Quadro de Marta Bessa, espantosamente conservado numa parede luminosa da casa |
«A meia-idade, que a todos traz serenidade, condescendência,
conforto e o prazer duma vida estável, a mim, tirou-me tudo. Agora, que os
miúdos seguiram os seus caminhos e ele outro, estou para aqui sem serventia nem
destino, remoendo, remoendo, sem fim à vista, sem motivos e sem amigos. Não
tens amigos porque não queres! Não quero? Não quero? Onde estão eles, onde? Há dias
passei em revista a minha agenda de contactos, aquela, a última antes dos
telemóveis e das memórias digitais. O que vi? Mortos. Mortos e algarismos a
menos. A mania de ter amigos mais velhos foi no que deu. Daquelas dezenas ou
mais de contactos, a maioria profissionais bem sei, não há nenhum que atenda o telefone?
Nem um? Pode lá ser… Eu não disse que tinha tentado. Fiquei a ver, só. Mas há
muitos defuntos, isso te garanto. E depois o que é que lhes ia dizer; olhe, sou
a Laura, lembra-se? A Laura, aquela que. Para ouvir do outro lado, quêêmm??,
como fazem as pessoas quando não se querem lembrar de alguém. Podia tentar,
sim, podia, mas quem se lembrará de mim, desaparecida de cena vai para uma
dúzia de anos e sem manter contactos com ninguém? Nos primeiros anos,
telefonava pelos aniversários, presenteando com um abraço ou um beijinho os
felizardos, ‘obrigado por se ter lembrado, sempre simpática’, um abraço, um
beijinho, e nenhum apareça! Há quanto tempo não nos vemos! Que tal um cafezinho?,
vá lá… Nenhum! Também nunca te disponibilizaste para uma visita surpresa,
qualquer coisa como, um dia destes apareço. E depois, aparecias. Aparecia como?
Sem ser convidada? Era o que faltava. Depois da minha iniciativa? Parece que
não sabes. Na altura bem sabia o fastio com que era recebida, as hesitações na
voz. Parece que tinham medo que lhe fosse pedir alguma coisinha. Aparecias… Aos
que não sabia a feliz data, enviava mensagens de Natal, era aquela quadra do
coração, da amizade, da fraternidade. Enviava, e ficava ansiosamente à espera
do agradece e retribui. Alguns davam-se ao trabalho de enviar aquela mensagem
automática que, vê-se logo, não é personalizada, é para todos e para nenhum,
mas a maioria nem isso. Um dia, deu-me para fazer uma estatística, vê bem ao
que se chega, meter pessoas em números. E cheguei à esperada conclusão que a
percentagem dos que retribuíam ia diminuindo a cada ano que passava. Um ano,
não enviei jingle bells a ninguém. E não fiquei à espera
de nada. E o nada chegou. Foi o último Natal e nunca mais telefonei a ninguém.
Estaca zero.
Talvez me ponha para aí a escrever. Mas sobre o quê? O que era
interessante já foi escrito, quantas vezes com um brilho que me é inacessível.
Cheguei tarde. Por vezes tento. Paro. Corrijo. Recomeço. E depois, ainda bem
que deito fora. Estava uma merda, daria chacota, lá está esta armada em. Mas
ficas com pena, diz lá, sim ou não? Às vezes. E depois, vem a inquietação.
Talvez fosse uma saída, conhecer gente, trocar opiniões, partilhar textos, não
sei. Quem sabe? A indecisão é o maior dos tormentos. Quando leio boa prosa esmoreço,
jamais serei capaz, isto é para gente de outros talentos, outras vezes, é tão
mau que me sinto tentado. Depois paro. Que dirão? E isso importa? Claro que
importa! E se escrevesses só para ti, para aliviar tensões, para te despires
dos tormentos? Escrever, só. E guardar, para mais tarde ler, ver os erros; não
os léxicos nem os gramáticos, os teus erros de leitura do momento, lidos só por
ti em construtiva introspecção. E mantinha-me neste tormentoso isolamento
indefinidamente, lendo-me a mim própria num interminável pleonasmo? Não tenho
com quem falar, já te deste conta?! E contigo estou farta, raramente me dás
novidades ou me esclareces. Muito menos me dás ouvidos. Quantas pessoas saberão
o meu nome, além dos vendedores de pacotes exclusivos de gigabaites e plafonds,
dos promotores de purificadores de água de atarraxar à torneira, do assíduo
carteiro e da instrutora de ioga? ‘Ó dona Laurinha, então não levanta mais a
perninha?’. Olha e se te fosses. E o Facebook?...
