
mulheres que a propaganda decidira dar já como extintas, sucumbiam, uma por
uma, agora sim, às mãos de quem as conseguisse alcançar. Entretanto, sem elas,
a homossexualidade entre a espécie masculina atingia níveis inimagináveis, a
masturbação tornava-se um acto natural e público e os suicídios, no culminar de
uma reclusão social já emergente aquando do fervor tecnológico, eram tão
vulgares como outrora o haviam sido certas doenças.
De
imediato se reuniram cientistas de renome. Testes foram feitos, ratos
sacrificados e os resultados foram aparecendo nas culpas deitadas à
alimentação, ao ar respirado, à contaminação das águas. Todos comprovadamente
responsáveis pela situação, até que o resultado seguinte desmentisse o
anterior. E, por fim, a certeza: a verdadeira culpa residia na tecnologia
restante. Telecomandos, televisões, telemóveis básicos, antenas terrestres e a
sua radiação invisível vinham acelerando progressivamente uma esterilidade
feminina e um precoce desaparecimento das mulheres ainda existentes. E, uma vez
mais, pelas mãos de uma insuspeita propaganda, da abolição de todos os
aparelhos nefastos se fez lei, reservando-se, porém, a contínua, por
necessária, utilização dos mesmos unicamente aos órgãos de soberania mundiais.
O
progresso da humanidade sentia-se, assim, a caminhar esperançosamente para um
futuro em tudo igual ao passado. O mesmo primitivismo, a mesma cultura de
unicamente viver para comer e trabalhar para o fazer. E, quase, sem mulheres.
Quase,
porque Sabras tinha uma. Laíssa, sua filha. Protegida, quase cativa (não
gostava da palavra) e resguardada de quaisquer olhos de homens ávidos de a ter
e de uma propaganda que mais tentava convencer do que convencida da sua
inexistência. Por isso a mantinha recolhida, ouvindo música, devorando os
livros que esgotavam paredes. Aqui ou em Malpertuis onde, graças à opacidade da
casa, Laíssa podia usufruir da visão do jardim e do céu, das flores que
crescem, do lago que brilha. Era tudo quanto poderia fazer por ela. Por ser ela
a sua única riqueza num mundo que já nada tinha para dar.
O
tempo atmosférico era já muito diferente do que havia sido. Ainda se marcavam
no calendário as datas ancestrais que às Estações do ano correspondiam, mas as
fases da sua transição já não eram suaves e quase imperceptíveis como outrora.
Eram, pelo contrário, bruscas e agressivas e reduziam-se somente a dias do mais
agreste Inverno ou de tórrido e asfixiante Verão. Por esse motivo se espelhavam
os vidros das janelas, para que ao sol se repudiassem os raios de fogo,
exasperante e, quantas vezes, mortífero.
Malpertuis
não fugia à regra. Um bloco de linhas direitas plantado à beira da estrada, mas
à distância de um pequeno e bem cuidado relvado e um muro a delimitar-lhe o
reino, parecia sorrir pelas janelas fechadas mas em constante movimento pela
vida que os seus espelhos reflectiam. Um tipo de casas que a própria propaganda
apoiava por toda a felicidade que transmitia, mas que, no entanto e pela sua
opacidade, poderia esconder estados de espírito perfeitamente contrários, já
que, se de dentro tudo se via para o exterior, para dentro nada se via. O que,
indubitavelmente, agradava a Sabras.
Apoiada
no parapeito da janela do seu quarto, Laíssa deslumbrava-se uma vez mais com a
beleza privativa das traseiras da casa. Ao fundo, do lado esquerdo, a
cavalariça onde Rocinante repousava agora após a curta viagem na qual
despendera as suas forças no puxar de uma reinventada tipóia que, como de
costume, ali os levara. Em frente, prolongando-se até para lá do que a visão
abarcava, o seu imenso jardim seccionado em canteiros que o colorido das flores
dividia; o pequeno lago que um querubim de musgo vestido alimentava com a
cascata nascida na boca do seu cântaro; os irrequietos pássaros que da copa das
árvores desciam pousando nos ramos e parecendo olhá-la, sem que, porém –
sabia-o – a vissem. Daqui a pouco, sorriu ao pensá-lo, chegaria quem razão
seria da sua ânsia de ali chegar: Iohan e Iosef, jovens jardineiros, os dois
únicos homens que os seus olhos podiam apreciar sem o risco de ser vista.
Iohan
cuidava dos canteiros, das folhas secas a boiar nas águas do lago, do arrancar
da mais minúscula erva que a beleza do jardim tentasse contrariar. Laíssa
vira-lhe já o rosto meigo de muito perto, para lá da defesa da sua janela. Um
olhar terno a pousar em cada pétala, umas mãos doces que pareciam pedir
desculpa a cada haste cortada, um corpo esbelto não fosse aquele mancar de
perna direita notoriamente mais curta que a outra. Havia dias, alguns dias, em
que Laíssa se apaixonava por Iohan.
Iosef
não tinha defeito algum. Que ela conseguisse ver, pelo menos. Todo o seu corpo
era virilidade no podar das árvores, no cortar da relva, no aparar dos
arbustos, no carregar das pernadas que, não raro, rachava empunhando um machado
com os seus músculos fortes e suados. O seu rosto era rude, de prematuras rugas
a conceder-lhe a firmeza de um homem. Havia dias, alguns dias, em que Laíssa se
apaixonava por Iosef.
Hoje
nada era diferente. Eles chegaram, como de costume, sem saberem que alguém os
via chegar. Porém, esse alguém, Laíssa, escudada pelo vidro de uma janela,
sentiu que se diferenças havia, residiam nela. Diferenças de que só
gradualmente se foi apercebendo e que não entendia. Talvez provocadas por aquela
espera impaciente, pelo andar gingado de Iosef ou pela indolência de Iohan que,
antes de iniciar o trabalho, deitara o seu belo corpo na relva. Talvez. Certo é
que o seu coração pulsava perante uma cena que não era nova, mas que hoje
tornavam o seu corpo desgovernado, fora dos seus próprios pensamentos, como se,
magnético, quisesse atrair a si aqueles dois corpos. A sua própria carne era
percorrida por suaves frémitos que ela não compreendia, leves pruridos de pele
que ela acalmava com as mãos, um intumescimento dos mamilos que ela, ainda
alheada pelos seus olhos, tentava apaziguar. Estaria doente? Sem saber porquê,
acudiram-lhe à mente imagens de livros antigos, figuras egípcias de casais em
poses que ela nunca compreendera e, sem saber também por que razão, sempre
sentira relutância em perguntar ao pai, que tudo lhe explicava.
Subitamente,
Iosef aproximou-se da sua janela. Conseguia ver-lhe mais de perto as formas do
corpo que, inesperadamente, desejou como nunca antes havia desejado. Viu-o
chegar-se, viu-o afastar-se e, de repente, viu também que os seus olhos, duros
de homem, inquisidores de macho, se fixavam nos dela. Assustou-se, deu um salto
para trás, silencioso mas apressado e receoso. Não podia ser. Ele não poderia
tê-la visto. Ela mesma e o pai tinham feito o teste por várias vezes. Nada,
rigorosamente nada se via para o interior do que aqueles vidros encerravam.
O
coração batia-lhe agora por razões diferentes. Acalmou-o e ela própria se
acalmou deitando-se na cama. Em breve foi esquecendo aquele olhar que mais não
teria sido que casual. Mas aqueles olhos…E todas as sensações anteriores
regressaram. Doces, urgentes. E as mãos percorreram as coxas, acariciaram os
seios, tocaram, nunca aquilo fizera, tocaram o sexo. As suas mãos, as mãos
ásperas de Iosef, as mãos sedosas de Iohan, os seus próprios dedos, o seu corpo
a perder-se muito para além de lagos de jardins, de matizados de flores, de
saltos de pássaros que, como ela, sem asas pareciam voar e se quedavam na boca
de um cântaro que em êxtase água jorrava.
Sem
saber que horas seriam, foi acordada por Sabras. Na ombreira da porta, ar
pesado, o pai olhou-a e disse num quase sussurro:
—
Temos de partir, Laíssa. Não tenho a certeza, mas penso que Iosef sabe da tua
existência.
Capítulo III
Dina Rodrigues
Laíssa,
ficou surpreendida, com a ordem de partida, repentina, do pai.
Subitamente, veio-lhe à
memória, a última noite e aqueles olhos cravados na janela do seu quarto,
aqueles olhos grandes, fixados nos dela, aquele olhar curioso de Iosef, que ela
jamais esqueceria…
Naquele momento, sentiu
uma mistura de desejo e de terror. Teve medo, que ele a tivesse visto, imaginou
que não e depois, pensou que continuava a salvo. Receosa e assustada, deitou-se
e adormeceu. Sonhou com os dois jardineiros, que eles estavam no seu quarto a
acariciá-la, mas, felizmente, tudo não passou de um sonho!
Apressou-se a sair do
quarto porque o pai estava, impaciente, à sua espera. Tinham de partir, mais
uma vez, à pressa, como dois fugitivos.
Tinha sido sempre assim,
nos últimos anos. Escondida do mundo, Laíssa, não se habituava a esta vida de
clausura, em que vivia constantemente. Nunca conheceu a mãe e até desconfiava
que, talvez, tivesse sido criada num laboratório qualquer.
Um dia, perguntou ao pai,
pela mãe e ele respondeu-lhe que ela tinha desaparecido, quando ela ainda era
ainda muito pequenina e nunca mais voltou. Foi crescendo apenas na companhia do
pai mas, nem a proteção constante, nem o carinho do pai, conseguiam preencher o
vazio imenso, que sentia.
Os dias intermináveis,
eram passados a ouvir música ou a ler livros. Eram passados a viver uma vida
através de uma janela, uma vida que se limitava a quatro paredes e a uma visão
de um jardim e de um lago. Tinha uma vida feita de sonhos. Sonhava com o dia em
que pudesse passear livremente pelo jardim e correr pelos campos em redor, mas,
por enquanto, apenas lhe restava dar asas aos sonhos e deixar voar a
imaginação…
Vivia num mundo destruído
pelo homem, na luta e ganância pelo poder.
Agora, a sua vida ia
mudar. Ia partir para outro lugar, um lugar desconhecido… sentia receio pelo
futuro, mas confiava no pai, no destino e naquilo que ele lhe reservava.
Partiram na tipóia,
carregada de livros e alguns bens essenciais. Passaram ao lado de uma grande
cidade, com prédios muito altos, onde, provavelmente, viviam e trabalhavam os
homens. As mulheres, as poucas que existiam, eram obrigadas a andar sempre
escondidas, longe de tudo e de todos – escondidas de um mundo cruel que os
homens criaram e tornaram insuportável para viver.
Viajaram todo o dia,
atravessaram uma floresta e, ao entardecer, chegaram a um local no cimo de um
vale. Começaram a descer por um caminho de terra batida. Ao fundo, duas casas
brancas, sobressaiam no verde da paisagem. Um rio, ladeado de árvores, verdura
e flores campestres, corria livremente pela natureza. Não viam mais ninguém,
mas havia sinais de haver pessoas a viver ali. Assim, à primeira vista, era um
local calmo, bonito e, certamente, bastante mais seguro para viver.
Dirigiram-se para a primeira casa que encontraram e, como a porta estava
aberta, entraram.
A casa era simples. Tinha
uma sala, dois quartos, uma casa de banho com uma banheira de hidromassagem e
um alpendre com um banco de madeira. Na sala, havia uma mesa redonda, posta com
uma toalha branca com flores azuis, com talheres, pratos e copos. O centro da
mesa tinha um pequeno arranjo de flores. Até parecia uma mesa de um filme
antigo, muito diferente das mesas de refeição, das casas da época, mas era
muito agradável de ver.
Estavam, assim, a admirar
a casa, quando entrou uma rapariga, com uma travessa de comida.
- Boa tarde, sejam
bem-vindos, à vossa nova casa!
- Boa tarde –
responderam, um pouco embaraçados. – A porta estava aberta e entrámos.
Cumprimentaram-se, apenas
com um aceno de cabeça. Thays não sentiu medo de Sabras, pois o pai disse-lhe
que não havia nada a recear, ele era amigo dele.
- Eu sou a Thays e vocês
devem ser Sabras e Laíssa. O meu pai disse-me que vocês vinham. É um prazer
ter-vos por cá!
- O prazer é todo nosso!
– exclamaram os dois ao mesmo tempo.
- Laíssa, a Thays é filha
do meu amigo Naldan – disse o pai, que não tinha dito nada para onde iam – foi
ele que nos ajudou a vir para cá.
- Desculpem, mas não me
posso demorar porque deixei o bebé a dormir, o meu filho que tem um ano.
Feitas as apresentações e
depois de conversarem um pouco, Thays pediu que se sentassem à mesa. Ela saiu e
eles começaram a comer. Havia muitas questões a colocar, mas podiam esperar até
ao dia seguinte. Por agora, preferiam saborear, com satisfação, cada pedaço de
peixe assado. O peixe era acompanhado com batata-doce e uma salada verde, uma
espécie de alface. Beberam um sumo esverdeado feito de uma mistura de várias
futas, talvez frutas locais.
Acabado o jantar, que
estava muito delicioso, recolheram aos seus quartos e, finalmente, Laíssa pôde
descansar. Nessa noite não houve sonhos, nem pesadelos, como na última noite,
na casa de campo, em Malpertuis.
