Foto © José Bessa |
Manhã cedo, Orionte foi descendo lentamente o vale em direcção às
casas.
O vagar com que o fazia não lhe revelava a idade já avançada, mas
o hábito expectante que a vida lhe ensinara. Só após o nascimento da neta se
fixara; mantendo apenas a peregrinação anual às Três Marias como ritual de
transcendência. De resto, para além das tarefas diárias necessárias à
sobrevivência, só as deambulações em ritmos e hábitos contemplativos.
Quem o visse, agasalhado apenas com uma túnica, apoiando-se num
bordão e levando de bagagem somente uma velha mochila, lembrar-se-ia de contos
antigos, ascetas e profecias. Apenas duas peças da indumentária faziam
regressar aquela imagem à realidade dos novos tempos; as botas, adaptadas à
árida gravilha que grassava alastrando-se na paisagem, e, por contraposição, um
indiscreto medalhão que usava sem rebuço, apesar da proibição em se exibirem
quaisquer objectos que transportassem memória.
Orionte não era um rebelde incitando pessoas para comportamentos à
margem das imposições superiores, não, ele era superior, e surpreendentemente
admirado por quem o via surgir.
Uma nave pairou sobre as casas. Homens, mulheres, e crianças
mostraram-se, como era ordem expressa, e os cabelos elevaram-se num efeito
bizarro. Fixaram o óvulo exterior para identificação ocular e aguardaram sinal
para continuar as suas tarefas. Orionte mantinha os seus óculos de Sol,
ostentando-os à câmara circular que, sem sucesso, tentava estabilizar o seu
olhar.
Um sorriso cresceu-lhe nos lábios. Ah… como gostava de provocar…
Foi notada a atitude cómica do recém-chegado, de braços abertos
como quem se oferece, e longo cabelo no ar dissipando electricidade estática na
brisa da manhã.
Quando a nave abandonou o local elevando-se lentamente no céu
garço, abeiraram-se do forasteiro perguntando-lhe se necessitava de alguma
coisa; mas não, Orionte gostava de apreciar a surpresa que provocava «Não,
muito obrigado, aguardo só o meu filho…», e aninhou-se encimando a pequena
coluna que outrora segurava um portão, lembrando um capitel.
Aquele desconhecido sentado em frente da casa devoluta gerava
alguma curiosidade e inquietude, no entanto, o local regressou a uma aparente
normalidade e os poucos habitantes dispersavam para a suas rotinas solitárias.
Thays e Laíssa levaram Míryo para mais um passeio à albufeira. No topo da
colina avistaram-se três vultos que chegavam, Laíssa acenou como se os
esperasse. Alguém aguardava na borda do lago, e…
- Rafael?!. Bom dia… Que fazes cá tão cedo?... Não te esperava…
- Vim despedir-me…
- Despedir-te?! Mas, despedir-te?...
- Sim, Thays, vou fazer uma viagem e, talvez não volte…
- Fazer uma viagem, onde? Nunca me tinhas falado em viajar; e,
vais com quem?
- Vou só…
- Só?! Mas… queres contar-me o que se passa?... Tu és meu
irmão…
- Os superiores tinham-me prometido que, se superasse os
objectivos, me dariam a oportunidade de… viajar e… talvez ficar a viver lá…
- Lá?!... Mas… Onde fica “lá”? E, quem são os “superiores”?
- Não posso dizer-te, Thays… Não estou autorizado.
- Rafael! Por amor do Universo! Não me deixes nesta ignorância!
Diz-me! Que é isso de, “objectivos”?!
- Não posso dizer-te mais do que - é um local escolhido onde vivem
pessoas, em comunidade…
Laíssa assistia à conversa com a habitual atenção, mas sem
intervir. Tantas vezes tinha questionado aquela paz, aquela vida controlada mas
não escondida… Um dia perguntou ao pai o que ele sabia sobre aquela comunidade
e ele respondera-lhe que por enquanto não lhe poderia dizer nada, «temos de ser
prudentes, Laíssa…», que era um local seguro, que ficasse tranquila. Quando o
questionou sobre o pai de Míryo, alertou-a «tem cautela!… não faças perguntas
embaraçosas… podemos ser expulsos…». Sim, já tinha sentido o incómodo quando
questionara Thays sobre o filho, e na evasão de Rafael ao aperceber-se que ela
lhe iria perguntar sobre a agência de viagens.
