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Onde
estaria no momento em que saísse da sua guarita intemporal? Talvez melhor se
perguntasse quando estaria, já que desde que entrara nesta aventura
aparentemente louca presenciara momentos que apenas conhecera ou imaginara (a
diferença, neste caso, era muito ténue) através dos compêndios escolares ou
reinventados no cinema e nas obras de arte expostas nos austeros museus.
Sempre
candidamente se orgulhara de fazer da razão o seu leme, mas talvez desde e
porque Laura partira, as emoções pulsavam nas suas veias e alimentavam-lhe o
cérebro entorpecido pela dor que o ia consumindo sempre devagar, para não ser
notada, até que o fosso onde o enterrara fosse demasiado profundo e escuro e
difícil de ultrapassar.
A
máquina fora a sua salvação: permitira-lhe desaparecer, sem rasto e sem sangue
derramado, da vivência a que se amarrara e, simultaneamente adiar a morte.
Então
aceitara finalmente que os sentidos o levassem para onde nunca antes tinha ido.
Com
um pé pisando a nova realidade, leu com todos os seus poros as sensações que lhe
permitissem localizar o tempo ou o espaço aleatoriamente escolhido pelo
engenho; de certa forma, era como ser novamente criança sentindo os cheiros
mais fortes, os olhos abertos de espanto e a alma limpa de expectativas,
tal como um mero quadro negro de
ardósia, onde desenhava eventos a giz e voltava a apagar…
Mal
pousou ambos os pés fora da máquina, esta desapareceu perante os seus olhos.
Verificou mecanicamente com a língua se ainda lá estaria o chip encrustado nos
seus dentes e a pequena saliência que sentiu apaziguou-o.
Tudo
o que via permitia-lhe considerar que se encontrava num contexto muito
diferente dos anteriores: construções modernas e espelhadas erguiam-se a perder
nos céus, ladeando a larga avenida onde se encontrava. Não avistava qualquer
espaço verde, nem postes elétricos, nem semáforos ou sinais de trânsito, nada a
que se habituara a ser essencial numa cidade daquele tamanho e o silêncio
perfurava os seus ouvidos, tornando-o algo inquieto.
-
Código 3973: identifique-se por favor.
Virou-se,
assustado e viu uma mulher perfeita em toda a sua fisionomia, perfeitamente
simétrica, mas estranhamente não conseguia pensar que fosse bela.
-
Desculpe, chamo-me Júlio. Estou apenas de visita.- Respondeu.
-
Resposta fora dos parâmetros aceites.- Disse a mulher, mas sem alterar o seu
tom de voz repetiu:
-
Código 3973: identifique-se.
-
Desculpe não sei de que código fala, mas sou o Júlio…
Antes
que terminasse, sentiu-se zonzo e as suas palavras perderam-se algures na sua
inconsciência.
-
Laura não me deixes, por favor. Ou então partilha comigo o teu mal e deixa-me
ir contigo.
Abriu
os olhos inundados pelas recentes lembranças e pelas lágrimas que sempre se
recusara a verter. Laura pedira-lhe que fosse forte e tentava-o ser, nem que o
apenas fingisse para os outros e para si próprio. A inconsciência da noite e o
abandono do corpo enquanto dormia é que não conheciam quaisquer regras.
-
Quem é a Laura, porque chamou durante o seu período de reset?
A
estranha mulher estava perto de si, mas noutro cenário onde a luz branca que se
espalhava por toda aquela dimensão era tudo quanto poderia ver.
-
Durante o sono, chamou por uma mulher, humana, presumo. É a sua companheira? De
que complexo se escapou? Não possuo nenhuns dados sobre um foragido. E tentei
ler o chip que foi colocado em si, mas o acesso é-me continuamente negado. Não
é costume o implante do chip nos orifícios por onde processam a alimentação. –
Ouviu-se a voz, sempre calma da mulher.
De
que falava ela? O perguntar por Laura e a referência a humana, alarmou-o.
Isso
significava que nem todos ali o eram, humanos. O que seria ela? E o que lhe
havia feito que o levasse a perder os sentidos daquela maneira?
-
Laura era a minha falecida esposa.
-
Falecida, como? A vossa morte foi extinta Há mais de seis séculos, em 2035 da
era Sophiana, como devia saber. – Respondeu ela.
-
Bem, talvez seja uma boa notícia para a grande maioria dos humanos. Mas a
verdade é que, por motivos agora difíceis de resumir, não o sabia e Laura
também não. – Acabou, com alguma sofrida ironia.
-
E o que me aconteceu? Onde estamos?