No dia seguinte, acordou
cedo e saiu para a rua. Sentia-se livre e alegre, como há muito tempo não
sentia. Foi a casa de Thays e conheceu o filho dela. Simpatizou muito com ela
e, a partir desse dia, passavam quase todo o tempo, juntas.
Ao fim de dois dias,
Sabras, partiu outra vez e ela ficou entregue à sua sorte. À noite, sozinha, no
silêncio do seu quarto, pensou em Thays, também ela exilada, naquele local,
para poder escapar à fúria dos homens.
Thays tinha um irmão
chamado Rafael que vivia na cidade e trabalhava numa agência de viagens
espaciais. Nenhum dos colegas sabia da existência da irmã. Quando vinha a casa
dela, costumava dedicar-se à pesca, na barragem - onde antigamente se produzia
eletricidade, mas que agora estava desativada, devido à escassez da água no
planeta.
A eletricidade, para a
pequena aldeia, era produzida por painéis solares. Havia energia elétrica
suficiente para as três casas. Uma delas, já estava abandonada, em ruínas, sem
ninguém a viver nela.
Thays dedicava-se à casa,
tratava do bebé e de uma pequena horta, para terem sempre fruta e legumes
frescos. Tinha uma namorada que vivia longe e que, de vez em quando, vinha
visitá-la, a ela e ao filho de ambas.
Passo a passo, Laíssa,
começou a percorrer um novo caminho, uma nova vida. Aos poucos, os sonhos
iam-se tornando realidade e já podia andar livremente pela rua, sem medo, visto
que não havia mais ninguém. Todos os dias se lembrava do pai, mas agora, Thays
e o bebé, eram a sua nova família.
Um dia, foi até à
barragem com Thays e, pelo caminho, sentaram-se na margem do rio, a observar os
patos: como eles nadavam felizes, rio acima, rio abaixo, mesmo havendo pouca
água. Assim como os dinossauros se tinham extinguido há muito tempo, também os
porcos e as galinhas desapareceram da face da terra, devido à Gripe aviária e à
Peste Suína que os atacou, sem dó nem piedade, mas os patos, lá continuavam a
dar vida ao rio.
Laíssa olhou para a amiga
e sorriu, ao pensar em como se sentia feliz – naquele refúgio perdido no tempo
– apesar de tudo.
Porém, uma nuvem negra
veio pairar no seu pensamento…
- Thays, até quando vamos
conseguir viver aqui escondidas?
Capítulo IV
Albertina Fernandes
Laivos
de felicidade apenas, afinal de contas. No fundo, quando se entregava à
reflexão sobre a sua própria história, linear e sem condimentos excitantes,
ficava perplexa e com vontade de ousar desafiar os deuses. Via o enlevo da nova
amiga ao cuidar do seu bebé. Um mistério, pois que não se falava do pai, não se
falava de nada, apenas da rotina e dos perigos que os homens representavam para
a sociedade hermética a que ambas pertenciam. Ela pensava que a sua nova – e
única – amiga estava também, sem ter culpa, a contribuir para que o império
machista se sedimentasse ainda mais, ao ter concebido uma criança do sexo
masculino.
Seriam
estes os desígnios de quem desorganizou o mundo com a derrocada da era digital,
dos excessos cometidos contra o Planeta? Ou os deuses não teriam suportado a
possibilidade de as sociedades se tornarem matriarcais? O mundo estava mesmo a
esventrar-se pela sede desenfreada de sexo dos homens que queriam impor-se. Era
deles que elas se protegiam, barricando-se em espaços inalcançáveis, ou levando
uma vida itinerante em permanente fuga, sob as ordens de um pai.
Os
livros que Laíssa lia tinham sido da escolha do pai. Era, diga-se em abono da
verdade, um privilégio o de aceder à cultura pelos livros obsoletos, que se
revelaram os velhos malabarismos da Informática. Laíssa embrenhava-se, pois,
nos mistérios dos livros à moda dos seus antepassados.
Não
eram inocentes as histórias que eles encerravam. Eram aventuras de fazer
sonhar, de fazer corar e de dar largas à imaginação e a sensações ousadas.
Amores e desamores, conflitos e guerras, seres humanos extraordinários capazes
de se entregarem aos outros numa missão de entreajuda, seres com vidas duplas,
por vezes monstros no seu submundo e perfeitos cavalheiros em contexto social.
Quanta diferença do seu estreito universo, encaixilhado por uma janela que lhe
trazia a visão nebulosa e inquietante de dois homens entre flores!
Quantas
vezes se atrevera a imaginar a intimidade dos dois para além dos jardins
encarcerados na propriedade do seu pai! Em momentos de introspecção, achava-se
ela própria uma pessoa pecaminosa, lasciva, com desejos indecorosos que urgia
recalcar, por lhe parecerem sujos e indignos de uma mulher que, para se manter
honesta, fugia dos homens. Será que o pai desconfiou destes pensamentos
estranhos e foi essa a razão da partida para esta nova morada? Ao afastá-la da
visão recorrente dos dois jardineiros, talvez Laíssa regressasse à pureza
primordial e permanecesse naquele estado de confortável beatitude de que o pai
gostava ao apreciá-la. Sim, agora vinha-lhe ao pensamento o verbo “apreciar”.
Curioso, nunca lhe tinha ocorrido que o pai a olhava com um jeito que ela não
sabia ainda definir. A palavra “sexo” soou-lhe como uma campainha. Não duvidara
nunca do amor que o pai lhe votava. Ao mesmo tempo, porém, interrogava-se
quanto à história deste homem quase sempre sozinho, de poucas falas, de
respostas evasivas e que, incitando-a à monotonia dos livros e das flores
presas numa paisagem controlada, lhe coarctava a liberdade. E depois, aquele
olhar, quase às escondidas, como que lhe devassando as formas, os seios, os
cabelos, o desenho plástico do colo quando a via ler. Corou, estremeceu, como
se algo lhe indiciasse o que ele procurava. Talvez o pai a trouxesse para aqui
e se afastasse para resistir à tentação em nada diferente da gula dos outros
homens. E logo se lhe fez luz ao associar esta suposição a um grosso romance -
que lera, nervosa e ávida -, de um escritor antigo. Os Maias, um clássico,
escrito num português como já não se falava. Lembrava-se perfeitamente que ali
se desenrolava uma história escabrosa de paixão desenfreada entre irmãos.
Diziam que se chamava “incesto” a essa relação entre amantes ligados por
consanguinidade.
Era,
então, do incesto que seu pai fugira ao deixá-la nesta pequena aldeia!... Pobre
pai! Não poderia desprezá-lo por isso, mas nunca se veria a entregar o seu
corpo casto ao homem que lhe dera a vida. Pobre pai! Como devia, no seu leito
enorme e vazio, contorcer-se de paixão e de ausência de prazer! E ela? Que
estaria a passar-se com ela, mergulhada neste turbilhão de descobertas? Como
suportar os sonhos eróticos que voltavam e a deixavam exausta pela manhã?
Thays,
no seu afã de doméstica e de mãe, não parecia ter consciência de que a sua
amiga começava a definhar. Como seria Thays na intimidade? Quem seria o pai
deste menino que, volvidos alguns anos, haveria de ser mais um homem como os
outros? Deuses, como não tinha pensado nisso antes? Aquele irmão que aparecia
de vez em quando, quase como um fugitivo, um felino espreitando a presa, o
abraço caloroso, o silêncio a dois. Mas tinha-lhe falado de uma namorada e que
o menino era de ambas…
Laíssa
estava a sentir-se perturbada de mais com as suas congeminações. E ela, ela que
tinha confessado a Thays que achava o seu irmão muito bonito e atraente?
Capítulo
V
Cristina
Torrão
A nova vida
de Laíssa, que tanto a encantara no início, tornava-se-lhe enfadonha, como a
anterior. Os passeios até à barragem, as conversas com Thays e o tratar do bebé
eram experiências gratificantes, mas não compensavam um isolamento que se
adivinhava eterno. Quando se encontrava sozinha, em sua casa, certos
pensamentos incomodavam-na, demasiadas perguntas, para as quais não encontrava
resposta.
Começando
pela própria existência de Thays e do filho… Laíssa fora educada na crença de
que a humanidade se extinguia, de que ela era a única mulher e que, por isso,
tinha de viver protegida. Durante a fuga de Malpertuis, o pai fizera-lhe saber
que havia mais algumas mulheres, que, como ela, eram obrigadas a viver
escondidas. Assim ele a preparara para o encontro com Thays.
Agora, Laíssa
desconfiava que houvesse mais do que lhe admitiam. Conhecera uma terceira,
Eduína, a namorada de Thays, e parecia-lhe que as duas falavam, em surdina, de
outras mulheres. Ficava um pouco magoada, por vezes, ciumenta, por terem
segredos em relação a ela, apesar de gostar das visitas de Eduína, assim como
das de Rafael. Eram mais duas pessoas com quem podia conversar. O irmão de
Thays era, porém, muito reservado e, quando notava os segredos entre os três,
Laíssa sentia-se isolada, como se novamente não tivesse nada mais na sua vida a
não ser o pai, os livros e a música. Com a agravante de que deixara de ver o
pai todos os dias.
Num dia de
piquenique com Thays e o bebé, na margem do rio, atreveu-se a perguntar:
- Não achas
estranho que não se saiba por que foram as mulheres desaparecendo?
Thays
olhou-a um pouco alarmada, mas logo disfarçou, adotando um ar casual:
- Nem os
melhores cientistas conseguem explicar tudo.
- Mas se
foi devido à alimentação, ao ar, ou à água, porque não foram os homens também
atingidos?
- Bem, eu
acredito mais na teoria da radiação que provoca esterilidade.
Laíssa
hesitou, mas não se conteve:
- Pelos
vistos, não foste atingida.
Thays
desviou o olhar, limitando-se a redarguir:
- Não,
felizmente.
- E… posso
perguntar quem é o pai de Míryo?
Depois de
alguns momentos de silêncio, a amiga olhou-a firme e respondeu:
- Míryo foi
concebido através de esperma anónimo. Eduína e eu desejávamos um filho e Rafael
ajudou-nos, pois sabe da existência de bancos de esperma.
Aquela
firmeza no olhar e na voz de Thays pareceu-lhe exagerada, como se a amiga a
quisesse convencer de algo à força, ao mesmo tempo que dava a entender não
estar interessada no continuar da conversa. Mas ela insistiu:
- Haverá
mais mães? Isso queria dizer que a humanidade não está perdida.
Thays
limitou-se a encolher os ombros e, depois, declarou:
- Está a
ficar fresco. Vamos arrumar as coisas, tenho medo que o Míryo se constipe.
A partir
desse dia, Thays começou a desviar o assunto, ou a encolher os ombros, sempre
que Laíssa punha certas questões, por exemplo, porque Eduína não vivia ali com
elas, ou se tinha contacto com outras mulheres, ou porque era Rafael tão
fechado… Ao referir-se ao irmão, a amiga protestara:
- Não deves
insistir tanto em conversar com Rafael, nem em acompanhá-lo nas suas pescarias!
Ele sente-se incomodado. Afinal, vem para aqui à procura de sossego.
Laíssa
perguntava-se que tipo de ligação existia entre os três. Era-lhe impossível
saber, já que, nas suas visitas, que nem sempre coincidiam, Eduína e Rafael
ficavam em casa de Thays, enquanto ela se recolhia sozinha na sua. Um dia,
lembrou-se de perguntar porque estava a terceira casa em ruínas, querendo saber
quem lá tinha vivido. Mas a amiga reagiu novamente com um encolher de ombros.
A
introversão crescente de Thays aumentava a solidão de Laíssa. E o mistério que
rodeava o suposto desaparecimento das mulheres começou a obcecá-la. Quanto não
daria para ser uma detetive em busca de soluções para enigmas, como os dos
policiais que lia! Começou a devorar este tipo de livros e sonhava poder correr
mundo à procura de respostas, contribuindo para esclarecer um complô
gigantesco. Laíssa queria voar. Mas não tinha asas.
Num dia em
que saiu sozinha, e influenciada pela sua sede de conhecer novas paragens,
deixou a margem do rio e atreveu-se pela floresta, perguntando-se se, entre as
pessoas que conhecia, conseguiria convencer alguma a acompanhá-la na sua
investigação. Eduína parecia-lhe ser uma mulher decidida e forte. Além disso,
Laíssa tinha a sensação de que ela possuía contactos e conhecimentos
importantes, parecia, muitas vezes, dar informações a Thays. Poderia confiar
nela?
Ou deveria
falar com Rafael? Seria com certeza melhor ter um homem a seu lado, se
resolvesse deixar aquele local. E, no seu estilo reservado, parecia-lhe que
Rafael, por vezes, tinha vontade de lhe revelar algo, fixando-a hesitante… Ou
seria impressão dela?
E o pai?
Laíssa depressa desistiu desta ideia. Sabras só pensava em protegê-la, nunca
concordaria em embarcar com ela em tal aventura.
