Incençário Pendular da Catedral de Santiago de Compostela @joseorueta |
Estou cada vez mais viciada na
leitura destes misteriosos diários. O meu interesse vem crescendo pelos
personagens, que de certo modo me abrem portas à imaginação, tornando-me cúmplice
de suas confidências. Tenho mais um em mãos. Este, de Sebastião, surpreende-me
pela forma como está escrito. Ele relata as coisas como se estivesse a falar de
alguém que não ele próprio. Talvez numa de “a minha vida dava um romance”…
Sebastião
Sebastião apresentou-se como inquilino do Casarão, numa noite de tempestade - frio, chuva, trovoada. Um pouco de acordo com o que sentia. Numa viagem longa e atribulada devido ao temporal, na companhia silenciosa de seus pais. Estes faziam dele um doente. Que lhes diria a psiquiatra? Talvez fizesse o jogo do anfitrião, amigo de seus pais, o dr. Ramon Saavedra… Em que embrulhada eles o colocaram!... Até há bem pouco tempo era ambição prioritária dos dois, a qualificação superior do filho. Agora alterada para o facto de quererem que este se assumisse como homem, literalmente!
-
Homem sou eu. Como não percebem, pai e mãe (que nunca estiveram tão de acordo),
que a única diferença em mim é, agora, o meu imenso afecto por Amadeu? Que,
afinal, já existia, mas só agora veio á tona?... Amadeu é o único companheiro
que quero para a minha Vida! Tão difícil, assim, de perceber?
Era
madrugada alta e só o dr. Saavedra os aguardava. Um pouco recolhido à entrada
da mansão, pois o temporal agressivo apresentava-se como moldura dessa triste
entrega...
Os
pais despediram-se dele com alguma secura. Já do dr. com um forte abraço
indicativo da passagem de testemunho... Sebastião foi-se portas adentro sem
grandes despedidas aos progenitores, e também o anfitrião vira recusada a
devolução dum seu sorriso... acompanhou-o uma das empregadas espanholas (?)
vestida de negro e com ar sonolento.
Atirou-se
para a cama, vestido, incrédulo, tentando ainda compreender a decisão drástica
dos pais... tinha sido rápida. O corte na faculdade, a não despedida de colegas
e amigos, malas feitas em tempo recorde... eram indícios disso mesmo. Tudo era
agora de somenos importância relativamente ao que iria encontrar - repouso de
corpo e mente, meditação e algum acompanhamento psiquiátrico. Talvez em
paralelo com medicação, tinha sido a recomendação de Saavedra…
-
E eu a querer saber como esta gente me irá alterar sentimentos, afectos!... Simplesmente
ridícula e egoísta esta atitude de meus pais... já o doutor, tem alguma desculpa. Ele tenta a todo o custo
angariar "clientes" para o seu Hotel!
O
seu romance com Amadeu tivera início tempos atrás. Um pouco antes das férias
escolares, quando este último tinha decidido ser altura de realizar uma
caminhada a Santiago de Compostela, sozinho. Para tomar sérias e acertadas
decisões, dizia.
Já
haviam conversado sobre eles próprios e ficaram ambos de fazer um exame às suas
vidas. Assim o melhor a fazer seria afastarem-se por algum tempo. Amadureceriam
ideias e tomariam decisões. Fora o resultado deste interregno que os unira.
Houve atitudes drásticas, em ambas as famílias. Na de Sebastião, agravada pelo
facto de ser filho único, e esta decisão não resultar em casamento, o que
aborrecia os pais. Eram necessários filhos que pudessem dar continuidade ao
negócio próspero de vinhos, dos avós. Estes no meio da discussão haviam-no
confessado, entre outros "inconvenientes"...
Sebastião
nunca se interessara por raparigas, nem na adolescência nem agora. Sua mãe
justificava o facto, para ela própria, com o bom desempenho nos estudos, do
filho. A sua dedicação não lhe deixava tempo para mais nada! A dada altura do
percurso estudantil, Amadeu e Sebastião, sempre bons colegas e amigos,
perceberam que entre eles havia uma certa atmosfera de bem estar, harmonia,
magia. Fora este entendimento que lhes fizera perceber que algo mais que
camaradagem os envolvia. Tiveram então uma conversa, séria, aberta e decidiram
que desejavam um futuro a dois. O convívio, como colegas que lhes solidificara
uma boa amizade, começava agora a transpor outras barreiras, algo difíceis,
numa sociedade ainda carregada de preconceitos...
