Foto © João J. A. Madeira |
Apesar de a noite já cair
sobre aquele lugar perdido não se sabe bem onde, Orionte mantinha os óculos
escuros. A comunidade tinha-se reunido novamente antes do descanso noturno para
aproveitar ao máximo a presença dos três chefes de família, que deveriam partir
logo pela manhã. Todos aparentavam sentir-se confortáveis dentro daquela paz
artificial. Todos menos Orionte. Orionte servia-se dos óculos para observar
Laíssa, sem ser notado. Ela também não se sentia confortável.
Laíssa mexia-se e
remexia-se com uma inquietude que mais ninguém parecia notar. Não prestava
atenção à conversa e até aos carinhos de Iosef, respondia de uma forma
automatizada.
As palavras de Rafael não
lhe permitiam tranquilidade. E Orionte?… A resposta intempestiva que o fizera
sair de detrás da moita para questionar Rafael. Saberia ele de alguma coisa que
nunca demonstrara? Não, o mundo não podia resumir-se apenas àquilo que ela
sabia. É certo que naqueles livros que o pai selecionava para ela ler se
descrevia um mundo muito mais complexo. Mas o pai também lhe dissera que as
coisas tinham regredido, que a fúria desenfreada com que o ser humano tinha
abusado dos recursos do planeta tinha feito com que se tornassem escassos e por
isso agora eram só para as elites. Era uma explicação plausível, lá isso era.
Ainda assim, não a desinquietava… e as mulheres? Porquê aquela perseguição?
Quase mito… de que eram em número tão reduzido, que eram procuradas como
objectos preciosos.
Era isso. Era assim que
se sentia! Um objecto. Uma coisa que o pai e Iosef manipulavam a seu bel
prazer.
- Laíssa… Laíssa,
querida?...
- Hum… o quê? O que foi?
- Querida, estou a
chamar-te há que tempo e não me ouves.
- Desculpa, estava
distraída…
- Isso vi eu… olha, vou
dormir que amanhã eu, o teu pai e Naldan partimos cedo.
A noite foi muito agitada
dentro de si própria e quando os três homens se juntaram para rumar ao seu
destino, Laíssa já lhes tinha preparado tudo o que precisavam levar,
despedindo-se sem mais demora. Parecia que os queria ver pelas costas. Pensou,
ao vê-los desaparecer na curva do caminho. Não devia ter agido assim. Mas
pronto, já estava… encolheu os ombros e voltou para dentro de casa.
Com a luz do dia ainda
difusa, tropeçou numa caixa grande que estava encostada à parede, no seu
quarto. Era uma das que tinha trazido de Malpertuis. Por esquecimento ou por
falta de tempo, tinha ficado para ali arrumada. De súbito, parou quando viu o
conteúdo derramado. Como é que nunca mais se lembrara daquilo? A caixa continha
livros. Um livro em especial que tinha escondido no meio dos outros. Na véspera
de o pai lhe ter anunciado a fuga inesperada, tinha-o encontrado no quarto
dele. Estava escondido no fundo de uma gaveta, com vários objectos sem
importância por cima. Primeiro ainda pensou em lhe perguntar se o podia ler,
mas logo mudou de ideias. Se o pai o tinha ali escondido, era porque não queria
que ela o lesse…
Ávida de descobertas,
Laíssa sentou-se na cama com o livro no colo. A primeira coisa que reparou foi
a data da primeira edição. Era bastante mais recente que os que habitualmente
lia. Aquele livro tinha pelo menos, menos um século que Os Maias, Amor de
Perdição e outros que tais. Datava do início do século XXI. Começou a ler
devagar. O livro contava a história de uma mulher. Uma mulher muito importante,
que tinha sido CEO de uma grande multinacional. Não imaginava o que poderia ser
isso, mas com certeza era algo com muito poder. Essa mulher trabalhava com a
internet e deslocava-se num carro que ela própria conduzia. E mais
surpreendente ainda: lidava com os homens de igual para igual. A princípio
pensou que fosse uma história inventada, como aquelas que o pai lhe contava
quando era criança, mas à medida que avançava na leitura, ia sentindo cada vez
mais a realidade de tudo o que ali era relatado. Até porque a mulher, para além
de tudo o que lhe era estranho, tinha outra parte da vida onde era mãe e esposa
como ela sempre pensara que tivessem sido as suas antepassadas.
Mergulhou de tal maneira
na leitura, que às tantas já se sentia ela própria a protagonista da história.
E lia como uma faminta que precisava daquelas informações como de pão para
boca. Ah, como gostaria de ter sido aquela mulher… revia-se perfeitamente nela.
Tinham passado algumas
horas quando retornou à realidade. Continuava sentada na cama, com as pernas
estendidas e recostada na almofada que tinha ao cimo. Ainda tinha o livro no colo,
mas agora estava aberto na última página. Virou a capa e leu o que não tinha
lido antes: “Biografia Autorizada de Mary Barra”.