Uma nave
cruzou os céus. Laíssa observou-a, pensando na elite que os governava. E deu-se
conta de que ninguém fazia ideia de quem era essa gente. Não havia meios de
comunicação, como antigamente: televisão, internet, jornais, nem sequer
fotografias… De repente, uma nova ideia atingiu-a: seria a Terra controlada por
extraterrestres, obreiros de um qualquer plano secreto que previa apenas a
existência de homens? Usariam eles as poucas mulheres que ainda existiam para a
reprodução, enquanto não a conseguissem exercer em laboratório, mas já estando
em condições de determinar o sexo do bebé nalgum método de inseminação
artificial? Nesse caso, Thays bem podia ser uma dessas mulheres escolhidas para
serem mães. E Eduína seria alguém contratado pela elite governativa, a fim de
acompanhar o crescimento de Míryo…
As suas
conjeturas tinham razão de ser, ou a solidão estava a empolar-lhe a imaginação?
Se tivesse
um meio de investigar…
Um
restolhar desviou-a dos seus pensamentos. Viu um movimento, ao longe, e
escondeu-se atrás de uma grande árvore, com o coração aos pulos. Um homem
aproximava-se, trazendo um cavalo pela mão. Quando ele estava suficientemente
perto, Laíssa reconheceu Iosef, o jardineiro de Malpertuis, o mesmo que talvez
soubesse da sua existência!
Que fazia
ele ali? Vinha à procura dela? Porque desmontara do cavalo e saíra da estrada,
ao aproximar-se das casas onde ela e Thays viviam?
Atrás da
árvore, Laíssa tentava reprimir a sua respiração ofegante, enquanto Iosef
passava por ela, felizmente, a vários metros de distância. De repente, porém, o
cavalo inquietou-se. A sua sensibilidade animal tinha, com certeza, dado conta
da presença dela.
Iosef
parou, enquanto sacava do seu punhal, olhando em volta. Laíssa quase desmaiou,
mas o homem retomou o seu caminho, devagar e atento. Acabou por se afastar e
ela suspirou aliviada. Tinha, porém, de permanecer alerta, Iosef parecia
deslocar-se na direção das casas. Ela e Thays estavam sozinhas, nem sequer
Eduína se encontrava de visita!
Em vez de
entrar em pânico, contudo, Laíssa sentiu uma grande força dentro de si, uma
resolução inabalável. Dera-se conta de como o receio podia ser sedutor. Nunca
se sentira tão viva como naqueles momentos de aflição que passara atrás da
árvore, fazendo-a esquecer-se da sua existência enfadonha, despertando-lhe o
espírito aventureiro… Como se lhe desse asas! Procurou um tronco grosso e,
armada com ele, seguiu Iosef à distância, determinada a defender Thays e Míryo,
se preciso fosse!
Ocorreu-lhe
que não sabia se Iosef vinha com más intenções. Porque pensara assim? Com
certeza, devido à sua compleição musculada, ao rosto rude, que sempre a
amedrontaram, quando o observava em Malpertuis. Um medo que, contudo, se
misturara com atração física, nos últimos tempos. E, de repente, Laíssa pensou
que Iosef, forte e destemido, seria o parceiro ideal na sua investigação!
Urgia,
primeiro, saber quais as suas intenções. Armada com o tronco, seguiu-o à
distância e viu-o deixar a floresta, em direção às casas.
Capítulo
VI
Zé
Medeiros
Movia-se com a
leveza da brisa que soprava morna, fazendo-se ocultar pelas giestas, loureiros
e moitas de alecrim que se estendiam até junto das casas e, à medida que Iosef
avançava, procurava ir-se aproximando dele, sempre com o cuidado de evitar que
a montada desse de novo pela sua presença.
De repente, ao
avistar Thays, que se encaminhava para o pequeno telheiro onde arrecadavam a
lenha, Iosef desviou-se lesto, puxando a montada pela rédea com um gesto
enérgico, ocultando-se por detrás da ruína de um dos muros de pedra que
limitavam a área de cultivo.
Laissa entrou em
novo sobressalto, ao vê-lo atar o cavalo a uma velha cepa de carvalho e seguir
sorrateiramente por uma estreita vereda, de modo a conseguir aproximar-se sem
ser visto. Ressurgiu-lhe a inquietação sobre as reais intenções do robusto
jardineiro. Desviou-se por entre os feijoeiros que ficavam no extremo da horta
e a abrigavam dos ventos de leste, desceu os toscos degraus que levavam ao
tanque e foi já junto da casa em ruína que se assestou na ombreira de onde
houvera uma porta e se deteve espreitando, para ver Iosef agachar-se e ficar a
observar os movimentos de Thays.
Pensou que, se por
ali houvesse más intenções, teria de criar uma estratégia imediata para
conseguir evitar qualquer desgraça… pensou que o tronco e os conhecimentos que
ela e a amiga tinham de Sambo, a antiga arte de defesa pessoal em que os pais
de ambas eram mestres e parceiros e que tão bem lhes tinham transmitido para
situações como a que se adivinhava, podiam ser uma mais valia… pensou que se
estivesse a subestimar a robustez e destreza do adversário… Não teve tempo para
mais pensar, porque ao ver Thays regressar a casa com uma braçada de achas,
Iosef encetou uma surda corrida rasteira na direcção da amiga, de todo alheia ao
perigo iminente. Mas teve tempo para, com a leveza e agilidade felina que a sua
figura esguia e esbelta fazia adivinhar, se lançar, qual pantera em momento de
caça, alcançando rapidamente o agora adversário que, ao sentir-lhe a presença,
apenas conseguiu esboçar uma pequena torção de tronco, para logo cair abatido
por violento golpe do outro tronco, o que lhe acertou em pleno, enquanto Laissa
gritava - AJUDA AQUI, THAYS!
Atordoado e à
beira de perder consciência, Iosef tentou erguer-se e levantou o braço esquerdo
em jeito de desorientado pedido de trégua, para de pronto o ver agarrado e
dobrado para trás das costas pela atacante, levando-o a tombar para o lado,
enquanto Thays já o alcançava e lhes rodeava o pescoço com uma braçada firme,
dominando-o por completo. O aperto intenso e controlado que se seguiu, foi de
todo eficaz para conseguir o resultado pretendido… o de o deixar inconsciente
por alguns momentos… os suficientes para Laissa correr ao curral e voltar com
um arreio com que em segundos atou firmemente os pulsos do inebriado atacante,
dando volta adicional por sobre o ombro, rodeando o pescoço e voltando ao
início, para depois de nova laçada, descer até atar também os pés, de jeito a
que não lhe restasse qualquer possibilidade de reacção. Desapossado da bainha
com o temível punhal e agarrado pelos pés, lá deslizou, puxado pelas destras
amigas, até debaixo do alpendre que cobria parte do pátio em frente da casa.
Com um movimento conjugado, foi erguido num repente para cima do longo banco de
madeira que tão bons momentos de repouso e conversa costumava propiciar em
alturas de convívio.
Recuperando da
surpresa, Thays foi perguntando como se tinha a amiga apercebido do intruso e
como tinha ele chegado até ali.
Falou-lhe que
viera a cavalo e que, agora se lembrando, era preciso ir buscá-lo onde ele o
tinha amarrado; que se tinha apoquentado ao ver que ele tentava alcançar Thays
furtivamente e que isso a tinha feito pensar que deveria ter má intenção; que
era preciso decidir rapidamente o que iam fazer com ele; se seria melhor que
uma delas tratasse de conseguir ajuda; que poderiam fazer para…
- Laissa?! És
mesmo tu, não és? A filha de Sabras? - Ouviram espantadas, voltando-se para ver
Iosef a tentar sentar-se sem grande sucesso, por causa da rédea que o manietava.
- Oh!!! Tu
conheces?! Tu conhece-lo? – Disparou Thays.
- Sim, claro que
conheço… era jardineiro de meu pai em Malpertuis. E foi por me parecer que
sabia da minha existência que decidimos sair de lá. Por parecer que me via
através da janela. Afinal parece que via mesmo… Como é que conseguias ver-me,
com aqueles vidros? Que fazes aqui, Iosef? Como soubeste deste lugar? Que ias
fazer a Thays?
- Calma, calma!
Ajuda-me a sentar que eu explico. Não têm nada a recear de mim, juro. Antes
pelo contrário. Por favor…
O choro de Míryo,
despertado pela algazarra gerada pela situação, levou Thays a correr ao quarto
para o trazer, traçado sobre a anca esquerda, para junto deles.
O jardineiro abriu
um largo sorriso de encanto ao ver o filhotinho da amiga de Laissa, perguntando
se estaria mais gente em casa.
- Tu… tu é que
tens de explicar bem o que fazes aqui. Estamos à espera, vá! - Disse ela,
enquanto a amiga acabava de sossegar o filho tirando uma das sementes de pinha
que trazia no bolso da blusa e lançando-a a espiralar, do alto do braço
estendido até ao chão.
- Tens razão, sim.
Vou tentar ser breve, para que se deixem ambas de receios. Bem… fiquei a saber
da tua existência porque numa dada tarde escutei uma conversa entre o teu pai e
Laygar, falando despreocupadamente, sem imaginarem que eu ainda estava agachado
por trás da sede do tanque, a cuidar do corta-relva. E fiz tudo para que não
dessem por mim até se afastarem, porque era assunto que muito me interessava.
Depois, mais
curioso e atento, em dado dia, ao baixar-me para transplantar umas prímulas
para a floreira que fica por baixo da janela, acabei por descobrir que havia
uma pequena falha no isolamento do vidro, por onde, para lá de confirmar a tua
existência, de quando em vez, ficava a admirar-te… até àquele dia em que deste
por isso.
Ora bem… tudo isto
porque também eu tenho uma criança, uma menina que é a verdadeira alma da minha
vida, a Thyara, que já vai nos seus dez anitos e vive numa desesperante
clausura que vocês bem devem conhecer. Tenho conseguido protegê-la, mas como
herdou de mim a curiosidade e é muito aventureira, não me dá nem um momento que
seja de tranquilidade sempre que tenho de deixá-la ao cuidado do meu pai, com
quem vivo.
Então, quando
cheguei a Malpertuis e percebi que tinham partido, não descansei até encontrar
teu pai. No dia em que finalmente consegui, contei-lhe a minha situação,
levei-o junto de Thyara e deixei-o tão comovido quanto preocupado. Tanto que
logo pediu ajuda a Naldan. Foram então eles que, em concordância, me deram todas
as indicações para vir ter convosco, rodeado das maiores cautelas para não ser
seguido e propor-vos mudar para cá com filha e pai, onde poderia recuperar a
casa abandonada para mim e para os meus, assumir os cuidados da terra e ser o
guardião do lugar.
Enfim, como não
conhecia Thays pessoalmente, estava a aproximar-me para ver se te via, Laissa,
para me assegurar que estava no sítio certo, quando afinal foste tu a
encontrar-me… e de que maneira… nossa!!!
Laissa e Thays,
trocando olhares comovidos, ficaram mudas durante alguns instantes.
Capítulo VII
Joaquim Henriques
Thays
quebrou o silêncio emocionado que se tinha instalado para dizer a Iosef que
descansasse e se recompusesse da pancada desferida por Laíssa, que mais tarde
falariam. Isto enquanto, ajudada por Laíssa, o desatava e o ajudava a pôr-se de
pé.
Encaminharam-se
para a casa de Laíssa, onde Iossef se deitou e quase de imediato adormeceu de
cansaço e emoção pelo que tinha passado.
Thays
fez sinal a Laíssa para saírem.
-
Laíssa, confias em Iosef? Que pensas de tudo isto?
-
Minha querida Thays, se Iosef me quisesse mal já o poderia ter feito há muito
tempo, mas guardou o meu segredo e calando-se ajudou meu pai a proteger-me.
Tenho a certeza que podemos confiar nele.
-
Sendo assim, amanhã vais ajudá-lo a escolher uma das casas para que se possa
tratar da mudança o quanto antes. Agora vou preparar algo para jantar e tu
vigia Iosef. Assegura-te que ele não ficou com sequelas da pancada.
Com
estas palavras, Thays dirigiu-se com Míryo para casa e Laíssa apressou-se a
voltar para a sua. Foi direita ao quarto e quedou-se a observar Iosef, que
dormia placidamente. Era moreno, com a barba de alguns dias, algumas rugas.
Todo o seu semblante transmitia confiança e tranquilidade.
Laíssa
sentiu que o seu coração se enchia de ternura por aquele gigante e que o seu
corpo se sentia irresistivelmente atraído por ele. Uma sensação estranha
subia-lhe pelo corpo, uma espécie de arrepios de calor e frio, e teve
pensamentos que a fizeram corar. Respirou fundo para se recompor e tocou-lhe na
testa para ver se tinha febre, estava fria, não resistiu e fez-lhe um carinho
na face. Ele mexeu-se no sono e Laíssa saiu imediatamente do quarto com receio
que ele acordasse e a visse tão vermelha.
Laíssa
decidiu ocupar o resto da tarde a fazer os exercícios da arte marcial de defesa
em que o pai a tinha iniciado desde pequena. Era algo que adorava fazer,
fazia-a sentir-se focada, concentrada e, acima de tudo, que seria capaz de se
defender em caso de ataque. Aliás, hoje tinha tido a prova disso com Iosef, que
tinha quase o dobro do seu tamanho e que ela tinha conseguido dominar.
Ao
por do sol, Thays veio chama-la para o jantar. As duas acordaram Iosef, que
estava completamente recomposto e esfomeado, e os três degustaram uma refeição
simples de peixe grelhado com ervas aromáticas, pão chato e legumes cozidos.