e se abrisses conta no Facebook? Toda
a gente tem. Encontram-se amigos idos, fazem-se conhecidos chegados, lêem-se
notícias, vêem-se filmes catitas, até tem uma horta virtual vê bem… Podes pôr likes mostrando-te interessada,
comentar, enfim, sem te meter na vida alheia – parece que não há vida alheia no
Facebook. Conhecer pessoas
confortavelmente! Para gente na nossa idade tem sido um sucesso Por acaso… lá
no ioga já me falaram nisso, aderir ao grupo, conversar com o grupo, trocar
impressões com o grupo, fotografias com o grupo. Um grupo fechado, bem entendido,
que nós andamos todas descompostas. Mas não. Não estou interessada,
grupo-grupo-grupo são sempre os mesmos, é a mesma coisa que estar só. Com os
mesmos. Eu preciso de arejar, conhecer gente-gente!, que não sejam os mesmos,
eu preciso de viver, e viver só se consegue andando, conhecendo pessoas novas,
ideias novas, discussões novas. Quem fica redundante definha, ron-ron, ron-ron,
ron-ron, sempre às voltas com a mesma vida. Não! Não será só o grupo, aquilo é
um mundo de gente imensa, podemos pedir amizades e. Pedir amizades. Isso é
coisa que se peça?! Quem sabe se é por isso que estou aqui. Pedir amizades…
Agora fizeste-me lembrar aquele vizinho lá da rua. Como é que ele se
chamava?... que dizia ‘o senhor doutor fazia o favor de ser meu amigo’. Eu não
quero amizades dessas! Já tive que chegue dessas comparências prestimosas. Mais
um quadro pregado no teu muro das lamentações? É o que há.»
- O seu bisavô, foi um dos últimos daquela nata que se lançou ao
mar e fez vida no Brasil. Deixou cá numerosa família; todos passavam fome. Más
terras e maus tempos. Quando regressou, vinha rico e apegado. Foram terríveis
as contendas com leiritas e courelas nas partilhas. Muitos irmãos, pouco que
repartir, empréstimos para tornas. Enfim, misérias. Na freguesia, só ele tinha chapéu,
dinheiro, e relógio de ouro. Dava fazenda para um romance do Camilo. Conta-se
para aí uma história de crime por um caneiro de água. Mas nunca se apurou. Em
suma, esquece-se facilmente de onde se saiu. Quando o conheci, era eu um
rapazito e ele um homem grande e espesso, fartos bigodes, tonitruante,
polegares nos sovacos, cigarrilha na comissura, grossa corrente abotoada ao
colete, olhar imperativo. Todos lhe descobriam a cabeça e, consta-se, que
algumas mulheres mais alguma coisa. Herdeiros de fora não há que se saibam,
esteja descansada. O seu avô, um pouco mais velho do que eu, frequentava o
liceu e só o via nas férias. É ao doutor Ladislau que se deve esta exigência de
manter a casa. Quando me tornei advogado da família disse-me: - Onésimo!