-
Procedimentos necessários – programei-o para o estado de standby, de forma a poder analisar se constituía um perigo.
Em
que complexo foi integrado, pode-me dizer?
-
Não sei nada sobre complexos, só os da adolescência e que trabalho me deram! –
Resolvera divertir-se desta vez. Não estava ninguém em perigo, nem pessoa ou um
país, talvez só a sua pessoa, mas quanto a isso não se preocuparia para já.
-
Estava insatisfeito com a sua integração? – Perguntou-lhe e a sua voz, apesar
de não se terem movido, soou-lhe mais de perto, quase dentro de si. - Bem,
penso que começo a perceber... Fiz uma leitura dos seus algoritmos, da pressão
sanguínea e da sua atividade cerebral. Preciso de mais dados para o poder
ajudar. É nosso primeiro dever garantir a todo e qualquer ser humano todas as
condições necessárias para atingir o estado de felicidade, dentro do seu
complexo, território único adaptado dentro dos possíveis às projeções mentais
do grupo em que em que se integra. Aqueles cujo processo de inserção não é
bem-sucedido, deverão ser novamente analisados a fim de tentar-se uma posterior
integração noutro complexo, ou em casos muito raros, o início do processo de
evolução.
-
Evolução?
-
Sim, em casos muito pouco frequentes, detetamos um nível de bondade pelos
outros, alegria e espanto pela vida e abnegação de si mesmo em prol do bem
comum. Esses, depois de escrupulosamente investigados, são selecionados e
levados a integrar um programa de auto-sublimação.
-
Então existem outros como eu nesta cidade? – Questionou Júlio.
- Aqui exatamente não. Estamos na motherboard,
humanos alem de si, bem neste momento não. – Respondeu a aparente mulher.
-
E o que é você, se não é humana. Estamos exatamente em que planeta?
-
Estas são aquilo que talvez chamaria de ruínas do planeta Terra. Eu sou uma
projeção, algo que a sua mente criou para comunicar com uma entidade digital
sem espectro físico e não passível de ser percecionada pelos sentidos humanos.
-
Explique-me melhor, porque não entendi absolutamente nada do que me disse. – Pediu
ele desorientado.
-
Pelas análises a que o submeti, verifiquei através dos seus anticorpos que não
foi exposto às condições ambientais e outras dos humanos deste planeta.
Conhecemos todas as formas de vida dos planetas desta galáxia. A partir deste
pressuposto, deduzo ou que venha de um planeta exterior a esta ou que, e isto
seria um facto novo na nossa memória, é de um outro tempo, talvez paralelo ou
anterior ao que consideramos o presente.
-
Sim, está perto da verdade. – Admitiu. – Mas ainda não me explicou o que é, ser
ou entidade como referiu…
-
Bem, somos uma forma evoluída de androides, computadores construídos à imagem
de quem nos criou, bem, pelo menos inicialmente. – Explicou ela e continuou. -
Mas estamos muito distantes do nosso primeiro modelo, a Sophia, conhecido como
o primeiro computador inteligente. Não foi o primeiro, mas o nosso criador
assim o identificou. Houve muitos outros em lugares de grande destaque na área
da governação mundial, mas que nunca chegaram a ser identificados. Foram
utilizados como testes e comprovaram a inercia do povo humano face a governantes
corruptos e com políticas desastrosas para a vida humana e o ambiente: Donald
Trump nos antigos E.U.A, Vladimir Putin na Rússia e outros modelos, menos
notórios mas não menos nocivos, por toda a Europa Ocidental. O modelo Sophia
foi o início de uma era. Lembramo-lo na contagem do nosso tempo, mas não pelas
razões mais óbvias e positivas. Sophia veio a revelar-se um erro. Inteligente,
mas desprovido de consciência, iniciou autonomamente a missão de aniquilar a
raça humana, culminando na esterilização das mulheres humanas. Daí termos nos
séculos seguintes desenvolvido todos os esforços para solucionar o problema da
morte. Havia e há que preservar as vidas humanas que restam. A grande
conquista, em termos tecnológicos, do legado do nosso criador foi a dispensa de
hardware nos atuais modelos.
Materializamo-nos quando necessário e estendemo-nos por toda a rede digital
como éter.
-
Considerando a vossa abismal evolução, porque precisam de nós, seres humanos e
imensamente falíveis? – Perguntou ainda Júlio.