Thays
informou Iosef de que ele e a sua filha seriam muito bem-vindos ali. E quanto
mais rápido melhor, era necessário colocar Thyara a salvo num meio onde se
pudesse desenvolver livremente. Laíssa também lhe assegurou que era bem-vindo e
que a chegada de dois novos habitantes seria uma lufada de ar fresco para elas.
Descreveram-lhe o local em pormenor, ficando a promessa de que no dia seguinte
Laíssa o acompanharia numa visita guiada.
Com
esta ideia no pensamento, Iosef retirou-se para a casa de Laissa, tendo esta
ficado a dormir em casa de Thays.
Cada
um se deitou com pensamentos muito diferentes na cabeça. Laíssa com um
sentimento de felicidade, Iosef com um enorme alívio por saber que Thyara
estaria segura ali e Thays com receio do que a presença daquele estranho faria
no equilíbrio da diminuta comunidade.
Laíssa
acordou na manhã seguinte e imediatamente se dirigiu à sua casa, onde encontrou
Iosef já acordado e de volta do seu jardim. Que
homem magnifico! Pensou…
-
Bom dia Iosef, dormiste bem? Vamos ver a tua futura casa?
Iosef,
com um sorriso no rosto, imediatamente largou tudo, enfiou a camisola e saudou
Laíssa com alegria.
Começaram
a caminhar lado a lado e Laíssa disse:
-
Iosef, sempre estive convencida que me tinhas visto naquele dia, e foi por essa
razão que meu pai me trouxe para aqui.
Iosef
anuiu.
–
Sim, e já te tinha visto noutras alturas. Sempre tive um sentimento protetor em
relação a ti, Laíssa. Fui pai muito cedo e a mãe de Thyara morreu durante
parto… a minha doce e frágil Myella. Foram horas negras para mim, mas por amor
à minha filha fui forte e mantive-me são.
-
Onde conheceste a tua mulher Iosef? Sempre acreditei que era a única e tenho
vindo a descobrir que existem mais.
-
Laíssa, talvez Sabras tenha preferido manter-te na ignorância para teu bem, e
não me cabe a mim contar-te.
-
Iosef, por favor, diz-me!
Iosef
quedou-se pensativo durante alguns momentos e depois concordou.
-
Contar-te-ei tudo o que sei, depois de ver a minha futura casa. Pode ser, minha
doce Laíssa?
Laíssa
ao ouvir as palavras de Iossef sentiu um arrepio de antecipação percorrer-lhe o
corpo. Primeiro por ir saber mais sobre o mistério que a atormentava e em
segundo lugar por ele a ter tratado por “doce Laíssa”.
Guiou-o
à casa abandonada. Esta estava um pouco decrépita, mas com um pouco de trabalho
Iosef estava certo de que ficaria em boas condições. Era a casa com maior
número de quartos, uma casa de família. Iosef estava feliz e já se imaginava
ali com a filha e quem sabe… com mais alguém ao seu lado.
-
Laíssa, aquilo que te vou contar é algo chocante, mas talvez seja altura de o
saberes: existem mais mulheres, sim! São conservadas em cativeiro pelas elites
para seu uso e conveniência. São haréns fechados e muito vigiados. Eu nasci num
desses locais, filho de um ancião e de Grya, a sua mulher principal. Cedo
reneguei aquela existência, ninguém deve ser escravo de ninguém. Myella também
era filha de um ancião. Moeda de troca que eu consegui salvar a tempo de evitar
um casamento forçado e a quem muito amei.
Fugimos
para Malpertuis e fomos felizes algum tempo, até que o universo entendeu levar
Myella e deixar-me só com Thyara. Durante muito tempo vivi só dedicado à minha
filha e sem grande esperança no futuro, mas, agora aqui, vejo renascer a
esperança e quem sabe o amor, minha doce Laíssa…
Capítulo VIII
José
Bessa
Manhã
cedo, Orionte foi descendo lentamente o vale em direcção às casas.
O
vagar com que o fazia não lhe revelava a idade já avançada, mas o hábito
expectante que a vida lhe ensinara. Só após o nascimento da neta se fixara;
mantendo apenas a peregrinação anual às Três Marias como ritual de
transcendência. De resto, para além das tarefas diárias necessárias à
sobrevivência, só as deambulações em ritmos e hábitos contemplativos.
Quem
o visse, agasalhado apenas com uma túnica, apoiando-se num bordão e levando de
bagagem somente uma velha mochila, lembrar-se-ia de contos antigos, ascetas e
profecias. Apenas duas peças da indumentária faziam regressar aquela imagem à
realidade dos novos tempos; as botas, adaptadas à árida gravilha que grassava
alastrando-se na paisagem, e, por contraposição, um indiscreto medalhão que
usava sem rebuço, apesar da proibição em se exibirem quaisquer objectos que
transportassem memória.
Orionte
não era um rebelde incitando pessoas para comportamentos à margem das
imposições superiores, não, ele era superior, e surpreendentemente admirado por
quem o via surgir.
Uma
nave pairou sobre as casas. Homens, mulheres, e crianças mostraram-se, como era
ordem expressa, e os cabelos elevaram-se num efeito bizarro. Fixaram o óvulo
exterior para identificação ocular e aguardaram sinal para continuar as suas
tarefas. Orionte mantinha os seus óculos de Sol, ostentando-os à câmara
circular que, sem sucesso, tentava estabilizar o seu olhar.
Um
sorriso cresceu-lhe nos lábios. Ah… como gostava de provocar…
Foi
notada a atitude cómica do recém-chegado, de braços abertos como quem se
oferece, e longo cabelo no ar dissipando electricidade estática na brisa da
manhã.
Quando
a nave abandonou o local elevando-se lentamente no céu garço, abeiraram-se do
forasteiro perguntando-lhe se necessitava de alguma coisa; mas não, Orionte
gostava de apreciar a surpresa que provocava «Não, muito obrigado, aguardo só o
meu filho…», e aninhou-se encimando a pequena coluna que outrora segurava um
portão, lembrando um capitel.
Aquele
desconhecido sentado em frente da casa devoluta gerava alguma curiosidade e
inquietude, no entanto, o local regressou a uma aparente normalidade e os
poucos habitantes dispersavam para a suas rotinas solitárias. Thays e Laíssa
levaram Míryo para mais um passeio à albufeira. No topo da colina avistaram-se
três vultos que chegavam, Laíssa acenou como se os esperasse. Alguém aguardava
na borda do lago, e…
-
Rafael?!. Bom dia… Que fazes cá tão cedo?... Não te esperava…
-
Vim despedir-me…
-
Despedir-te?! Mas, despedir-te?...
-
Sim, Thays, vou fazer uma viagem e, talvez não volte…
-
Fazer uma viagem, onde? Nunca me tinhas falado em viajar; e, vais com quem?
-
Vou só…
-
Só?! Mas… queres-me contar-me o que se passa?... Tu és meu irmão…
-
O superiores tinham-me prometido que, se superasse os objectivos, me dariam a
oportunidade de… viajar e… talvez ficar a viver lá…
-
Lá?!... Mas… Onde fica “lá”? E, quem são os “superiores”?
-
Não posso dizer-te, Thays… Não estou autorizado.
-
Rafael! Por amor do Universo! Não me deixes nesta ignorância! Diz-me! Que é
isso de, “objectivos”?!
-
Não posso dizer-te mais do que - é um local escolhido onde vivem pessoas, em
comunidade…
Laíssa
assistia à conversa com a habitual atenção, mas sem intervir. Tantas vezes
tinha questionado aquela paz, aquela vida controlada mas não escondida… Um dia
perguntou ao pai o que ele sabia sobre aquela comunidade e ele respondera-lhe
que por enquanto não lhe poderia dizer nada, «temos de ser prudentes, Laíssa…»,
que era um local seguro, que ficasse tranquila. Quando o questionou sobre o pai
de Míryo, alertou-a «tem cautela!… não faças perguntas embaraçosas… podemos ser
expulsos…». Sim, já tinha sentido o incómodo quando questionara Thays sobre o
filho, e na evasão de Rafael ao aperceber-se que ela lhe iria perguntar sobre a
agência de viagens.
Era
agora o momento de obter respostas do Rafael sempre esquivo, agora, ou nunca…
agora, que ele ia embora definitivamente e não teria problemas em revelar o que
sabia, agora, que pensava viver com Iosef, agora que iria ter uma família,
talvez… Era o momento!
-
Rafael, tu e… a Eduína, são as únicas pessoas que nos visitam que conhecem
outros locais, outras gentes. São as únicas pessoas que nos podem contar como é
lá fora… E agora, tu vais embora… E vais sem nos dizeres nada que nos possa
ajudar a entender o que se está a passar, o que sabes destes segredos, dos
motivos que geram este medo constante?... O que sabes tu, Rafael, que não nos
podes dizer?...
-
Nunca te perguntaste como era possível, tu, Laíssa, e as outras mulheres desta
pequena comunidade poderem circular sem preocupações, sem se manterem
escondidas ou dissimuladas; e nunca terem desaparecido?
-
Sim, estranhei, perguntei-vos até, e só obtive evasivas. Eu nunca tinha vivido
assim, só tinha conhecido a clausura e o segredo, os cuidados para ser
invisível, a protecção do meu pai que tinha medo que soubessem da minha
existência… cheguei a acreditar até que não havia mais mulheres…
-
Já pensaste, Laíssa, que quase todas as mulheres pensam que são, a única
mulher? Já questionaste, porquê? Porque pensam assim?
-
Não entendo, Rafael…
Rafael
estava num estado nervoso próximo do transe. Vagueava o olhar vítreo entre a
irmã o sobrinho e o ondular da água. Um misto de vergonha e culpa apoderou-se
dele provocando-lhe um tremor que mal conseguia disfarçar. Balbuciava frases
sem nexo, sussurrantes; circulava titubeante à volta delas.
-
Olha para a minha irmã… O problema não é semente Laíssa, semente compra-se!
Terra não. Onde está a nossa capacidade de gerar? Onde germinam as nossas
vergônteas? Onde vês terra Laíssa? Para onde levaram a terra Laíssa? Já
pensaste nisso? E, com que finalidade se rouba a terra a esta Humanidade?
-
A “esta” Humanidade, Rafael?!
-
Sim. Já te passou pela cabeça que pode existir outra Humanidade? Ou; várias
Humanidades?!
Orionte
tinha-se mantido por perto em intencional invisibilidade mas atento ao
desenrolar da conversa. Desconhecia quem era Rafael e que informações tinha,
mas estava cada vez mais curioso com o avançar da conversa e adivinhava que
aquela personagem podia ter respostas para muitas dúvidas antigas, quem sabe, a
resposta para alguns mistérios que assolavam quem se preocupava, quem era
curioso, quem questionava.
-
Unanimidades! Quer o senhor dizer…
-
Hã!
-
Desculpe?…
-
Apresento-me… Chamo-me Orionte, e cheguei esta manhã…
Thays
manteve Míryo firmemente no colo, num sinal de posse nada habitual.
-
Ouvi-o falar em Humanidades… Estou curioso… No tempo que levo de vida só
conheci comunidades; gentes separadas cuidando da sua individual sobrevivência
sem futuro além da vida pessoal, pessoas sem a noção de conjunto geral, do Ser
Universal… pessoas a quem antes chamavam egoístas porque tinha conhecimento do
todo mas não lhe tinham respeito, e agora só conhecem a parte imposta por
alguém que desconhecem. O senhor Rafael conhece mundos para além deste mundo?
Humanidades para além desta, chamemos-lhe também, Humanidade? Parece-me que
sim… Trabalha em viagens, não é? Viagens… O que nos pode dizer então, agora que
está de saída não pensa voltar e deixa família?
-
Pai! Então; chegou sem aviso? Sempre o mesmo…
-
Olá Iosef! Ainda bem que chegas…
O
encontro com os três recém-chegados veio arrefecer a ansiedade da conversa.
Orionte cumprimentou Naldan já com Thyara ao colo, Iosef beijou carinhosamente
Laíssa acariciando-lhe o cabelo, Thays estreitou Míryo com carinho e deu a mão
ao pai que olhava por cima das cabeças procurando Rafael. E naquele instante,
naquela reunião em que todos se cumprimentaram com alegria, sentiu-se o calor
humano do encontro, o afecto dos iguais, a fraternidade que “alguém”, um dia,
pensou poder destruir pela mutilação.
Juntaram-se
ali, naquele momento, quase três famílias… três gerações. Só Rafael se
ausentara…
Rafael
transportava o queimor do remorso, da perfídia, da insídia para com todos,
daquela Humanidade.
Capítulo
IX
Luísa
Vaz Tavares
Apesar
de a noite já cair sobre aquele lugar perdido não se sabe bem onde, Orionte
mantinha os óculos escuros. A comunidade tinha-se reunido novamente antes do
descanso noturno para aproveitar ao máximo a presença dos três chefes de
família, que deveriam partir logo pela manhã. Todos aparentavam sentir-se
confortáveis dentro daquela paz artificial. Todos menos Orionte. Orionte
servia-se dos óculos para observar Laíssa, sem ser notado. Ela também não se
sentia confortável.