Jura-me com a palavra de honra que, se me faltarem as faculdades, arranjas
maneira que esta casa vá para o meu filho. Para os outros, só o que eles
querem! Mas não foi preciso. Fez-se testamento, deixou-se o dinheiro e os
valores para os outros. Era muito, olhe que era muito... E a casa para o seu
paizinho. Que pouco se gozou dela, coitado. Quando ele faltou, chegou aquela gente
de fora, e usurparam, usaram, e romperam-na até ao fio. Diziam-se ocupas,
entravam e saíam, a cada semana uma cara nova com identificação duvidosa. Embora
houvesse de tudo, talvez até gente de boas famílias a julgar por algumas
atitudes, mas como saber? Pareciam uma comunidade e diziam-se com direito a uma
habitação digna, veja bem. Foi o cabo dos trabalhos. A demorada justiça, fez-se
sentir ano-após -ano, numa interminável e desanimada espera. A impotência das
minhas démarches esbarrava com a jurisprudência do requerimento, da alegação e
do adiamento, da impossibilidade de notificação; levando para as calendas a
justa devolução ao proprietário. Veja a menina, que chegaram a insultar-me
dizendo que eram pessoas e precisavam de abrigo condigno. Tinham direito! E o
tribunal, corroborava com essa afirmação nas suas pensadoras demoras. Quando
consegui a ordem do tribunal, foi preciso mandar cá a guarda para muscular o
despejo. Ai se ele tivesse assistido. Morria de vergonha. Depois, enfim, vocês
estavam lá para África, e naquela confusão da independência nem as moradas
consegui. Depois, com o segundo casamento, a sua mãezinha não se importou com a
propriedade, não respondia às cartas. Que fazer? E foi assim, ficou ao abandono
e o telhado não caiu porque, às minhas expensas, o conseguimos manter; assim
como a propriedade mais ou menos vigiada dos amigos do alheio, que os há aqui
na terra. A casa do caseiro está arrombada há anos, mas em bom estado. Aqui há tempos
queriam arrendá-la, mas eu não aceitei.
E pronto menina, aqui tem as chaves. A partir deste momento, e dos
meus honorários e despesas regularizadas evidentemente, há-de compreender… fico
livre deste compromisso de honra e amizade assumido há quase uma vida com o seu
avozinho. Ao dispor menina, foi um prazer.
«Assim, sem me deixar dar um pio de admiração, nem pedidos de
esclarecimento sobre a surpresa em apreço, o senhor doutor Onésimo de
Albuquerque e Severo, e Associados, Lda., deixou-me proprietária à porta da
mansão que o meu bisavô mandara construir com os dinheiros da cana lá do Pará.
E agora?
Agora, há que vender a outra casa, mobília, tudo! Nada de
memórias! E sair de lá, ar fresco, vida nova. Para uma terra onde não conheces
ninguém? E lá, conheço? O conhecimento advém do convívio, e hoje só se convive
nos relacionamentos profissionais enquanto duram, os restantes são hologramas
com quem nos cruzamos, espectros adiados. Nem os vizinhos conheço; a alguns,
sei-lhes os nomes e nada mais.»
- Dona Laura!…
«Esta casa não será a tábua de salvação. Será, A Libertação, O
motivo, O objectivo. Um sonho? Não! Já não tenho idade para sonhos, e os que
tive puf! A libertação porque ocupação, o fim dos dias de tédio sem rumo, o
motivo, pela mesma razão. Sabes o que me atormenta as madrugadas? A caliginosa
memória das derrotas, a consciência das falhas, a convivência com a
irreversibilidade, a amarga prestação de contas, e. O não ter fim nenhum para me
levantar. Um fim? Sim, um fim, um objectivo, uma obra a concluir. Foi essa paz
que esta casa me trouxe quando aqui me apearam faz mais ou menos um ano. Sair todas
as manhãs da horizontal para um horizonte no tempo, para uma obra a concluir.
Disfrutar do frenesim do projecto, da obra em curso, dos prazos, da chegada dos
materiais, da sua escolha!, das discussões com o empreiteiro, das noites mal
dormidas espectando o dia seguinte, agora não de fim-de-vida, mas de
fim-de-obra. E fantasiar. Fantasiar com quem poderá chegar; estender a mão para
o puxador e manter a expectativa, o suspense, até ao abrir a porta. Será uma
casa de hóspedes, uma residência onde chega gente, e não clientes, pessoas e
não caras; isso fica para a hotelaria. A estes que chegam, quero que cheguem cá
a casa e se sintam em casa, e eu com eles, como numa família. Eles hão-de chegar,
sem nunca serem suficientes. Vais ver. Sabes lá a quantidade de familiares sem
família escondidos nesse Mundo. São esses que me interessam, e é para esses que
eu quero esta casa e nela estou a gastar tudo o que tenho, tudo o que sou, pois
já não sou mais nada. Nem ninguém.»