Estava atordoada com
tanta informação, mas de uma coisa tinha agora a certeza: as mulheres podiam
ter um papel muito mais
interveniente na sociedade. Tal como ela sempre imaginara e nunca se atrevera a
revelar, por recear que fossem delírios da sua mente inquieta.
Porque é que o pai lhe impedira o acesso
àquele conhecimento? Num sentimento de benevolência, decidiu que ele o fizera
para a proteger. Para evitar que a sua ansiedade por mudar o mundo extravasasse
para fora do seu pensamento e a levasse a meter-se em sarilhos graves… muito
graves. Pois o pai conhecia-a, sabia o pequeno monstro que tinha criado mesmo
contra a sua vontade. Desde muito pequena que aquela sede de entendimento, a
fúria pela reclusão a que estava sujeita, as manhas para driblar todos os
contratempos se tornaram evidentes para o pai, que tudo tentara para a refrear.
O pai apenas quisera protege-la de si própria, como qualquer pai sempre faz de
tudo para proteger os filhos. Mas agora era tarde…
O monstro saíra de dentro
dela e já não havia forma de o parar. Laíssa precisava saber mais sobre aquele
outro tempo que até então desconhecia. Mas como? Onde é que podia ir buscar o
que precisava? Falar com o pai estava fora de questão. Se conseguisse um acesso
à internet… mas nem sabia onde pudesse existir.
Rafael! Era isso, se conseguisse
falar com Rafael talvez arranjasse maneira de o persuadir a leva-la a algum
lugar onde houvesse esse acesso.
Levantou-se para ir falar
com Thays. Não iria revelar nada à amiga, mas talvez fazendo-a repassar as últimas
conversas com o irmão, detectasse alguma pista que a levasse a um contacto com
Rafael.
Estava entre portas
quando ouviu o zumbido metálico que tão bem conhecia. Não! Dessa vez não ia
mostrar-se ao controlo. Só ela sabia a revolta que sentia de cada vez que tinha
de se por a jeito para aquele olho indiscreto. Voltou para dentro de casa e
varreu o espaço com os olhos à procura de onde se esconder. Fixou-se no alçapão
que se habituara a ver ali no chão do quarto. Afinal, aquele abrigo que sempre
lhe lembrara guerras antigas, não eram tão antigas assim.
Desceu os degraus,
fechando a portinhola por cima da cabeça, e aninhou-se no escuro à espera que o
perigo passasse. Sim, porque para ela aquele é que era o verdadeiro perigo. O
perigo de não saber de nada, de não a deixarem evoluir, de não a deixarem
crescer… de não a deixarem mudar o mundo.
Passou um tempo
indefinido, até que ouviu o zumbido afastar-se. Saiu com cautela e dirigiu-se
para a rua. Naquele instante sentiu um vazio dentro de si. O silêncio que
sempre sentira como a grande harmonia daquele lugar era agora aterrador. Correu
a casa de Thays, foi até à albufeira, chamou Thyara e também a amiga. Gritou
alto, muito alto, a ver se alguém a ouvia. A resposta era apenas o eco da sua
voz.
Estaria outra vez só?
Desfalecida, deixou-se
cair sobre os joelhos dobrados… de repente olhou e viu Orionte pelas costas, de
mochila ao ombro e bordão na mão.
Luísa
Vaz Tavares
Imagino o quão angustiante estaria seu coração!!!
ResponderEliminar... Gostei da prosa!!!
Uma SEXTA 13 ... com muita SORTE!!!
De facto, Laíssa vive angustiada com o mundo que conhece.
EliminarObrigada, Gracinha.
Bom resto de fim-de-semana!
Fantástico. Pena que acaba logo.
ResponderEliminarBeijos. Da primeira fila.
silvioafonso
.
Silvio, obrigada pelo comentário.
EliminarContinue a acompanhar!
Bom resto de fim-de-semana.
Ola...adorei a visita, e aqui ao seu convite entrei, precisarei de tempo para ler todos esses contos que aqui possui, adoro ler, então com certeza aqui achei uma oportunidade impar!!virei sempre, e sempre que der aparece por la tbm bjucas
ResponderEliminarLeia, que vai gostar. Cada autor tem o seu estilo, mas todos na mesma linha construímos uma história, que tentamos seja apelativa.
EliminarFarei uma visita.
Bom resto de fim-de-semana!
Maravilha, envolvente com vontade de que não termine. Um sonho interrompido muito bem delineado.]
ResponderEliminarDestaco:
"Desceu os degraus, fechando a portinhola por cima da cabeça, e aninhou-se no escuro à espera que o perigo passasse. Sim, porque para ela aquele é que era o verdadeiro perigo. O perigo de não saber de nada, de não a deixarem evoluir, de não a deixarem crescer… de não a deixarem mudar o mundo."
Grata por me proporcionar tão agradável leitura e também pela visita ao meu novo blog. Que tal uns versinhos sem a vogal "A"? me daria muita alegria.