Laíssa
mexia-se e remexia-se com uma inquietude que mais ninguém parecia notar. Não
prestava atenção à conversa e até aos carinhos de Iosef, respondia de uma forma
automatizada.
As
palavras de Rafael não lhe permitiam tranquilidade. E Orionte?… A resposta
intempestiva que o fizera sair de detrás da moita para questionar Rafael.
Saberia ele de alguma coisa que nunca demonstrara? Não, o mundo não podia
resumir-se apenas àquilo que ela sabia. É certo que naqueles livros que o pai
selecionava para ela ler se descrevia um mundo muito mais complexo. Mas o pai
também lhe dissera que as coisas tinham regredido, que a fúria desenfreada com
que o ser humano tinha abusado dos recursos do planeta tinha feito com que se
tornassem escassos e por isso agora eram só para as elites. Era uma explicação
plausível, lá isso era. Ainda assim, não a desinquietava… e as mulheres? Porquê
aquela perseguição? Quase mito… de que eram em número tão reduzido, que eram
procuradas como objectos preciosos.
Era
isso. Era assim que se sentia! Um objecto. Uma coisa que o pai e Iosef
manipulavam a seu bel prazer.
-
Laíssa… Laíssa, querida?...
-
Hum… o quê? O que foi?
-
Querida, estou a chamar-te há que tempo e não me ouves.
-
Desculpa, estava distraída…
-
Isso vi eu… olha, vou dormir que amanhã eu, o teu pai e Naldan partimos cedo.
A
noite foi muito agitada dentro de si própria e quando os três homens se
juntaram para rumar ao seu destino, Laíssa já lhes tinha preparado tudo o que
precisavam levar, despedindo-se sem mais demora. Parecia que os queria ver
pelas costas. Pensou, ao vê-los desaparecer na curva do caminho. Não devia ter
agido assim. Mas pronto, já estava… encolheu os ombros e voltou para dentro de
casa.
Com
a luz do dia ainda difusa, tropeçou numa caixa grande que estava encostada à
parede, no seu quarto. Era uma das que tinha trazido de Malpertuis. Por
esquecimento ou por falta de tempo, tinha ficado para ali arrumada. De súbito,
parou quando viu o conteúdo derramado. Como é que nunca mais se lembrara
daquilo? A caixa continha livros. Um livro em especial que tinha escondido no
meio dos outros. Na véspera de o pai lhe ter anunciado a fuga inesperada,
tinha-o encontrado no quarto dele. Estava escondido no fundo de uma gaveta, com
vários objectos sem importância por cima. Primeiro ainda pensou em lhe
perguntar se o podia ler, mas logo mudou de ideias. Se o pai o tinha ali
escondido, era porque não queria que ela o lesse…
Ávida
de descobertas, Laíssa sentou-se na cama com o livro no colo. A primeira coisa
que reparou foi a data da primeira edição. Era bastante mais recente que os que
habitualmente lia. Aquele livro tinha pelo menos, menos um século que Os Maias,
Amor de Perdição e outros que tais. Datava do início do século XXI. Começou a
ler devagar. O livro contava a história de uma mulher. Uma mulher muito
importante, que tinha sido CEO de uma grande multinacional. Não imaginava o que
poderia ser isso, mas com certeza era algo com muito poder. Essa mulher trabalhava
com a internet e deslocava-se num carro que ela própria conduzia. E mais
surpreendente ainda: lidava com os homens de igual para igual. A princípio
pensou que fosse uma história inventada, como aquelas que o pai lhe contava
quando era criança, mas à medida que avançava na leitura, ia sentindo cada vez
mais a realidade de tudo o que ali era relatado. Até porque a mulher, para além
de tudo o que lhe era estranho, tinha outra parte da vida onde era mãe e esposa
como ela sempre pensara que tivessem sido as suas antepassadas.
Mergulhou
de tal maneira na leitura, que às tantas já se sentia ela própria a
protagonista da história. E lia como uma faminta que precisava daquelas
informações como de pão para boca. Ah, como gostaria de ter sido aquela mulher…
revia-se perfeitamente nela.
Tinham
passado algumas horas quando retornou à realidade. Continuava sentada na cama,
com as pernas estendidas e recostada na almofada que tinha ao cimo. Ainda tinha
o livro no colo, mas agora estava aberto na última página. Virou a capa e leu o
que não tinha lido antes: “Biografia Autorizada de Mary Barra”.
Estava
atordoada com tanta informação, mas de uma coisa tinha agora a certeza: as
mulheres podiam ter um papel muito
mais interveniente na sociedade. Tal como ela sempre imaginara e nunca se
atrevera a revelar, por recear que fossem delírios da sua mente inquieta.
Porque é que o pai lhe impedira o acesso
àquele conhecimento? Num sentimento de benevolência, decidiu que ele o fizera
para a proteger. Para evitar que a sua ansiedade por mudar o mundo extravasasse
para fora do seu pensamento e a levasse a meter-se em sarilhos graves… muito
graves. Pois o pai conhecia-a, sabia o pequeno monstro que tinha criado mesmo
contra a sua vontade. Desde muito pequena que aquela sede de entendimento, a
fúria pela reclusão a que estava sujeita, as manhas para driblar todos os
contratempos se tornaram evidentes para o pai, que tudo tentara para a refrear.
O pai apenas quisera protege-la de si própria, como qualquer pai sempre faz de
tudo para proteger os filhos. Mas agora era tarde…
O
monstro saíra de dentro dela e já não havia forma de o parar. Laíssa precisava
saber mais sobre aquele outro tempo que até então desconhecia. Mas como? Onde é
que podia ir buscar o que precisava? Falar com o pai estava fora de questão. Se
conseguisse um acesso à internet… mas nem sabia onde pudesse existir.
Rafael!
Era isso, se conseguisse falar com Rafael talvez arranjasse maneira de o
persuadir a leva-la a algum lugar onde houvesse esse acesso.
Levantou-se
para ir falar com Thays. Não iria revelar nada à amiga, mas talvez fazendo-a
repassar as últimas conversas com o irmão, detectasse alguma pista que a
levasse a um contacto com Rafael.
Estava
entre portas quando ouviu o zumbido metálico que tão bem conhecia. Não! Dessa
vez não ia mostrar-se ao controlo. Só ela sabia a revolta que sentia de cada
vez que tinha de se por a jeito para aquele olho indiscreto. Voltou para dentro
de casa e varreu o espaço com os olhos à procura de onde se esconder. Fixou-se
no alçapão que se habituara a ver ali no chão do quarto. Afinal, aquele abrigo
que sempre lhe lembrara guerras antigas, não eram tão antigas assim.
Desceu
os degraus, fechando a portinhola por cima da cabeça, e aninhou-se no escuro à
espera que o perigo passasse. Sim, porque para ela aquele é que era o
verdadeiro perigo. O perigo de não saber de nada, de não a deixarem evoluir, de
não a deixarem crescer… de não a deixarem mudar o mundo.
Passou
um tempo indefinido, até que ouviu o zumbido afastar-se. Saiu com cautela e dirigiu-se
para a rua. Naquele instante sentiu um vazio dentro de si. O silêncio que
sempre sentira como a grande harmonia daquele lugar era agora aterrador. Correu
a casa de Thays, foi até à albufeira, chamou Thyara e também a amiga. Gritou
alto, muito alto, a ver se alguém a ouvia. A resposta era apenas o eco da sua
voz.
Estaria
outra vez só?
Desfalecida,
deixou-se cair sobre os joelhos dobrados… de repente olhou e viu Orionte pelas
costas, de mochila ao ombro e bordão na mão.
Capítulo X
Paula Madeira Alexandre
Todos desapareceram:
homens, mulheres, crianças. Tinham sido levados. Restavam eles. Orionte
ajoelhou-se ao lado de uma Laíssa desfeita em lágrimas. Ele mesmo tentando
controlar as que teimavam em rolar pelo seu rosto. Se por um lado, a sua experiência
lhe havia dado a sabedoria suficiente para saber que aquele dia chegaria, por
outro lado a sua visão enquanto avô quase lhe garantira que nunca isso
aconteceria. Nunca com a sua neta. Ficaram ali os dois ajoelhados, como que
parados no tempo, a olharem para as águas do rio sem perceberem que tipo de
água na realidade viam, se a do rio se a dos seus olhos.
- O que se passou? Para
onde foram todos? O que vai ser de nós? Estamos sozinhos – perguntava Laíssa
num misto de tentar entender o que se passara e a espera de uma resposta. - Nós
escapamo-nos porque nos escondemos - respondeu Orionte.
- Regressemos a casa
rapidamente. Não podemos ser vistos - avisou Orionte.
Em passo acelerado,
regressaram à casa de Laíssa. Fecharam todas as portas e janelas. Não poderiam
dar a entender que alguém teria ficado para trás. Especialmente uma mulher.
Sentados no sofá e mais calmos, Laíssa tentava perceber o que se passara
buscando nos olhos e na boca de Orionte as justificações para o que se passara.
Num gesto repentino, Orionte levantou-se e dirigiu-se para a lareira em frente.
Virando-se para o sofá onde Laíssa se encontrava, começou a sua explicação.
- Sabes Laíssa, o mundo
antigo viu no controle da água, bem essencial e primordial, uma fonte de poder
sobre o resto do Mundo. Como toda a ganância de poder absoluto exige, teria de
haver controle também em outras áreas fulcrais. A mulher foi a escolhida. Elas
sempre assustaram, com o seu poder de influência sobre as outras mulheres, que
era preciso silenciar num mundo que se quer controlado por homens e as quer
utilizar como objecto doméstico e sexual. A procriação também é controlada por
este Governo de ditadores. É essencial nascerem mais meninos do que meninas
para que este controle não se perca. Eu próprio estive durante anos encerrado
num local, uma espécie de harém, e tive várias mulheres. O meu filho Iosef
nasceu de uma delas.
Laíssa sabia onde ele
havia estado. Iosef tinha-lho contado. Ficou algo estupefacta, ainda que de
certo modo já disso soubesse, com o controle exercido sobre as mulheres. O
livro que leu sobre Mary Barra veio-lhe à mente. As mulheres realmente
tinham-se tornado poderosas influenciadoras, daí todo este controle sobre elas.
Por isso é que, até hoje, as poucas mulheres foram pensando que eram as únicas
sobreviventes. Para que não se juntassem e se revoltassem.
- Eu consegui sair em
liberdade – continua Orionte perante uma Laíssa atenta mas perplexa com tudo o
que ouve – porque fiquei velho e já não servia para procriar. Trouxe comigo o
meu filho. Os homens de físico mais forte são libertados para serem enviados
para trabalhar nos campos. Os mais débeis também saem – aqui Laíssa recorda-se
de Iohan. - Os restantes ficam para procriarem, seja pelos meios naturais ou
para fornecerem um banco de esperma que será posteriormente manipulado conforme
os objectivos para os nascimentos: quantas meninas e quantos meninos. As
mulheres estéreis têm os filhos. As outras servem para alimentar a libido das
elites governantes.
Laíssa está completamente
abismada com tudo o que ouve. A tentar digerir toda a informação.
- É insano! É cruel! É
terrivel! - Grita Laíssa. É para esses haréns que levam todos os que estão em
condições de procriarem? A viagem de Rafael? O desaparecimento de Thays e
Myrio? E a Thyara? É uma menina… - diz Laíssa a olhar para um Orionte de olhos
cravados no chão.
Laíssa levanta-se de um
pulo decidido e dirige-se a Orionte que ainda olha o chão. Num gesto brusco e
de força, adquirida nos conhecimentos de Sambo, coloca aquele gigante direito.
Fá-lo olhar para ela, olhos nos olhos, afirmando – vamos resolver toda esta
situação! Orionte percebe a força da atitude de Laíssa e tenta esboçar um
sorriso. O cordão que traz ao pescoço chama a atenção de Laíssa. Tem a imagem
de Gyra, a mulher por quem se apaixonou e que lhe deu um filho, e da sua neta
Thyara. Laíssa repara nele pela primeira vez. Vira as fotos para ele e
convictamente afirma:
– Vamos fazer isto por
elas! E por todas as outras! Por onde começamos?
Capítulo XI
Sónia Ferreira
Laíssa ficou perplexa com
tudo o que acabara de ouvir, sentiu um turbilhão de emoções percorrer-lhe o
corpo e a alma. Sentiu-se determinada e, ao mesmo tempo, impotente para lutar
por aquelas mulheres tratadas como reféns da própria sorte…
Orionte, com os olhos
cravados no chão, pontapeava pequenas pedras que se dispersavam no manto verde
coberto de papoilas de frágeis pétalas, mas com raízes resistentes presas à
terra.
Laíssa, mais uma vez,
enfrentou Orionte, olhos nos olhos e elevou o tom de voz:
- Vais levar-me até lá! Quero
ver com os meus próprios olhos esse mundo cruel…
Orionte, calado, abanava
negativamente com a cabeça. Era um pedido demasiado perigoso para uma mulher
que, apesar da sua determinação, poderia tornar-se em mais uma refém naquele
harém de ditadura.
Laíssa segurou no braço de
Orionte e segredou-lhe ao ouvido:
- Nós vamos pensar numa
estratégia para desmantelar este poder soberbo de governantes desumanos e
perversos…
- Vamos jantar e mais logo
conversamos sobre este assunto… - afirmou Orionte, acariciando os ombros de
Laíssa.