- Dona Laura!… - Dona Laura!…
- Hã! Diga mestre Zé, diga.
- Desculpe… a senhora estava aí tão entretida a falar com Deus e
consigo que eu…
- Não era com Deus, mestre Zé, não era com Deus. «Era com uma
afogada». Mas diga, diga.
- É que os estucadores encontraram ali uns cadernos, não sei, eles
disseram que eram sebentas, mas, sabe como é, eles não são letrados, e…
- Cadernos?!
- Sim, estão lá em cima espalhados, venha ver…
- Sim. Vamos lá!
José Bessa
José Bessa
Meu caro Zé Bessamigo
ResponderEliminarComeçaste fabulástico!✨ O título? Vai-se arranjar. Como dizem os futebolistas é preciso ir passo a passo para cumprir o objectivo. Bravo. Muitos parabéns!
Um abração do amigo e admirador
Henrique, o Leãozão🦁
Obrigado, meu caro Henrique "O Leãozão".
EliminarUm abraço.
Onde me vim meter eu??!
ResponderEliminarEntão?... O que o atormenta?
EliminarVi-me a andar dentro da sua casa, com todos os seus restolhos.Foi uma boa viagem.
ResponderEliminarObrigado, Tyna Rodrigues.
EliminarPromete e vou acompanhar este belo conto.
ResponderEliminarUm abraço e bom Domingo.
Andarilhar
Dedais de Francisco e Idalisa
Livros-Autografados
Grato por acompanhar os nossos contos.
EliminarTudo faremos para cativar, cada vez mais.
Um abraço e, boa semana.
Vamos ver no que vai dar a sequência... Para já, gostei muito!
ResponderEliminarO resto de um bom domingo!
Muito obrigado, Lua Azul.
EliminarVamos surpreendê-la, vai ler.
Boa semana.
Boa tarde, reafirmo aqui em seu espaço o quanto gosto de conto.
ResponderEliminarNeste capítulo mostrou-me a tristeza que às vezes, se torna realidade para muitos.
Com certeza, a sequência será maravilhosa. Parabéns! Abraço!
A solidão, é cada vez mais recorrente.
EliminarRaros são os que a conseguem ultrapassar.
Aguardemos pelo desenrolar da história. Quem sabe?
Grato por nos seguir. Um abraço.
AS dificuldades da vida, em todas as circunstâncias, digam lá que não as há ?!
ResponderEliminartexto cheio de muita vida !
boa semana
Angela
Obrigado por nos seguir, Ângela.
EliminarHaja esperança. Sigamos a história, melhores dias virão.
Boa semana.
Como sempre, vou ficar por aqui a acompanhar.
ResponderEliminarObrigado por nos seguir, Pedro Coimbra.
EliminarUm abraço.
Vou acompanhar o conto. Gostei desta primeira parte.
ResponderEliminarUma boa semana.
Beijo.
Obrigado, Graça Pires.
EliminarFaço questão que nos acompanhe.
Boa semana. Beijo também.
Uma introdução algo introspectiva, a fazer antever qualquer coisa de surpreendente. Gostei bastante.
ResponderEliminarJá estou ansiosa com a expectativa do que me vai calhar:)
Obrigado, Luísa.
EliminarSolidão e Salvação. A partir daqui, só pode melhorar.
Vai melhorar.
Obrigado por nos seguir, Ontem é só Memória.
ResponderEliminarBoa semana.
Mano!!! Que texto!!! Ansiosa por saber onde vamos chegar! Ainda bem que estou para o meio, assim engato o caminhar na história!!! Deixaste-me curiosa!
ResponderEliminarObrigado, mana.
EliminarLá chegaremos... capítulo-a-capítulo, espantosamente. :-)
Many thanks, Anas Imtiaz.
ResponderEliminarBest regards.
Um conto que promete!!! Bj
ResponderEliminarObrigado por nos seguir, Olhares da Gracinha.
EliminarBjs.
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