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21/07/18

Janelas De Tempo - Capítulo 2

Pintura mural, Batalha de S. Mamede, Sala Acácio Lino, Palácio de S. Bento


       Júlio apressou-se a carregar no botão vermelho, mas, à medida que a sua respiração acalmava, prometeu a si próprio fazer os possíveis por aproveitar melhor a próxima oportunidade. Só tornou a carregar, quando se sentiu suficientemente calmo para enfrentar o que viesse.
         A porta abriu-se, deixando entrar o ar tépido de um fim de tarde de Verão. Júlio resolveu, porém, não despir o capote de palha do século XVIII, que lhe cobria as roupas modernas. Naquela paisagem de colinas verdes e alguns montes à distância, não se via vivalma, nem povoações. Aterrara com certeza novamente num tempo passado.
         Depois de andar cerca de quinze minutos, ouviu vozes e escondeu-se atrás de uns arbustos. Viu dois homens envergando túnicas e botas grosseiras, com adagas nos seus cintos, lanças nas suas mãos e capacetes redondos com aba. Pareciam andar a patrulhar.
         Júlio deixou-os passar e avançou, depois, com a máxima cautela, na direção de onde tinham vindo, subindo uma colina de pinheiros mansos. À medida que escurecia, foi distinguindo, entre as árvores, um clarão que parecia ser gerado por fogueiras. No cimo da colina, deparou com um acampamento numa enorme clareira. Viu tendas grandes, no centro, rodeadas de outras mais pequenas e, num último círculo, muitas carroças, com os respetivos animais, e gente sentada à volta de fogueiras.
         Estava na Idade Média! Mas em que século? E onde?
         De repente, sentiu passos apressados atrás de si. Antes que pudesse reagir, foi agarrado com rudeza pelos braços. Dois homens dirigiam-lhe palavras furiosas, mas, apesar de notar alguma familiaridade na língua, Júlio não os entendia. Expressavam-se num idioma muito rude, que tinha aliás alguma semelhança com o espanhol moderno. Ao mesmo tempo, distinguia um sotaque nortenho, com a terminação de muitas palavras no característico “om”.
         Quando um dos homens lhe apontou a lança, acabou por gritar:
- Estou desarmado… venho em paz!
Quedaram-se estupefactos. Júlio duvidava que o tivessem entendido. O que o segurava começou a despir-lhe o capote. Seria para que o outro lhe pudesse melhor enfiar a lança? Júlio preparava-se para lhes suplicar que não lhe fizessem mal, quando notou que observavam boquiabertos a sua t-shirt e os seus jeans. Os dois trocaram mais algumas palavras e começaram a apalpar-lhe as vestes, parecendo impressionados com a fineza dos tecidos que sentiam entre os dedos grosseiros. Um deles descalçou-lhe um dos ténis, que examinou assombrado.
Passaram a olhá-lo com uma curiosidade que roçava a admiração, o que o fez pensar que achassem ser ele alguma espécie de fidalgo. Trocaram mais algumas palavras, Júlio julgou perceber os nomes “Domna Tareja” e “Dom Fernán Perez”! Seria possível que…
Fizeram-lhe sinal que avançasse com eles, ordenavam «anda, anda», e puseram-se a caminho do acampamento. Júlio habituava-se àquele falar, percebia cada vez mais palavras e expressões.
Lá chegados, o forasteiro foi objeto de muita curiosidade, mas os seus acompanhantes avançavam decididos, sem responderem às perguntas, e só pararam em frente à maior tenda. Depois de trocarem algumas palavras com os sentinelas que a guardavam, um destes despareceu no seu interior. Ao regressar, fez-lhes sinal que entrassem.
Júlio deparou com quatro homens e uma mulher ricamente vestidos, sentados a uma mesa retangular, onde se viam cálices de prata talhada. As malgas e os pratos pareciam, porém, de madeira, não se viam cerâmicas, talvez por não serem práticas em tal situação. Havia tapetes no chão e outros pendurados, a marcar divisões.