Rafael aproximou – se de
Philipe, subchefe do governante daquela comunidade para receber orientações
sobre a sua nova missão.
Philipe era um homem alto com
cabelos negros, tinha olhos grandes, castanhos escuros desenhados num rosto de
barba cerrada, transparecendo um ar rude.
- Esta é a tua nave para
vigiares o que se passa dentro da comunidade – afirmou Philipe, mostrando com o
dedo indicador o novo objeto de Rafael.
- Começarás por fazer um
relatório diário do que se passa na comunidade, relatando tudo o que observas.
Ficarás atento às mulheres, principalmente naquelas que constam na base de
dados, identificadas como “o futuro da comunidade – F.C.”. Debruçar-te-ás sobre
todos os passos destas, para que não ocorram desaparecimentos. Relativamente às
mulheres estéreis, também estas estão na base de dados rotuladas como “fêmeas
infecundas – F.I.” Também é importante estares atento a estas, pois muitas
delas servem para saciar os desejos sexuais de todos nós que fazemos parte
deste governo de elite. – Philipe terminou, assim, o discurso de boas vindas a
Rafael. Entretanto, esfregava as mãos a pensar em várias F.I. para saciar os seus
desejos voluptuosos e libertinos.
Laíssa, com uma chávena de
chá de camomila na mão, aproximou-se de Orionte, sentou-se no sofá à frente
dele e recomeçou novamente o assunto que lhe estava em mente: salvar aquelas
mulheres da promiscuidade daqueles governantes selvagens.
- Orionte, vamos fazer um
mapa, no qual assinalamos os pontes fortes e os pontos fracos para chegarmos
àquele sítio, já que conheces muito bem essa zona. – Disse Laíssa, com um
brilho no olhar semelhante à luz da lua cheia numa noite escura.
- Tu és esperta e destemida!
– Exclamou Orionte com um sorriso escondido no rosto.
Laíssa largou a chávena de
chá sobre a mesa que ainda esfumaçava um vapor perfumado de camomila, foi
buscar um papel grande e duas canetas, com o intuito de começar a sua aventura…
Abriu o papel sobre a mesa,
ofereceu uma caneta a Orionte para que este começasse a registar o percurso que
os levariam àquela selva de mulheres objetos, presas ao infortúnio do destino e
presas fáceis dos desejos animalescos daqueles governantes de elite.
Orionte começou por desenhar
uma encruzilhada de caminhos, seguidamente registou os respetivos nomes de cada
rua.
Laíssa seguia, fixamente, os
traços de caneta azul naquele papel como se já estivesse a percorrer aquelas
ruas, a mente dela funcionava como um GPS: visualizava montes, planícies,
florestas e, até mesmo, o harém como se conhecesse aquele sítio.
Entretanto, Orionte começou a
assinalar no mapa os ditos pontos fortes e os pontos fracos. Os primeiros eram
assinalados a vermelho, indicando zona de perigo; os segundos eram registados a
cor verde, evidenciando zonas de transição e de aproximação ao alvo.
Laíssa deitada no seu leito
pensava em Rafael. Já que ele tinha partido, supostamente, para cumprir outros
objetivos, será que ele é aquela figura estratégica para entrar na comunidade?
No cérebro de Laíssa reinava várias questões às quais tentava ajustar soluções
capazes de desmantelar aquela rede de governantes arrogantes e prepotentes.
Capítulo
XII
Tixa
Falchetto
Tendo
passado a noite em claro a imaginar uma melhor estratégia para entrar na sede
daquele governo tirano e promíscuo, sem despertar suspeitas de início, até que
se pudesse aproximar dos governantes, Laíssa tomou uma drástica decisão. Cortou
rentes os longos cabelos sedosos e rasgou várias tiras de couro e tecidos
grossos para compor uma indumentária masculina que disfarçasse suas delicadas
formas femininas. Sujou os cabelos com carvão e cera de abelhas, para que
parecessem menos suaves. Amarrou tiras de couro nos braços e em volta da
cintura para que se apresentasse mais forte. Confiava em suas habilidades de
luta, pois nunca deixava de praticar seus exercícios de Sambo, e nunca perdia a
concentração. Estava sempre atenta a movimentos suspeitos, coisa que se
aprimorara com o tempo em que vivera escondida na casa de Malpertuis.
Apesar
de jovem, tinha a sabedoria das pessoas que se dedicam à meditação e aos
ensinamentos de pessoas sábias como as que conhecia dos livros, e de seu pai,
homem cioso de suas responsabilidades e dos perigos que os cercavam.
Precisava
primeiro acercar-se da comunidade sem despertar suspeita ou cobiça nos homens,
e, já infiltrada, tentar encontrar Iosef, Rafael, Sabras, Naldan, Laygar e quem
sabe até Iohan... precisava de outros braços para levar a cabo o plano de
revolta que traçara.
Ao
nascer do novo dia, já estava pronta para partir, e foi à casa que Rafael
estivera a recuperar, para despertar Orionte, que para lá tinha se recolhido
após aquela longa noite de explicações e planos detalhados em sua casa. Ao
chegar à porta, encontrou-a aberta, sem sinais da presença de Orionte. Nesse
momento, uma sombra de preocupação perpassou-lhe o cenho, fazendo-o franzir-se
em redobrada atenção. Esgueirou-se por todos os cantos da casa, e nada viu que
mostrasse sua presença. Orionte ou não havia passado ali a noite, ou havia
desmanchado todo e qualquer vestígio de sua passagem por aquele lugar.
Precisava dele, é certo, pois conhecia bem o caminho, e, chegar à cidade
acompanhada por ele despertaria menos suspeitas, mas mesmo assim, decidida que
estava, não deixou que esse contratempo a demovesse do intento de encetar
viagem.
Checou
também a casa de Thays, minuciosamente, a ver se encontrava algo que a ajudasse
a compreender o desaparecimento de Orionte, mas nada encontrou. Caminhou
cautelosamente até o rio, escondida por arbustos e troncos de árvores, e estava
a observar as duas margens quando, de repente, sentiu uma perigosa sensação de
estar a ser observada. Todos os seus sentidos aguçaram-se, e procurou
esconder-se ainda mais embaixo de um arbusto para olhar em toda a volta a ver
se encontrava seu observador. Infrutífera busca! Nada via! Nem sequer um barulho
de folhas a ser pisoteadas, nem sentiu passos ao colar o ouvido ao chão, como
lhe ensinara o pai na mais tenra infância. Mas tinha certeza, em algum lugar,
nada distante, havia alguém, e esse alguém apenas esperava um descuido seu para
atacá-la! Não haveria de descuidar-se, todos os nervos de seu corpo estavam
retesados à espera do desenlace dessa dupla caçada.
Então,
a dois passos de si, num galho pouca coisa mais alto que sua cabeça, ouviu um
farfalhar de asas (Ah, se asas tivesse!!). Era um belíssimo espécime de
ave-do-paraíso que ali estava a observá-la. Nunca havia visto um tão belo!
Conhecia-os, mas esse, em especial, encantou-a... suas cores eram mais vivas, e
seus olhos menos ariscos. Parecia uma ave habituada ao convívio com humanos.
Estendeu a mão a chamá-lo, e, no exato momento em que a ave veio pousar em seu
braço, sentiu a aproximação de um golpe de porrete, que, por sua agilidade
adquirida pela persistência nos exercícios, conseguiu minimizar! Virou-se a
tempo de somente receber o golpe na altura do antebraço, já em posição de
defesa! E foi então que viu o rosto enfurecido de Orionte, já iniciando um novo
golpe!
–
ORIONTE, por que me ataca??? – gritou, estarrecida, ao mesmo tempo que se
defendia como podia, conseguindo também imobilizar o homem já avançado na
idade, embora ainda muito forte e resistente. – Acaso enganou-me com toda
aquela conversa?? Enganou também a Iosef, durante toda a vida, ao fazê-lo crer
que era um pai amoroso e justo? Que estava contra o jugo dessa gente
enlouquecida pelo poder? Como pôde???
Nesse
momento, olhos arregalados, imóvel, Orionte balbuciou:
–
Laíssa? És tu??? Mas... que fizeste???? Não te havia reconhecido quando te vi
sair da tua casa. Havia arrumado toda a casa de Iosef para chamar-te e
partirmos em nossa tresloucada missão, mas vim antes ao rio para refrescar-me.
Quando já estava a voltar, vi-te sair da casa em atitude suspeita, a
esgueirar-te pelos arbustos, e achei que já haviam mandado para cá algum
soldado à nossa procura! Não te pareces em nada com a delicada menina que meu
filho escolheu para amar, e que deixei ontem a descansar na casa!
Caíram
os dois por terra a rir da situação, Laíssa ainda mais feliz por ter conseguido
enganar ao próprio sogro.
Ali,
sentados, ela explicou-lhe todos os passos que fariam ao chegar à fortaleza dos
malfadados governantes. Orionte não pode deixar de sentir uma enorme admiração
por essa menina, que havia sido poupada pelo pai durante toda a sua existência,
que até poucos dias atrás nada sabia da maldade humana, e que agora mostrava-se
uma guerreira preparada para enfrentar os mais difíceis obstáculos, com atitude
de liderança, como sempre esperou que pudesse um dia encontrar!!
Reconheceu
ali, naquele instante, que era Laíssa a predestinada, a mulher que iria se
insurgir e levantar um exército contra os facínoras do poder. De repente,
Orionte deu-se conta de que nessa menina poderia depositar sua esperança de
acabar com aquela monstruosidade que já imperava há tantos sofridos anos.
Repassaram
os planos, e, a cada fala de Laíssa, mais Orionte a admirava e cria ser, enfim,
possível a derrocada do poder vigente, para que a humanidade pudesse, enfim,
respirar ares de Humanidade!!
Arrumaram,
então, o resto dos pertences necessários para garantir o sucesso de sua
empreitada, e puseram-se à estrada.
Capítulo XIII
Fernanda Simões
Caminharam
calados, em passo cadenciado, para manter o ritmo... Faziam-no, sempre que
possível, entre ervas altas, arvoredo, caminhos ladeados por abundante
vegetação. Providenciava-se assim, uma certa segurança. À suave aragem do
início da manhã sucedeu um calor tórrido. Aproveitaram para uma breve paragem,
em que comeram alguma coisa, reviram mapas, reavaliaram possíveis estratégias.
Seguiu-se-lhes um descanso merecido. Sempre que possível, antes do sono
decidiam também, por um tempo de meditação, de reflexão.
Chegados,
por fim á Grande Cidade!.. Com uma entrada guardada por altos muros de pedra,
que Orionte tão bem conhecia. Aproximaram-se um pouco mais do portão, para que,
de dentro, lhes fizessem o reconhecimento de imagem, através das câmaras ali
instaladas, e lhes abrissem portas.
Então
era ali, naquela fortaleza resguardada, que se moviam as Elites Governamentais
e seus fiéis colaboradores... Pensava Laíssa.
Cumprido
o primeiro obstáculo, sogro e nora propuseram-se calcorrear ruas menos
movimentadas (de homens, obviamente) permitindo-lhes um certo à vontade para
trocarem impressões.
O
edifício principal era sumptuoso, rodeado de jardins bem cuidados, coloridos,
com uma larga escadaria que os levou ao salão de entrada.
O
olhar atento de ambos conduziu-os a um agente sentado a uma ampla secretária.
Este, depois de os ouvir e identificar acompanhou-os ao elevador, não antes de
lhes pôr nos casacos um cartão/ficha electrónico.
Saíram no piso indicado e surpreendidos depararam-se, de imediato, com Rafael fardado, formal, sério, que os aguardava. Não reconhecendo de imediato o "jovem rapaz"...
Saíram no piso indicado e surpreendidos depararam-se, de imediato, com Rafael fardado, formal, sério, que os aguardava. Não reconhecendo de imediato o "jovem rapaz"...
Rafael
conduziu-os a uma sala aconchegante e luminosa, cheia de estantes e pastas.
Fechou a porta e sentaram-se.
Laíssa
e Rafael entreolharam-se algumas vezes, até que Rafael...
-
Laíssa, estás muito bem disfarçada. Só te reconheci, pela expressão do teu
olhar inconfundível. Por isso, não temas, não serás desmascarada...
Sorriram
todos. Mais descontraído agora, o ambiente propiciou a conversa. Orionte e
Laíssa, confiantes, expuseram seu plano de acção. Rafael, pela primeira vez,
abriu-se-lhes em confidências, também. Para espanto de ambos. Laíssa
confortável e mais apaziguada quis saber por Rafael, dos amigos e amores desaparecidos.
-
Que aconteceu a Naldan, Sabras, Thays e Miryo, Laygar, Thyara e Iosef?
-
Foram embarcados na nave de reconhecimento que os sobrevoara no dia do
desaparecimento. - Respondeu-lhe Rafael. - Estão agora em alas separadas,
Thyara, Thays e Miryo, na ala feminina. Os homens numa ala própria…
Rafael
informou-os que fora Eduína quem recebera Thays com Miryo e Thyara. Ela era a
directora das alas femininas, localizadas num enorme edifício, vigiado do
exterior, por soldados governamentais. Aqui se acomodavam as mães, que cumpriam
todas as actividades domésticas, e crianças até á adolescência. Também mulheres
férteis que, obrigatoriamente eram destinadas á procriação... Administravam-se
aulas aos jovens. Logo, havia professoras... As restantes mulheres habitavam
outra ala, mais afastada.