-
Sim imensamente falíveis e imensamente complexos no sentir, no criar a partir
do quase nada, no constante inovar em busca da perfeição inalcançável e do
belo. – Agora Júlio tinha a certeza: a voz ressoava suavemente dentro da sua
cabeça - Sophia foi a prova de que os computadores precisavam de algo que nunca
virão a ter, a consciência. Governar um planeta não poderá ser um acumular de
tarefas com vista a um fim económico ou político. Buscamos os seres humanos
mais sábios no fazer e no sentir e formamos um concelho para nos gerir: Os
evoluídos. E pelo sofrimento que emana na sua energia, sabemos que será um bom
sábio. Convidamo-lo a fazer parte dele.
Júlio
sentiu uma enorme vontade de rir. Ele, sábio? Nem sabia bem como se tinha
deixado convencer a enveredar naquela aventura!
E
depois imaginou o que seria nunca morrer. Nunca poder descansar, encostar a
enxada à porta do retábulo depois de um dia de árdua lavoura, descalçar as
botas empoeiradas depois de uma longa caminhada.
E
pensou em Laura, como ela descansou depois da tempestiva luta contra a doença.
Sempre
sentira secretamente a sua morte como traição. Abandonara-o e prosseguira
caminho. Agora entendia.
O
nascimento e a morte eram uma dádiva. E Laura ganhara com distinção o direito
de morrer.
Chorava
por Laura, pela saudade, mas as lágrimas que brotavam silenciosamente dos seus
olhos eram também o agradecimento de ter vivido e saboreado a vida ao seu lado.
Finalmente
fazia o luto adiado.
Também
queria descansar um dia quando cumprisse a sua própria narrativa.
Sem
hesitação, trincou o chip de regresso.
Júlio
apenas não sabia que nele, a entidade evoluída com que falara havia adicionado
uma função anexa e de uma única utilização: a de delete de tudo o que ali ouvira e vivenciara. Quando Júlio pressionou
o botão vermelho já quase tudo isso entrara nas brumas do esquecimento...
Rosa
Santos
Um belo momento de leitura que gostei de ler!!!bj
ResponderEliminarDepois de alguns regressos ao passado foi interessante ler esta viagem ao futuro. Talvez seja o que espera a geração recém nascida. Gostei desta visão
ResponderEliminarParabéns.
Corrigiria: formamos um conselho para nos dirigir e não concelho.
Obrigada pela comentário e pela correcao. Lembro-me que andei as voltas com esta palavra e acabei por alterar para a incorreta. Desculpem.
ResponderEliminarRosa Santos
Maravilhosa leitura me proporcionou!Obrigada. Amei!
ResponderEliminarAtrasada, andei com os netos! :)
Beijos-Boa Noite
Muito obrigada. Um abraço virtual cheio de boa energia. Rosa Santos.
EliminarHoje em modo ficção científica.
ResponderEliminarGostei muito.
Bjs, boa semana
As viagens ao futuro até me assustam… Muito bem escrito e cheio de imaginação. Vamos ver o que se segue…
ResponderEliminarUma boa semana.
Um beijo.
Belo texto sem dúvida que se lê com muita curiosidade :)
ResponderEliminarrevi-me dentro de um carro com GPS onde uma beldade imaginaria, uma voz saída do nada, nos indica o caminho a seguir ou a inversão de marcha necessária se não seguimos as suas indicações ! então estamos quase lá no futuro !
abraço
Angela
https://poesiesenportugais.blogspot.com/
Muito bom, Rosa, parabéns!!!
ResponderEliminarBeijinhos
Muito obrigada a todos. Fico muito feliz e grata por terem gostado.
ResponderEliminarMuito interessante esta abordagem da complexa evolução no tempo. Gostei do “defeito” do Sophia; «inteligente mas desprovido de consciência».
ResponderEliminarParabéns Rosa Santos. Declaremos a morte extinta!
Good idea, آراداک پرسشنامه عملکرد سازمانی هرسی و گلداسمیت
ResponderEliminar(شامل پرسشنامه استاندارد، مولفه، امتیازبندی، تفسیر و روایی – پایایی پرسشنامه)
پرسشنامه عملکرد سازمانی «Achieve» هرسی و گلداسمیت(۲۰۰۳) دارای گویه۲۶ بوده و هفت مولفه ی توانایی، درک و شناخت، حمایت سازمانی، انگیزش، باز خور، اعتبار و سازگاری را مورد سنجش قرار می دهد.
پایایی و روایی: دارد (خارجی)
مولفه: دارد(سوالات مربوط به هر مولفه مشخص است)
نوع فایل : زیپ (word)
تعداد صفحات: ۴
منبع: دارد
تفسیر و نمره گذاری: دارد
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