A figura da mulher atraiu-o como um foco de luz, apesar de lhe parecer fatigada, talvez doente. Teria à volta de cinquenta anos e o seu rosto, emoldurado pelo véu, refletia ainda o encanto de outros tempos, nuns olhos castanhos e profundos. As suas força e formosura encontravam-se, porém, abafadas por uma capa de angústia e cansaço. E Júlio compreendeu tudo!
Os homens tinham falado uns com os outros e faziam-lhe agora perguntas, que ele ignorava, ainda preso no olhar de D. Teresa, que se mantinha calada, tal como ele. Os fidalgos ficavam impacientes, inquiriam-no de maneira cada vez mais agressiva, instando-o a que finalmente dissesse quem era, de onde vinha e o que estava ali a fazer.
Quando Júlio resolveu falar, ignorou-os, dirigindo-se a D. Teresa e tentando falar à maneira da época:
- Investir contra vosso filho parte-vos o coração!
Pôs as mãos sobre o peito, a fim de demonstrar melhor o que queria dizer. Tê-lo-iam entendido?
Depois de um momento de estupefação, os homens desataram novamente aos berros, aos quais D. Teresa pôs fim com apenas um gesto. Levantou-se e aproximou-se de Júlio, pondo igualmente as mãos sobre o peito:
- Sabeis ler no meu coração?
Júlio lembrou-se que, na Idade Média, era comum a crença em sábios, a quem se atribuíam poderes de adivinhação. Era a sua única hipótese e aventurou-se, no seu portunhol com sotaque nortenho:
- Estais amargurada, por não vos deixarem morrer como rainha. Sentistes na pele que uma mulher não vale tanto como um homem, que anseiam por vos substituir por vosso filho. E só aceitais a derrota pelas armas.
Um dos homens, claramente Fernando Peres de Trava, levantou-se furioso, bradando que ele lhes trazia azar, agourando uma derrota. Clamava que se aprisionasse o forasteiro, mas D. Teresa novamente o fez calar, inquirindo:
- Como vos chamais?
- Júlio. Não me pergunteis, porém, de onde venho, nem para onde vou. Não vos posso responder. Apenas vos digo que vosso filho terá um futuro glorioso e será ainda recordado daqui a mil anos.
Os olhos de D. Teresa fulgiam como chamas. Fernando Peres explodiu em mais protestos e a rainha, perdendo a paciência, exigiu que a deixassem a sós com o forasteiro. Os fidalgos indignaram-se, seria arriscado demais. Como ela, porém, insistisse e os guardas confirmassem que o forasteiro estava desarmado, os nobres acabaram por concordar, conquanto os dois se sentassem o mais longe possível um do outro e D. Teresa prometesse dar alarme, mal Júlio fizesse tenção de se levantar.
Uma vez sozinhos, e embora não estivesse totalmente seguro do que dizia, Júlio arriscou:
- Amanhã, dia de São João Baptista, do ano de Cristo de 1128, dar-se-á um confronto armado no campo de São Mamede, às portas do castelo de Guimarães.
- E vós profetizais que vou perder, não é assim?
Bingo! Júlio manteve a sua postura soberana:
         - Assim é, minha rainha.
         D. Teresa sorriu amargamente:
         - No fundo, não me dais novidade. Abdicar, porém, está fora de questão. Fui por demais humilhada, disseram-se cousas horríveis a meu respeito.
         - Sim, eu sei.
         Dirigindo-lhe um olhar mais angustiado do que nunca, ela inquiriu:
         - Será legítimo partir para uma batalha, com o seu inevitável verter de sangue, com a convicção de que não podemos ganhar?
         Por um momento, Júlio não soube o que dizer. Estava nas suas mãos impedir o confronto e salvar vidas. Isso significaria, porém, mudar radicalmente o curso da História, impedindo a realização da Batalha de São Mamede, essencial para a formação de Portugal.
         Ficou abismado com a responsabilidade que tinha entre mãos. Nunca pensou que aquelas viagens no tempo, nas quais embarcara por falta de perspetivas, exigissem tanto dele. Que fazer, meu Deus?
         Deus! Era a Ele que competia decidir. Não a um pobre mortal, perdido nas malhas do tempo. Sentindo-se mais leve, retorquiu:
- Estamos nas mãos de Deus. Seja feita a Sua vontade!
- Assim será, D. Júlio! A terra é minha, pois meu pai el-rei Dom Afonso VI ma deixou. Como vós próprio afirmastes, só aceito a derrota pelas armas.