Abração!
Diná
Obrigada, Diná. Continue a acompanhar-nos e saiba como se desenrola a história.
EliminarVersos sem "A"... hum, não é fácil. Mas vou tentar :)
Bom resto de fim-de-semana!
Abração
Um conto interessante e cativante.
ResponderEliminarBeijinhos
Maria de
Divagar Sobre Tudo um Pouco
Obrigada, Maria. Continue a acompanhar-nos.
EliminarBeijinhos
Bom resto de fim-de-semana!
Estou a gostar muito interessante e bem escrito.
ResponderEliminarUm abraço e bom fim-de-semana.
Andarilhar
Dedais de Francisco e Idalisa
O prazer dos livros
Cada autor com o seu estilo, tenta manter a história interessante. Que bom que estamos a conseguir.
EliminarAbraço e bom resto de fim-de-semana!
A memória do passado, escondida.
ResponderEliminarUma mulher que liderava.
A esperança num "sem eira nem beira".
Ansiedade.
Solidão?
Um bom capítulo com um bela prosa.
Parabéns Luísa. Um gosto ler.
A mulher que tenta sempre ir mais além :)
EliminarBessa, obrigada por teres preparado tão bem o terreno.
Capítulo escrito por uma mulher, que conhece bem as reações femininas.
ResponderEliminarLaíssa à frente do seu tempo, como sempre acontece. Orionte sempre atento. Aguardemos!
Bom fim de semana. Saudações.
As mulheres sempre visionárias... :)
EliminarObrigada pelo comentário, Céu!
Bom resto de fim-de-semana!
Gostei muito, agora é esperar pelo próximo capítulo para ver que rumo irão dar ao conto. :) Bom fim de semana.
ResponderEliminar--
O diário da Inês | Facebook | Instagram
Vamos ver o que nos trazem os próximos autores.
EliminarBom resto de fim-de-semana!
Um pouco de realidade no nosso conto, já fazia falta!
ResponderEliminarSão as várias vertentes que constituem o todo :)
EliminarBeijinho, Dina!
Tentamos manter o interesse :)
ResponderEliminarAbraço
Bom resto de fim-de-semana!
Um belo e interessante texto.
ResponderEliminarUm abraço.
Obrigada, Francisco.
EliminarContinue a acompanhar-nos e conheça os próximos autores.
Abraço
Gosto muito de teus textos por fluir naturalmente e tal Dostoyevski, externa os sentimentos humanos, principalmente da da mulher. Parabéns, amiga! Minha admiração. Grande abraço. Laerte.
ResponderEliminarObrigada.
EliminarFico feliz de te encontrar aqui.
Outro grande abraço desde aqui!
Um excelente e apreciado trabalho Literário. Assim vocacionada, auguro os maiores êxitos.
ResponderEliminarBeijo
SOL
Fica muito contente pela apreciação.
EliminarBeijo
Continuando a acompanhar esta excelente publicação colectiva.
ResponderEliminarBoa semana
Obrigada, Pedro.
EliminarEspero que continue a acompanhar-nos e que continuemos a agradar-lhe.
Bom resto de semana
Mais um capitulo que me continua a aguçar a curiosidade.
ResponderEliminarBoa semana
Estamos já todos à espera do próximo autor :)
ResponderEliminarBom resto de semana!
Olá Luísa,vim deixar meu carinho e desejar uma ótima tarde... Continuo no aguardo, Gostei muito desse trabalho coletivo.
ResponderEliminarBjss1
Olá, Diná. Ficamos sempre à espera do próximo capítulo, não é?
EliminarBoa semana!
Beijinhos
Muito interessante este conto com novos elementos que nos aguçam a curiosidade. Muito bom Luisa bjs.
ResponderEliminarObrigada, Clementina!
EliminarVamos ver o que nos vão trazer os próximos autores. Beijinhos
Não li o que antecede o texto. Nem faço ideia de como trabalham para este conto a várias mãos. Por isso, é impossível avaliar de forma honesta. Mas a sua prosa é escorreita, acontece alguma coisa durante ela e deixa margem para a continuação:). A luta das mulheres pelos seus direitos tem muito modo para ser dita.
ResponderEliminarCada autor escreve um capítulo, mediante uma escala que elaboramos no início de cada conto, e publicamos semanalmente. Se "andar" para trás no blogue, encontra os capítulos anteriores e a forma como cada um tem desenvolvido a história desde o início.
EliminarBoa semana!
Voar sem asas... Sonho de todo homem! Lindo, parabéns!
ResponderEliminarObrigada!
EliminarBoa semana.
first visit to your beautiful blog my friend and i am stunned with you magnificent way of writing!!!
ResponderEliminarGostei imenso deste capítulo.
ResponderEliminarUma excelente narrativa. Parabéns pelo talento literário.
Continuação de boa semana.
Abraço.
Obrigada, Jaime.
EliminarFico agradada com as suas palavras.
Boa semana e um abraço!