Uma
pancada seca na porta fê-lo acordar de um sono agitado. Ilda, com a sua voz
austera, chamava-o para a refeição do almoço (o pequeno almoço fora excluído
devido á hora tardia da chegada). Sacudiu as roupas amarrotadas, calçou-se,
passou água no rosto e desceu á Sala de Refeições. Abeirou-se da enorme mesa,
onde se encontravam já alguns comensais. Beatriz e Vicente quase não
responderam ao seu cumprimento, também inaudível, embora lhe espiassem os
movimentos... Não estava ali para criar amizades... Logo a seguir surgiu
Amelia, que esforçou um breve sorriso, só para ele e ao qual Sebastião
respondeu com outro... David, Diniz Matilde, ocuparam também os seus lugares.
Deu-se início á refeição onde só se ouviam os talheres e logo de seguida o
desagradável sorver da sopa por Amélia... barulho algo estranho que incomodava
Sebastião.
-
Que gente esquisita, suspeita!...
Pela
tarde fez uma visita à ala onde se situava o consultório de Helena, psiquiatra,
para a qual estava convocado. Que lhe faria ela? Além de uma consulta...
Conversar? Medicar? - Medicar... não, não estou doente, caramba!. Que drogas me
irá ela administrar? Para modificar desejos, pensares, sentimentos?... Meus
pais entendem-me agora como doente, mas será que Helena é da mesma opinião?
Ninguém se dignou ouvir-me as razões...
-
Que razões Sebastião? Meus pais decidiram segundo as razões deles e ponto
final! Esquecer, também... como posso passar uma esponja na minha relação com
Amadeu? Já sinto a falta dele, meu apoio, meu equilíbrio. Com ele me sinto mais
seguro mais decidido...
Esta
tomada de posição dos dois amados, trazia uma desconhecida força ao novo
Sebastião... a sinceridade de Sebastião traiu-o quando da discussão com os pais.
A sua honestidade acabara por dar início a uma barreira entre gerações. Levado
ao consultório do dr. Saavedra, na cidade, quase por intimação dos pais, este
aconselhou-o a um período de afastamento dos lugares e convívios habituais. Para
eles, pais, era-lhes prioritário tornar seu filho um homem. Literalmente...
-
Homem sou eu.! E meus mais nobres sentimentos não são pertença de nenhuma
mulher. Destas só guardo amizade. E tenho amigas, já de algum tempo... Mas,
decididamente, a pessoa de minha vida é Amadeu! Difícil entender?
Agora
o drama maior era não conseguir contactá-lo. Não tinha acesso a telefones nem
computadores. Também por carta, não havia autorização nem modo para estabelecer
qualquer contacto... Eram todas, formas de comunicar excluídas em regulamento,
daquela Casa... Mas acreditava piamente que Amadeu iria conseguir quebrar
barreiras, para poderem rever-se. Como, não sabia, mas...
-
Que aborrecimento!
Novamente,
três pancadas na porta e a voz de Ilda, sempre desagradável a distraí-lo.
Colocou o diário na gaveta. Fechou-a à chave, guardando-a. Ao percorrer o corredor
imenso, deparou-se com Matilde, que, de certeza lhe fazia uma espera...
Há
quanto tempo estaria ela ali? Em pose estudada, tentando ser descontraída,
camisola semi-aberta até ao início dos seios (lindos, por sinal). Um sorriso
deliciosamente composto à aproximação de Sebastião. Seguiram juntos, devagar.
Matilde querendo saber "coisas" do novo companheiro da Casa, com
perguntas em cima de perguntas que às tantas Sebastião já nem ouvia. E numa
transição de segundos, pôs-se a imaginar tudo o que ela poderia estar a
perguntar “- porque estaria ali? Quem o castigara? Sim, ela bem sabia, pois
também se sentia enjaulada. Será que ele, Sebastião, sentia também uma raiva
imensa, capaz de matar? Tal como ela? Tinha namorada? Era mais bonita que ela,
Matilde?”