Por ordem de D. Teresa, foi-lhe disponibilizado um local para dormir. Na manhã seguinte, um pajem entregou-lhe uma túnica de linho, que Júlio vestiu por cima da própria roupa e cingiu com o seu cinto, e uma touca, semelhante à que a maior parte dos homens usava. Pô-la na cabeça, a fim de que passasse o mais despercebido possível. E assim assistiu, ao longe, junto com o séquito de D. Teresa, ao combate que se desenrolou no campo de São Mamede.
 Júlio mal acreditava que lhe era concedida a oportunidade de testemunhar aquilo que mais tarde se apelidaria de «primeira tarde portuguesa». O castelo de Guimarães, porém, desiludiu-o. Não era nada daquilo que conhecia, ou seja, o resultado de várias transformações ao longo dos séculos. No ano de 1128, a fortaleza não passava de uma muralha, mais ou menos oval, bem mais baixa do que tinha na memória e sem os seus famosos torreões. No seu interior, a torre era igualmente mais baixa e rudimentar, lembrava-lhe a torre do castelo de Trancoso, que, pelos vistos, tinha chegado ao século XXI mais fiel ao original.
Júlio poderia ter assistido com uma indignação própria de quem é mais civilizado à carnificina que se desenrolou às portas do castelo. Poderia ter mentido a si próprio, considerando tal violência característica de tempos cruéis e incultos. Perguntou-se, porém, que direito tinha ele de se sentir mais humanizado do que as pessoas que o rodeavam. Lembrou-se das imagens que vira da guerra da Síria, dos massacres perpetrados em África entre etnias e religiões diferentes, dos ataques terroristas, da 2ª Guerra Mundial e do extermínio dos judeus. Ali estava ele, com quase mais mil anos de civilização em cima e, se a isso fosse solicitado, nada mais tinha para contar àquela gente do que continuarem os humanos do seu tempo a exterminarem-se uns aos outros em nome do poder, da religião, do que fosse.
Desviou esses pensamentos da cabeça, não lhe competia mudar a História, e concentrou-se num único objetivo: ver D. Afonso Henriques com os próprios olhos. No campo de batalha, porém, além da distância que não permitiria distinguir feições, todos os nobres pareciam iguais sobre os seus cavalos, envergando os seus lorigões de malha de ferro, os seus elmos cónicos e segurando os seus escudos e as suas espadas.
Sabendo de antemão como terminaria o combate, Júlio afastou-se discretamente. Não lhe foi difícil, já que, por não saber montar, ali se tinha deslocado a pé, junto com o povo que fazia parte do acampamento. Antes de deixar a colina, em direção à vila, lançou um último olhar à “rainha”, majestosamente sentada em cima do seu corcel, assistindo de cabeça erguida à derrota que adivinhava. Teve pena de não se poder despedir dela, elogiando-a pela dignidade com que enfrentava o seu fim.
Dirigiu-se à vila de Guimarães, quedando-se pelas imediações do castelo. Assim que o combate terminou e os aliados de D. Afonso Henriques começaram a festejar, foi-se aproximando do campo de batalha, à semelhança de alguns habitantes da vila. Vinham celebrar a vitória, mas não eram tantos como Júlio tinha imaginado. Para grande parte deles, pelos vistos, era indiferente quem dominava o condado Portucalense. Pretendiam, apenas, sobreviver ao dia-a-dia e não faziam ainda ideia do significado daquela refrega. Tudo era diferente da dimensão que se lhe haveria de dar, incluindo a própria batalha. Da parte de D. Teresa, tinham combatido pouco mais de trezentos homens; os partidários de D. Afonso andaram à volta dos seiscentos.
Júlio juntou-se a um grupo que dava vivas. Os guerreiros a cavalo tiravam os seus elmos e almofres, descobrindo a cabeça. D. Afonso acabou por passar perto do grupo, saudando-os a todos. Júlio acenou-lhe e, apesar da emoção, mais uma vez constatou a diferença entre a crença e a realidade. Não que o futuro rei o tivesse desiludido, era bem constituído e transmitia um ar resoluto e corajoso. Porém, sempre que pensara na Batalha de São Mamede, não tivera presente que D. Afonso era um jovem à volta dos vinte anos. E foi a evidência dessa juventude, com a imaturidade e uma certa sobranceria que a caracterizam, que mais atingiu Júlio. Haveriam de se passar ainda duas décadas, até o primeiro rei de Portugal se tornar no soberano poderoso e maduro que conquistaria as cidades de Santarém e Lisboa.
Talvez Júlio ainda tivesse oportunidade de assistir a esses momentos históricos. Talvez não. De qualquer maneira, achou avisado regressar à sua máquina do tempo. D. Teresa recolher-se-ia num mosteiro galego, morreria cerca de dois anos mais tarde e sabe-se lá se D. Afonso simpatizaria com ele, à semelhança da mãe…
Manifestando o seu cérebro a intenção de regressar à máquina, logo o micro GPS implantado o guiou na direção certa. Júlio teve pena de deixar aquele local e aquele tempo.
Carregou no botão vermelho. Na sua memória, muito mais do que o rosto jovem de D. Afonso, ficara gravada a imagem de D. Teresa, possuidora de uma dignidade que nem a desilusão profunda ousara destruir.