Era agora o momento de obter respostas do Rafael sempre esquivo,
agora, ou nunca… agora, que ele ia embora definitivamente e não teria problemas
em revelar o que sabia, agora, que pensava viver com Iosef, agora que iria ter
uma família, talvez… Era o momento!
- Rafael, tu e… a Eduína, são as únicas pessoas que nos visitam
que conhecem outros locais, outras gentes. São as únicas pessoas que nos podem
contar como é lá fora… E agora, tu vais embora… E vais sem nos dizeres nada que
nos possa ajudar a entender o que se está a passar, o que sabes destes
segredos, dos motivos que geram este medo constante?... O que sabes tu, Rafael,
que não nos podes dizer?...
- Nunca te perguntaste como era possível, tu, Laíssa, e as outras
mulheres desta pequena comunidade poderem circular sem preocupações, sem se
manterem escondidas ou dissimuladas; e nunca terem desaparecido?
- Sim, estranhei, perguntei-vos até, e só obtive evasivas. Eu
nunca tinha vivido assim, só tinha conhecido a clausura e o segredo, os
cuidados para ser invisível, a protecção do meu pai que tinha medo que
soubessem da minha existência… cheguei a acreditar até que não havia mais
mulheres…
- Já pensaste, Laíssa, que quase todas as mulheres pensam que são,
a única mulher? Já questionaste, porquê? Porque pensam assim?
- Não entendo, Rafael…
Rafael estava num estado nervoso próximo do transe. Vagueava o
olhar vítreo entre a irmã o sobrinho e o ondular da água. Um misto de vergonha
e culpa apoderou-se dele provocando-lhe um tremor que mal conseguia disfarçar.
Balbuciava frases sem nexo, sussurrantes; circulava titubeante à volta delas.
- Olha para a minha irmã… O problema não é semente Laíssa, semente
compra-se! Terra não. Onde está a nossa capacidade de gerar? Onde germinam as
nossas vergônteas? Onde vês terra Laíssa? Para onde levaram a terra Laíssa? Já
pensaste nisso? E, com que finalidade se rouba a terra a esta Humanidade?
- A “esta” Humanidade, Rafael?!
- Sim. Já te passou pela cabeça que pode existir outra Humanidade?
Ou; várias Humanidades?!
Orionte tinha-se mantido por perto em intencional invisibilidade
mas atento ao desenrolar da conversa. Desconhecia quem era Rafael e que
informações tinha, mas estava cada vez mais curioso com o avançar da conversa e
adivinhava que aquela personagem podia ter respostas para muitas dúvidas
antigas, quem sabe, a resposta para alguns mistérios que assolavam quem se
preocupava, quem era curioso, quem questionava.
- Unanimidades! Quer o senhor dizer…
- Hã!
- Desculpe?…
- Apresento-me… Chamo-me Orionte, e cheguei esta manhã…
Thays manteve Míryo firmemente no colo, num sinal de posse nada
habitual.
- Ouvi-o falar em Humanidades… Estou curioso… No tempo que levo de
vida só conheci comunidades; gentes separadas cuidando da sua individual
sobrevivência sem futuro além da vida pessoal, pessoas sem a noção de conjunto
geral, do Ser Universal… pessoas a quem antes chamavam egoístas porque tinha
conhecimento do todo mas não lhe tinham respeito, e agora só conhecem a parte
imposta por alguém que desconhecem. O senhor Rafael conhece mundos para além
deste mundo? Humanidades para além desta, chamemos-lhe também, Humanidade?
Parece-me que sim… Trabalha em viagens, não é? Viagens… O que nos pode dizer
então, agora que está de saída não pensa voltar e deixa família?