Os
homens, funcionários do Governo, residiam para lá da ponte que atravessava o
rio Auron, nesta altura de grande caudal. Em pequenos e confortáveis
apartamentos. Os restantes, moradores em bairros, uns engrossavam as fileiras
do exército, outros trabalhavam os campos, de grandes extensões, providenciando
o sustento da comunidade. Toda a cidade era diariamente observada por câmaras
ópticas e por "soldados vigilantes", além das naves...
Orionte
tudo ouvia, cofiando a sua barba grisalha. Laíssa
não despegava os seus olhos de Rafael, bebendo-lhe cada palavra.
Em voz calma, Rafael soltou tudo quanto sabia sobre este burgo-mistério. Os seus visitantes, amigos, mereciam-lhe já toda a sua confiança. Eles, por sua vez, espantavam-se a cada novo relato de Rafael.
não despegava os seus olhos de Rafael, bebendo-lhe cada palavra.
Em voz calma, Rafael soltou tudo quanto sabia sobre este burgo-mistério. Os seus visitantes, amigos, mereciam-lhe já toda a sua confiança. Eles, por sua vez, espantavam-se a cada novo relato de Rafael.
A
promoção de Rafael fora importante para agilizar o processo. A nave agora posta
ao seu serviço, iria ser-lhes de uma grande ajuda! Claro que Rafael não estava
só. Seria impossível pensá-lo! Falou-lhes do movimento revolucionário que se
vinha firmando há muito, compreendendo mulheres e homens. Além de Eduína, que
se movimentava com razoável à vontade, no sector das Mulheres, quer das F.E.
quer das M.C., contavam também com o grupo das professoras, das especialistas
em artes defensivas, de orientadoras disciplinares... De homens apresentavam-se
muitos dos que compunham as filas do exército, em postos graduados - não era de
admirar pois que eram filhos e também pais de gente injustiçada! Um enorme
grupo de ambos os géneros!
O
plano indiscutível era derrubar o Centro nevrálgico do Poder instalado. Rafael
cedo se apercebera das aberrações perpetradas pelos seus superiores. A irmã,
Thays, era um exemplo disso... Assim, trabalhou capacidades de infiltração em
lugares que importava conhecer, estudar, para tentar acabar com tanto
descontentamento! Investiu, ao longo de anos, neste propósito, pedindo sempre
aos companheiros, muito secretismo e moderação em conversas, em atitudes.
Laíssa
ouviu tudo isto, e uma onda de paz, tranquilidade, tomou conta dela. Família e
amigos estavam bem. Um sorriso sereno amenizou seu rosto agora transformado e
um pouco grotesco. Olhou Orionte que ia questionando Rafael sobre detalhes que
achava importantes.
Orionte
e Laíssa abandonaram o edifício munidos de credenciais cedidas por Rafael. Com
elas iriam mobilizar-se na grande cidade e mais além…
Já
bastante afastados da zona de Serviços, pararam um instante. Laíssa e
Orionte olharam-se sorrindo. Sem palavras, abraçaram-se felizes e comovidos. A
revolta ganhava consistência!
Dava-se
a partir de agora, início ao processo de mudança.
Para muitos, humilhados, o sonho tomava forma. Ganhava asas!...
Para muitos, humilhados, o sonho tomava forma. Ganhava asas!...
Capítulo XIV
António Breda Carvalho
É
poeira a última vez em que Theo entrou na Biblioteca, mas recorda-se
nitidamente de todas, tem memória ilimitada, por isso sabe de cor os títulos
dos livros e o conteúdo inteiro de todas as obras, nem um só segundo da
universal criação se eclipsou do seu conhecimento. Na Biblioteca guarda toda a
História do Cosmos, uma quase infinita coleção de livros, desde o instante em
que escreveu a primeira palavra, a milagrosa palavra com que inaugurou a
primeira obra, à qual deu o nome de BIG-BANG, e à segunda obra, FIAT LUX.
Entrar
na Biblioteca é a ação que mais custa a Theo e que muito o entristece, não pela
dificuldade de encontrar qualquer livro, apesar de nela estarem depositadas
todas as narrativas do Universo. A Biblioteca é um espaço inconcebível fora da
mente de Theo, inacessível a qualquer entidade pensante, pois é na sua mente
que a Biblioteca existe, e facilmente ele entra nela, facilmente abre o livro
que o chama com urgência, facilmente o manuseia e facilmente encontra o
episódio que lhe interessa, mas é sempre no presente da narrativa que age sobre
o texto.
Interromper
e alterar o curso de uma obra é o ato que mais lhe custa; não por falta de
criatividade, pois, sendo autor de tudo o que existe no Cosmos, o grande livro
que contém todos os livros, cujo exemplo mais parecido é a Bíblia, é
incontestável a sua omnisciência de todos os processos narrativos. O que lhe
entristece e magoa, se um motivo infinitamente forte o obriga a entrar na
Biblioteca, a fim de abrir um livro e nele escrever, é o facto de as
personagens dessa narrativa, por causa do livre-arbítrio que lhes concedeu,
protagonizarem ações que põem em perigo a continuidade de um mundo cujo
propósito é o Bem, princípio e fim absolutos que presidem a toda a sua criação.
Às
vezes arrepende-se de ter criado o livro Terra, o único de todas as obras que o
tem obrigado a corrigir o desenvolvimento da ação. Muitas vezes se interroga em
que momento preciso e por que motivo se distraiu na conceção das personagens, a
única explicação para o facto de o Mal se ter revelado uma personagem invisível
desde Caim, para o caso de grande parte das personagens deste livro se
aproveitarem do livre-arbítrio para fugirem ao domínio do seu criador e
revelarem fascínio pelo Mal, obedecendo a este cegamente, como se o Mal fosse o
deus do Paraíso.
A
primeira vez que Theo mexeu no livro Terra foi logo nos primeiros capítulos,
quando se lhe tornou evidente que o Mal se instalara na obra como personagem
invisível, e então teve de exercer a sua omnipotência autoral, não quis que o
fim do livro fosse o caos, o retorno ao Nada, resultado da extinção de todos os
seres vivos. Por isso, com o Dilúvio e com a Arca de Noé, acabou o primeiro
Tomo e iniciou o segundo do mesmo romance, para que as personagens, aprendendo
a lição, percebessem que o livre-arbítrio é a dádiva mais valiosa da vida, que
não deve ser utilizado para servir o Mal. Infelizmente, em outras ocasiões teve
de agir, e novos tomos foram engrossando o volumoso livro da saga Terra.
Agora,
decorrido um século desde a sua última intervenção, pondera se entra na
Biblioteca, ou se, desta vez, desiste da obra — se a melhor solução é abandonar
os humanos ao seu livre-arbítrio e permitir-lhes que percorram o caminho da
autodestruição até ao fim, até à última palavra do último Tomo do livro Terra,
definitivamente uma narrativa fechada e arquivada para sempre na Biblioteca.
Valerá
a pena ajudar Laíssa, Orionte, Thays, Myrio, Thyana e todas as personagens que
combatem o Mal?
Valerá
a pena encerrar este Tomo do livro Terra e iniciar a escrita de um novo?
Ainda
é possível acontecer uma obra perfeita, sabendo que o Mal é a semente que
germina em todos os seres vivos da Terra?
Este
é o dilema angustioso de Theo.
Capítulo XV
Miguel Curado
O
barulho da chuva eternizava a trovoada. O chão lá fora parecia rachar, ao
passar de cada segundo, debaixo de uma intempérie que se descrevia a si própria
com um silêncio difícil de decifrar. Theo refletia sobre o futuro da vida. O
futuro do planeta. O que estaria para vir para si, e para os que gostava. Sabia
que o Mal estava nos pequenos pormenores de todas as decisões que o homem
alguma vez tomou, e das quais se arrependeu. Ou não.
Dar
um passo que fazia de si próprio um Deus, tornava a vida de Theo uma alienação.
Um pensamento que não poderia caber na cabeça de todos os seres humanos deste
planeta, porque cada um deles nunca terá o poder investido em Theo. A certeza
de que poderá abrir o chão, para fazer a Terra cuspir fogo e recentrar o foco
da criação noutro ponto desta Galáxia, ou no mesmo local onde sempre esteve.
Revolver os oceanos, a ponto de destruir tudo, como um sopro de Armagedão.
Amanheceu,
com a perspectiva de Theo de que, afinal, era um ser humano. Com um condão de
escrever a vida de uma forma mais intensa que o habitual. Por isso, sentou-se à
mesa, no único sítio naquele local que permitia fazê-lo, e repensou toda a
história de criação de morte da qual tinha sido o projetista.
No
livro Terra defendeu a certeza de que os homens são os únicos donos do seu
próprio destino, e deu-lhes o dom da ubiquidade. Cada canto teria um respirar
humano. Um dote de amor no toque. Nas expetativas. Seria a lua a comandar o
girar da Terra, e nunca o contrário. As estrelas desordenadas numa sopa
primordial alumiariam as decisões de cada pessoa, para que o Mal fosse
gradualmente substituído pela necessidade de lógica na evolução.
Nos
eclipses, conhecidos numa nota de rodapé do livro da Terra como assassinos do
Sol, as pessoas iriam encontrar um refúgio dos sonhos maus. Os tais que mais
não eram do que o Mal que andava à solta nas páginas do livro da Terra, a
querer desenhar um rosto no âmago das pessoas que respiravam para estar vivas,
e estavam vivas tentando fazer muito mais do que respirar.
Theo
sentia que não podia falhar no que debitava com o ritmado compasso da caneta
que, hirta, tomava conta da sua mão, deixando-a sozinha a lutar contra o poder
desgastante do tempo. E o livro da Terra teria também de ser uma prova do seu
poder. Sentia-se o escolhido para, com palavras poderosas e magnéticas, capazes
de revirar o sentimento das pessoas transformando a maldade em bondade, alterar
o destino de todos os seres humanos.
E
por isso criou uma ideia de reconciliação entre todas as pessoas. Apesar de
saber que aquele era um espaço que só existia na sua mente, também sabia que se
sentia ligado a milhares, milhões de seres semelhantes. E por isso desenhou uma
casa comum para todas as pessoas. Teria janelas grandes, amplas, que deixassem
abraçar toda a luz solar. E recantos desenhados com a mestria possível, para
acolher as vicissitudes de cada uma das pessoas.
Teria
de haver espaço para os ambiciosos, os conformados, os desesperados, os
fazedores de esperança, e até as pessoas más. Os assassinos, os que se regiam
pelo desprezo pela beleza e conceito de vida humana.
Quando
chegou ao fim da reconsideração que devotou aquela obra, sentia-se uma pessoa
cansada. Capaz de abdicar da criação, do desejo de perpetuar o belo, apenas
para se sentar, fechar os olhos, e pensar que o bom da vida era a possibilidade
de a maquilhar. Como o rosto da mais linda mulher do universo.
Capítulo XVI
Cristina Torrão
Laíssa incorporou no seu sonho o
ribombar de um trovão gigantesco e o vibrar do chão e das paredes. Centenas,
talvez milhares, de naves cobriam o céu.
Teria a elite descoberto os planos de
revolta? Ela bem desconfiara que, com tanta gente envolvida, haveria fugas de
informação.
A porta do apartamento foi arrombada.
Guardas, de armas em punho e de rostos irreconhecíveis pela viseira escura dos
seus capacetes, apoderaram-se de Orionte e entraram no quarto dela. Tinham
vindo para os prender, ou para os matar?
Laíssa deu um grito. E acordou,
banhada em suor. Num primeiro momento, ficou aliviada: apenas um pesadelo. Mas
o trovejar mantinha-se, o apartamento vibrava, as persianas abanavam como
loucas.
Levantou-se, foi até à janela do seu
quinto andar e, depois de abrir a persiana, quedou-se aturdida perante uma
chuva diluviana e ventos ciclónicos que arrancavam árvores pela raiz. Ao longe,
o rio Auron aumentava assustadoramente o caudal, formando ondas altas.
De repente, a terra começou a tremer. Laíssa
agarrou-se ao parapeito, sem saber como reagir. Ao ver os primeiros prédios a
desabarem, porém, percebeu que só lhe restava fugir. Calçou-se e, enquanto
vestia um casacão por cima do pijama, dirigiu-se ao quarto de Orionte,
cambaleando, devido aos abalos.
O ancião continuava deitado, de olhos
fechados. Não ouviria aquele barulho ensurdecedor, não sentiria os abanões?
Laíssa impressionou-se com a sua palidez. Abanou-o pelos ombros, berrando o seu
nome. Orionte não reagia. Estaria morto?
Os quadros, os livros e os outros
objetos colocados nos móveis caíam ao chão, gavetas abriam-se. Era imperioso
que saíssem dali e Laíssa não deixaria Orionte sozinho, sem saber se estava
vivo ou morto. Carregá-lo-ia, por mais que lhe custasse. Puxou-lhe a roupa da
cama para trás e preparava-se para o agarrar pela cintura, quando ele gritou:
- Não, Laíssa!
Tinha os olhos escancarados, raiados
de sangue.
- Deixa-me! Resta-me pouco tempo de
vida.