Baboseiras!...
Pensou. Mas para amenizar a conversa disparatada, endossou-lhe um breve
sorriso, como resposta. Indicativo de paz! Logo depois apressou o passo,
informando-a que iria, ainda, passar no consultório de Helena e para que a
intrometida Matilde não ousasse acompanhá-lo, combinou que se encontrariam
pouco depois no Refeitório, ao jantar. Com certeza, deixara-a nervosa,
incomodada com a sua atitude inesperada. Parecia sentir-se desprezada.
Mas
queria lá saber… até conseguia ver os pensamentos dela a borbulhar: “Quem se
julga ele? Está bem, é alto, bem apessoado, mas um pouco gordo. Não muito, vá
lá, mas gordo.... não assim elegante como eu. E eu aqui a mostrar-lhe o que
tenho de melhor, em mim. Nunca mais verá nada parecido e eu já não repito a
cena. Nem que ele queira. Parvo! Nem para os ditos olhou. De certeza que a
namorada não os tem tão perfeitos. Não sabes o que perdes, Sebastião. Mas na
primeira oportunidade apanho-te a chave da cómoda e irei desvendar mistérios
teus, a tua vida. Não, não me escapas Sebastião!...”
Não
o constrangeu a conversa com Helena. Ela foi convidativa. Como psiquiatra sabia
fazê-lo. Tinha a noção disso. Tirar "coelhos da cartola" fazia parte
da sua profissão. Ele não se importava. Sentira empatia por Helena, e sabia que
teria nela uma aliada para o apoiar no que precisasse, de futuro. Teria de ser
paciente e esperar pela altura certa. Não se sentia louco nem era criminoso.
Lúcido, sim, graças a Deus! Helena somente receitara um comprimido leve para
melhor passar as noites. Com sonos repousados. Deu a entender que o seu tempo
de clausura não seria extenso.
Sebastião
deixou o consultório dirigindo um bonito sorriso a Helena, daqueles que
encantavam Amadeu, também. Agora, com o apetite anunciado, arrepiou caminho até
á Sala de Jantar.
Fernanda
Simões
Parabéns
ResponderEliminarGosto muito.
Pelo o que compreendi da história o Sebastião é homossexual (não) assumido e os pais preferem entregá-lo aos cuidados de um psiquiatra. Infelizmente, uma história tão verdadeira que até arrepia. Mentes doentes são os pais de Sebastião. Aguardo continuação 🐦
ResponderEliminarUma sociedade de valores um pouco obscuros, tantas vezes ainda.
Eliminarimpressionante
ResponderEliminarAdorei ler
Bjs
Kique
Hoje em Caminhos Percorridos - A difícil vida de casado de um homem...
ótimo post, seguindo o blog!
ResponderEliminarbjs
http://www.pinkbelezura.com
E, a seguir, cantaram todos a canção Sebastião come tudo, tudo tudo :)))
ResponderEliminarCada vez mais interessante!!! Gostei!
ResponderEliminarGostei do que li e aproveito para desejar a continuação de uma boa semana.
ResponderEliminarAndarilhar
Dedais de Francisco e Idalisa
O prazer dos livros
Estou a gostar e espero a continuação!
ResponderEliminarEcos de mentes (de dementes certamente também) muito bem escritos. Uma narrativa com nó e laçada para que o leitor não se perca nem desista.
ResponderEliminarInteressante esta abordagem. Um recém-chegado.
ResponderEliminarO passado recente feito clausura, o mergulho no ambiente hostil, a Matilde, a dissecação do consultório.
Muito bem, Fernanda Simões. Parabéns.
Prisioneiros dentro de si próprio?... Interessante este Sebastião.
ResponderEliminarParabéns, Fernanda!
Em nome da Fernanda Simões, um agradado agradecimento a todos que aqui deixaram o seu comentário.
ResponderEliminarGostei muito do que li, é uma boa narrativa que me leva esperar pelo próximo capitulo.
ResponderEliminarBjs
O texto, mais uma vez, é excelente! Pena que, em pleno século XXI, ainda seja tão difícil para as pessoas entenderem que não somos todos iguais!
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