- Pai! Então; chegou sem aviso? Sempre o mesmo…
- Olá Iosef! Ainda bem que chegas…
O encontro com os três recém-chegados veio arrefecer a ansiedade
da conversa. Orionte cumprimentou Naldan já com Thyara ao colo, Iosef beijou
carinhosamente Laíssa acariciando-lhe o cabelo, Thays estreitou Míryo com
carinho e deu a mão ao pai que olhava por cima das cabeças procurando Rafael. E
naquele instante, naquela reunião em que todos se cumprimentaram com alegria,
sentiu-se o calor humano do encontro, o afecto dos iguais, a fraternidade que
“alguém”, um dia, pensou poder destruir pela mutilação.
Juntaram-se ali, naquele momento, quase três famílias… três
gerações. Só Rafael se ausentara…
Rafael transportava o queimor do remorso, da perfídia, da insídia
para com todos, daquela Humanidade.
José Bessa
Um conto deveras interessante me curiosa dimensão!!!
ResponderEliminarGostei de ler!bj
Obrigado.
EliminarConto consigo para nos seguir. :)
Parabéns Bessa-Jose, agora com mais abertura á ficção, o que adoro, o conto continua a prometer
ResponderEliminarObrigado.
EliminarTem de voltar a escrever connosco. :-)
Belo conto e foto, mesmo que com a árvore despida, quem sabe, despida de preconceitos.. :)))
ResponderEliminarAbraço e obrigado.
Olhar d'Ouro - bLoG
Olhar d'Ouro - fAcEbOOk
Obrigado.
EliminarNão é fácil encontrar a imagem "certa".
Um abraço.
Boa tarde, a bela imagem está em sintonia com o belo conto, José Bessa! a criatividade é sempre bem vinda.
ResponderEliminarBom fim de semana,
AG
Obrigado.
EliminarHabitualmente escrevo, e só depois procuro uma imagem para "abrilhantar" a prosa. Desta vez, foi ao contrário; aquela árvore foi o mote para a prosa. Está despida, mas não seca... :-)
Narração excelente. O contadores de Histórias possuem um Dom magnífico. Parabéns.
ResponderEliminarAbraço
SOL
Obrigado. :-)
EliminarGostei e está muito bem escrito.
ResponderEliminarUm abraço e bom fim-de-semana.
Andarilhar
Dedais de Francisco e Idalisa
Livros-Autografados
Obrigado. :-)
EliminarBom dia José Bessa, voltei para ler mais, gostei da sua narrativa, um conto curioso com um toque místico. Não gosto de ler contos extensos, mas este prendeu minha atenção do início ao fim.
ResponderEliminarAdmiro muito quem bem desenvolve o dom de contar histórias.
Votos de um feliz domingo com ótimas inspirações!
Obrigado.
EliminarEspero que fique, para nos seguir até ao fim. :-)
Excelente capítulo. Gostei bastante da reviravolta dada à história, que volta assim ao tema original. FC.
ResponderEliminarParabéns, Bessa!
Obrigado, Luísa.
EliminarA passagem pelo Alentejo foi a minha salvação... :-)
Estive lendo, na diagonal, os capítulos anteriores escritos por diversas pessoas e todas têm um fio condutor na escrita, o que é bom para o leitor e também para vocês.
ResponderEliminarGosto de textos grandes, embora o conto não seja o "menino dos meus olhos", a forma literária preferida, mas sabe-me bem ler e imaginar.
Aqui há ficção e talento, muito talento, sem duvida. Gramaticalmente, morfológica e sintaticamente, o texto está quase perfeito e o diálogo dá-lhe um certo dinamismo, pois descrição ou narração extensas cansam quem as lê.
Há muito que não via escrita a palavra hã, tão comum na nossa Língua, e fiquei alguns instantes nela detida. Hã, ahn, hãn, tudo o mesmo, agrada-me. É linguagem, escrita popular e exprime à-vontade literário.