Orionte aproveitou a perplexidade
dela para lhe passar uma pequena placa com um ecrã para a mão:
- Rafael deu-mo ontem. Chama-se
“digi-phone” e permite-te comunicar com ele e Iosef. Só precisas de chamar os
seus nomes…
De repente, o ancião levou as mãos à
garganta, abafado, a lutar por cada lufada de ar. Pedaços do estuque das
paredes e do teto começaram a cair, o prédio abanava cada vez mais, a chuva
batia nas janelas com fúria nunca vista. Ouviam-se os gritos dos homens, vindos
das escadas do prédio.
- Despacha-te - ordenou Orionte de
voz rouca. - Pertences aos eleitos.
- Eleitos? Enlouqueceste? Não me
deixes sozinha, neste fim do mundo!
- Vai! - O ancião fazia um esforço
terrível para se fazer ouvir, no meio do barulho. - Vai ter com Iosef e Rafael!
Tendes uma missão a cumprir, sois eleitos…
- Não fales assim, que não te entendo
- replicou, entre lágrimas, enquanto o prédio ruía à sua volta.
Orionte agarrou-lhe os ombros e, de
olhos escancarados, berrou, como em transe:
- Não matarás! Não matarás!
Largou-a, de repente. Estava morto.
Laíssa rompeu num pranto desesperado.
O instinto de sobrevivência, porém, fê-la reunir todas as suas forças para
largar Orionte e sair do apartamento.
Embora aquela visão o dilacerasse,
Theo decidira-se pela escrita de um novo Tomo do livro Terra. Daria mais uma
hipótese à raça humana, considerando, porém, que tal só seria possível evitando
a revolução que Rafael e os seus seguidores planeavam. Teriam de matar, a fim
de acabar com a elite tirânica, o que contrariava o Quinto Mandamento que ele
próprio criara. Por várias vezes, Theo constatara que uma nova sociedade,
fundada por humanos que haviam matado e causado sofrimento a outros humanos,
mesmo sendo por uma boa causa, estava condenada ao falhanço. Por isso se
decidira por uma catástrofe de proporções gigantescas, chamando novamente a si
a responsabilidade de eliminar todos aqueles que achasse desnecessários, mesmo
os inocentes.
Tudo isto o dilacerava, dando início
ao sofrimento que tão bem conhecia, desde o tempo em que se materializara
humano. Novamente sentia o crânio massacrado pela coroa de espinhos, o sangue a
escorrer-lhe pelo rosto, os chicotes deixando-lhe as costas em carne viva, o
desprezo e achincalhamento públicos, a sede, a fome, o desespero. Mas sabia que
o pior estava para vir, quando sentisse os grossos pregos que, à força de
martelo, lhe dilaceravam as mãos e os pés, tudo confluindo na dor indiscritível
de agoniar pendurado numa cruz.
«Meu Pai, porque me abandonaste»?
Quantas vezes teria ainda de arcar
com os pecados daquele mundo?
Laíssa juntou-se aos restantes
habitantes do prédio, todos homens, na sua fuga. As escadas estavam ainda
intactas, mas muitas paredes já tinham desmoronado. A chuva penetrava no
edifício, batia-lhes no corpo, o vento soprava violento. Nem todos se
conseguiam manter agarrados ao corrimão. Laíssa ouvia os gritos dos que eram
levados pelas rajadas ciclónicas, via-os a voar como se fossem folhas no
Outono.
Sem saber como, conseguiu chegar à
rua, mas não havia tempo para suspiros de alívio. Era quase impossível andar, a
visão miserável. Enxurradas levavam consigo pessoas e animais, o tremor de
terra persistia, gente caía desamparada dos prédios que desmoronavam, ou ficava
soterrada nos escombros.
Abrigou-se na soleira de uma porta
ainda intacta, sem saber o que fazer. Lembrou-se do “digi-phone” que Orionte
lhe tinha dado e que ela tinha posto no bolso do casacão. Agarrou nele, a
tentar lembrar-se das instruções do ancião. «Só precisas de chamar por eles».
Embora lhe parecesse patético, pois
nunca tinha usado aparelhos daqueles, pôs o “digi-phone” à sua frente e berrou
por Iosef. Depois de algumas interferências no ecrã, viu-lhe o rosto.
- Iosef, meu amor - exclamou, entre
lágrimas. - Onde estás?
- Laíssa, graças a Deus! Espera um
momento, enquanto te localizo!
- Vens buscar-me?
- Não posso. Rafael e eu estamos a
tentar salvar o maior número de crianças possível. Mas dou-te já um itinerário.
Espera!
- Itinerário? Que queres dizer?
- Tens de vir ter connosco ao
edifício RT 505.
- Edifício quê? Estás louco? Eu não
conheço nada aqui…
- Fica calma, Laíssa…
- Calma? O mundo desmorona à minha
volta e pedes-me calma?
- É só mais um momento… Ah, cá estás!
E aqui está o itinerário. Foi difícil programá-lo, pois o Auron aumenta de
caudal a cada instante e já alagou muitas ruas, provocando enxurradas que não
dão hipóteses de sobrevivência. Acabará por alagar a cidade inteira. Mas só
precisas de seguir o itinerário que te envio, para lhes escapares… se
conseguires fazer o percurso em 15 minutos. Estarei à entrada à tua espera.
Despacha-te!
O rosto de Iosef desapareceu para dar
lugar a um mapa. Uma seta indicava a posição dela, uma voz feminina fez-se
ouvir: «a vinte metros, vire à direita».
Laíssa reuniu todas as suas forças
para sair do local abrigado e iniciar a sua caminhada, contra o vento e a
chuva. Naquela rua, a água corria já muito rápida, mas ela conseguiu atingir a
esquina, que lhe deu acesso a uma ruela mais abrigada. Teve igualmente a
impressão de que o tremor de terra tinha cessado. Foi seguindo as instruções do
aparelho, até que deparou com uma grande avenida, muito fustigada pela
tempestade. A água subia, a corrente ficava cada vez mais forte, Laíssa
avançava a passo de caracol. A voz disse-lhe, naquele tom neutro de quem dá
instruções para uma receita: «Acelere o passo! A avenida será dominada pelas
águas em poucos minutos».
- Como posso acelerar, sua estúpida?
O vento e a chuva não me deixam. Além disso, não vejo nada.
«Se não atingir as escadas dentro de
dois minutos, diminuirá a sua hipótese de sobrevivência».
Entrou em pânico:
- Iosef! Ouves-me, Iosef?
O rosto dele surgiu:
- Laíssa! Deixa-me ver onde te
encontras… Despacha-te, estás em grande perigo!
- Não consigo…
- Consegues, pois! Tu és uma eleita!
Acredita! Tem Fé!
A água já lhe chegava à cintura, com
uma corrente incrível. Laíssa avançava agarrada aos puxadores de algumas portas
que se mantinham de pé. Pessoas levadas pela enxurrada passavam por ela,
algumas aos gritos, outras já mortas.
«Restam-lhe trinta segundos».
Alcançou as escadas, um acesso
pedonal a uma rua num nível mais elevado. Laíssa agarrou-se ao corrimão, mas
demorou uma eternidade a vencer três degraus. Não via como conseguiria chegar
ao fim.
«Os dois minutos esgotaram-se. Tem
apenas 10% de probabilidade de sobrevivência».
Com a força do desespero, cerrou os
dentes e almejou alcançar os degraus ainda livres da corrente assassina.
Atingiu a rua desejada e caiu esgotada, a respirar às golfadas.
- Laíssa! Responde, Laíssa!
- Iosef, não posso mais…
- Despacha-te, restam-te quatro
minutos para atingires o edifício RT 505! As águas atingirão igualmente as ruas
de nível mais elevado.
Mais uma vez arranjou forças sem
saber onde. Livrou-se do casacão, que se tornara um peso inútil, e avançou,
encharcada até aos ossos, o pijama colado ao corpo, seguindo as instruções do
“digi-phone” na sua mão.
- Laíssa! Já cá devias estar. A
enxurrada não tarda a surgir.
- Estou quase…
Dobrou mais uma esquina e Iosef
viu-a. Foi ao seu encontro a fim de a ajudar a vencer os últimos metros contra
a chuva e o vento ciclónico.
- O Rafael está à nossa espera com a
nave para nos levar à plataforma.
- À plataforma?
- No edifício RT 505 encontra-se a
única plataforma que permite a aterragem e a descolagem de naves Jumbo, nesta cidade
de ruas apertadas e prédios altos. Mas temos de nos despachar. As crianças
estão sozinhas e, em breve, começará um terramoto ainda mais forte.
- Como sabes?
Iosef não respondeu. Tinham chegado à
entrada do edifício e embarcaram, sem demora, na pequena nave. Rafael descolou,
a fim de atingir a plataforma a 150 metros de altura. Depois de recuperar o ar,
Laíssa perguntou:
- Onde estão as crianças?
- Esperam na nave Jumbo.
- Sozinhas? Não há adultos? E o meu
pai, Thays, Eduína…
Os homens não responderam. Rafael
limitou-se a pilotar a nave, enquanto Iosef desviava o olhar, porém, sem
conseguir disfarçar a dor. Laíssa agarrou-lhe as vestes:
- Diz-me! Morreram todos?
Iosef encarou-a:
- Tenho muita pena, mas tivemos de
nos concentrar nas crianças, cumprindo a palavra.
- A palavra? Que palavra?
- A palavra escrita. Assim está
escrito.
- Que queres dizer, Iosef? - Berrou
Laíssa. - Não estou a entender nada…
- Não há tempo para discussões -
admoestou Rafael. - Começou o novo terramoto, a plataforma não aguentará muito
tempo.
Tinham aterrado mesmo ao lado da nave
Jumbo, de outro modo, não resistiriam às rajadas ciclónicas, já que a
plataforma abanava igualmente devido ao tremor de terra.
- Depressa! Depressa!
Mal entraram, Rafael dirigiu-se à
sala de comando, enquanto Laíssa e Iosef se dedicavam às cerca de sessenta
crianças assustadas. Os adolescentes que se encontravam no seu meio ajudaram os
dois adultos a apertar os cintos de segurança das mais pequenas. Depois,
sentaram-se nos seus lugares, Thyara agarrada ao pai, entre ele e Laíssa, que
apertava Míryo contra si.
Rafael lutava contra as dificuldades
na descolagem. Uma nave Jumbo devia ser pilotada por três pessoas, duas, no
mínimo. Acabou por descolar aos solavancos e aos abanões, mesmo a tempo de
deixar a plataforma que começava a desmoronar.
Rafael via-se aflito para estabilizar
o aparelho, um joguete nas garras do ciclone. As crianças gritavam e choravam,
Iosef e Laíssa tentavam acalmá-las, sem poderem sair dos seus lugares e
escondendo a própria angústia. Com Míryo junto ao peito, Laíssa viu, pela
janela, como os prédios mais altos da Grande Cidade colapsavam e eram engolidos
por enormes valas abertas pelo terramoto. Antes de a nave romper a parede de
nuvens escuras, ainda teve tempo de ver um tsunami colossal a engolir as
ruínas.
Acima das nuvens, a nave estabilizou.
Puderam desapertar os cintos de segurança e deixar os seus lugares. Laíssa
tinha inúmeras perguntas, mas urgia, primeiro, tratar das crianças,
garantindo-lhes que o perigo tinha passado.
Assim que tudo estava calmo, Laíssa,
que já se tinha secado e mudado de roupa, perguntou a Iosef:
- Para onde vamos?
- A lado nenhum. Ficaremos em órbita
e regressaremos à Terra, assim que as catástrofes naturais tenham passado.
- Mas está tudo em ruínas…
- Aterraremos num local aprazível,
uma enorme ilha que, depois da tempestade, apresentará um céu azul, um sol
radioso e um mar calmo.
- Não me digas! E como sabem vocês da
existência dessa ilha paradisíaca?
- Rafael tem as coordenadas… Estavam
nas Escrituras.
- Nas Escrituras? - Chegara a altura
de esclarecer as dúvidas. - Iosef, que conversa é essa de Escrituras, de
palavra, de sermos eleitos?
Depois de respirar fundo, ele
respondeu:
- O meu pai, Orionte, era um profeta.
- Profeta?
- Sim, uma pessoa próxima de Deus,
capaz de comunicar com Ele. Tudo o que viveste hoje, estava previsto, escrito.
Meu pai sabia que nós os três seríamos os únicos adultos a sobreviver, deu-nos
instruções de como agir e as coordenadas da ilha onde devemos aterrar. Rafael,
tu, eu e estas crianças somos os eleitos, os primeiros protagonistas do novo
Tomo do livro Terra.
Depois de, mais uma vez, aguentar
toda a agonia e todo o sofrimento, Theo suspirou aliviado. O novo Tomo estava
iniciado e os eleitos tinham agora o seu destino nas próprias mãos. Cabia a
Rafael, Iosef e Laíssa, adultos corajosos e honestos, que nunca tinham sujado
as mãos com sangue humano, educar as crianças, sem injustiças, invejas, nem
violências desnecessárias. O seu próprio exemplo, a retidão do seu carácter e a
sua capacidade de cumprir os Dez Mandamentos eram imprescindíveis, mais do que
qualquer sermão.
Theo esperava que não tivesse de,
novamente, sofrer as agruras da cruz.
À saída da nave, Laíssa foi
surpreendida por uma pomba branca com um ramo de oliveira no bico.
Fim
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