                                                                                              Cristina Torrão



16 comentários:

  1. Cristina, que maravilha viajar contigo!!!! Obrigada por esse primor!!! Beijinhos.

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  2. Excelente esta forma de dar continuidade ao texto. Revi-me em Guimarães e na nossa história. Parabéns.

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  3. Prezada Cristina Torrão.
    Que verve naravilhosa!
    Na visita que fiz ao reino distante além-mar, no ano de 2015, tive a grata satisfação de conhecer Guimarães.
    Grato pelo embarque e comentário no livro de bordo do Expresso do Oriente.
    Espero que em viagens no tempo vindouras a máquina do tempo permita que conheças o nobilíssimo lusitano Pero Vaz de Caminha (1499-1500).
    Saudações lusófilas.

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  4. Estou a adorar este conto, muitos parabéns! :) Bom domingo.
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  5. Que belíssima segunda parte!

    r: Acho que o segredo é mesmo esse: moderação

    Continuação de bom domingo*

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  6. Viagem fantástica pelos meandros da nossa história, através de uma escrita que em alguns momentos me fez sentir os pormenores de forma quase física.

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  7. Cinco estrelas!
    Como vem sendo hábito.
    Boa semana

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  8. Ir até à Idade Média e assistir à batalha de São Mamede. Ficar presa à juventude do rei e ao olhar sombrio de Dona Teresa… Gostei muito.
    Uma boa semana.
    Um beijo.

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  9. Mais uma vez, muito obrigada pelos vossos comentários.

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  10. Uma elegante prosa que nos transportou para o “acto do nascimento”. Temi, por momentos, alguma traquinice do Júlio. Mas não, deixou, sensatamente, correr a história…
    Muito oportuna, a comparação entre as guerras de outrora e as de hoje. Como as relativizaremos lá longe, nas memórias do tempo?
    Parabéns, Cristina Torrão.

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  11. E eis que, surpreendentemente, me vi à distância de um olhar, de um sorriso por esboçar, de um toque na pele de D. Teresa. Parabéns, Cristina, por me facultares esta proximidade. Que só os bons escritores conseguem.

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  12. Um texto maravilhoso que adorei ler.
    Obrigada pela presença. Estava em off, por isso ainda não havia passado por aqui
    Boa semana!
    Abraços.
    Eu volto!

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