Orionte, nome de um dos personagens ou das personagens, fez-me pensar, no início da leitura, numa constelação, ou seja, Oríon, mas afinal não era e não é. Interessante a descrição, que o Zé Bessa faz dela. Enigmático, mas simultaneamente um homem simples.
O nome escolhido e dado às personagens foi outra "coisa" engraçada. Fazem-me lembrar nomes árabes, de que muito gosto. Donde veio essa ideia?
Estamos em que planeta, neste conto (rs)? Creio, que vocês são todos portugueses e terrestres, mas, como conto que é, vá de pôr "palha" para nos atraírem. É assim, que se deve fazer, contudo há que ter em conta o tamanho do conto. Se muito grande, desmotiva e a nossa gente, em geral, não tem o hábito da leitura e muito menos deste tipo. É fácil comentar e dizer: gostei muito ou lindo demais, mas isso abarca "n" possibilidades, ou melhor, nada nos diz.
Grata pela visita e comentário àquilo, que escrevo.
Abraço e boa semana.
Grato pelas suas palavras.
EliminarDe facto, Orionte, Três Marias, enfim… quem sabe o que nos trará o pó do Cosmos. E, sim, estamos no planeta Terra, assolado por uma maldade que teremos, imperativamente, de resolver.
Convido-a a seguir os próximos capítulos; neles sim, saberemos o que nos espera.
Farei uma visita também. Um abraço. :-)
Que óptima ideia esta do conto. Tentarei ir ler a restante história! :)
ResponderEliminar--
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Obrigado.
EliminarAguardamos por si. :-)
Olá amigo, um conto que li sem pestanejar e achei pouco. Adoro ler e quando o escritor consegue transportar o leito, para dentro da escrita é óptimo. Adorei. Beijos com carinho
ResponderEliminarObrigado pelas suas palavras.
EliminarConvido-a a seguir-nos, vai tornar-se empolgante. Acredite. :-)
Para continuar a acompanhar não me atrevendo a tentar adivinhar o que se segue.
ResponderEliminarAquele abraço, boa semana
Obrigado.
EliminarEsperamos por si. :-)
Um abraço.
O (leitor) queria eu dizer rrss...esta escrita inteligente dá-me cabo do cadastro. Um abraço
ResponderEliminarEu percebi rosa-branca... :)
EliminarEstas máquinas, supostamente, foram inventadas para nos ajudar, mas, às vezes... :D
Consigo visualizar o cenário e as personagens.
ResponderEliminarMuito bom.
Abraços
Obrigado. :-)
EliminarBoa construção narrativa. Visualista e atenta aos pormenores. Boa construção das personagens.
ResponderEliminarAtenta estarei à continuação.
Beijo meu
Obrigado, Ana Tapadas.
Eliminaresperamos por si. :-)
Olá, José Bessa
ResponderEliminarBom dia:
Mais um Capítulo promissor. Mais gente e mais "suspense".
Gostei da ideia da existência de mais "Humanidades".
Talvez possamos aprender alguma coisa umas com as outras,
já que "esta", a nossa, não consegue encontrar-se.
Muito obrigada por este belo texto.
Abraço
Olinda
Obrigado, Olinda Melo.
Eliminartenhamos esperança na(s) Humanidade(s). :-)
Que "humanidades" se perspectivarão no horizonte? Só o Autor saberá. Mais um desafio lançado. Parabéns, José Bessa
ResponderEliminarObrigado, João Madeira.
EliminarHá que seguir o conto... tudo se saberá... :-)
Este conto continua a ser bem contado.
ResponderEliminarParabéns aos autores.
Continuação de boa semana.
Um abraço.
Obrigado, Jaime Portela.
EliminarBom fim-de-semana. :-)
O nosso conto lá continua com a viagem pela ficção. A família continua a crescer. Parabéns José Bessa!
ResponderEliminarBoa tarde, o conto é daqueles que cativa, certamente que vai surpreender o pensamento, "com que finalidade se rouba a terra a esta Humanidade?" é para pensar.
ResponderEliminarContinuação de boa semana,
AG