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19/02/19

Ecos de Mentes - Capítulo 8

Incençário Pendular da Catedral de Santiago de Compostela
@joseorueta

 Estou cada vez mais viciada na leitura destes misteriosos diários. O meu interesse vem crescendo pelos personagens, que de certo modo me abrem portas à imaginação, tornando-me cúmplice de suas confidências. Tenho mais um em mãos. Este, de Sebastião, surpreende-me pela forma como está escrito. Ele relata as coisas como se estivesse a falar de alguém que não ele próprio. Talvez numa de “a minha vida dava um romance”…


Sebastião


        Sebastião apresentou-se como inquilino do Casarão, numa noite de tempestade - frio, chuva, trovoada. Um pouco de acordo com o que sentia. Numa viagem longa e atribulada devido ao temporal, na companhia silenciosa de seus pais. Estes faziam dele um doente. Que lhes diria a psiquiatra? Talvez fizesse o jogo do anfitrião, amigo de seus pais, o dr. Ramon Saavedra… Em que embrulhada eles o colocaram!... Até há bem pouco tempo era ambição prioritária dos dois, a qualificação superior do filho. Agora alterada para o facto de quererem que este se assumisse como homem, literalmente!
- Homem sou eu. Como não percebem, pai e mãe (que nunca estiveram tão de acordo), que a única diferença em mim é, agora, o meu imenso afecto por Amadeu? Que, afinal, já existia, mas só agora veio á tona?... Amadeu é o único companheiro que quero para a minha Vida! Tão difícil, assim, de perceber?
Era madrugada alta e só o dr. Saavedra os aguardava. Um pouco recolhido à entrada da mansão, pois o temporal agressivo apresentava-se como moldura dessa triste entrega...
Os pais despediram-se dele com alguma secura. Já do dr. com um forte abraço indicativo da passagem de testemunho... Sebastião foi-se portas adentro sem grandes despedidas aos progenitores, e também o anfitrião vira recusada a devolução dum seu sorriso... acompanhou-o uma das empregadas espanholas (?) vestida de negro e com ar sonolento.
Atirou-se para a cama, vestido, incrédulo, tentando ainda compreender a decisão drástica dos pais... tinha sido rápida. O corte na faculdade, a não despedida de colegas e amigos, malas feitas em tempo recorde... eram indícios disso mesmo. Tudo era agora de somenos importância relativamente ao que iria encontrar - repouso de corpo e mente, meditação e algum acompanhamento psiquiátrico. Talvez em paralelo com medicação, tinha sido a recomendação de Saavedra…
- E eu a querer saber como esta gente me irá alterar sentimentos, afectos!... Simplesmente ridícula e egoísta esta atitude de meus pais... já o doutor,  tem alguma desculpa. Ele tenta a todo o custo angariar "clientes" para o seu Hotel!
O seu romance com Amadeu tivera início tempos atrás. Um pouco antes das férias escolares, quando este último tinha decidido ser altura de realizar uma caminhada a Santiago de Compostela, sozinho. Para tomar sérias e acertadas decisões, dizia.
Já haviam conversado sobre eles próprios e ficaram ambos de fazer um exame às suas vidas. Assim o melhor a fazer seria afastarem-se por algum tempo. Amadureceriam ideias e tomariam decisões. Fora o resultado deste interregno que os unira. Houve atitudes drásticas, em ambas as famílias. Na de Sebastião, agravada pelo facto de ser filho único, e esta decisão não resultar em casamento, o que aborrecia os pais. Eram necessários filhos que pudessem dar continuidade ao negócio próspero de vinhos, dos avós. Estes no meio da discussão haviam-no confessado, entre outros "inconvenientes"...
Sebastião nunca se interessara por raparigas, nem na adolescência nem agora. Sua mãe justificava o facto, para ela própria, com o bom desempenho nos estudos, do filho. A sua dedicação não lhe deixava tempo para mais nada! A dada altura do percurso estudantil, Amadeu e Sebastião, sempre bons colegas e amigos, perceberam que entre eles havia uma certa atmosfera de bem estar, harmonia, magia. Fora este entendimento que lhes fizera perceber que algo mais que camaradagem os envolvia. Tiveram então uma conversa, séria, aberta e decidiram que desejavam um futuro a dois. O convívio, como colegas que lhes solidificara uma boa amizade, começava agora a transpor outras barreiras, algo difíceis, numa sociedade ainda carregada de preconceitos...
Uma pancada seca na porta fê-lo acordar de um sono agitado. Ilda, com a sua voz austera, chamava-o para a refeição do almoço (o pequeno almoço fora excluído devido á hora tardia da chegada). Sacudiu as roupas amarrotadas, calçou-se, passou água no rosto e desceu á Sala de Refeições. Abeirou-se da enorme mesa, onde se encontravam já alguns comensais. Beatriz e Vicente quase não responderam ao seu cumprimento, também inaudível, embora lhe espiassem os movimentos... Não estava ali para criar amizades... Logo a seguir surgiu Amelia, que esforçou um breve sorriso, só para ele e ao qual Sebastião respondeu com outro... David, Diniz Matilde, ocuparam também os seus lugares. Deu-se início á refeição onde só se ouviam os talheres e logo de seguida o desagradável sorver da sopa por Amélia... barulho algo estranho que incomodava Sebastião.
- Que gente esquisita, suspeita!...
Pela tarde fez uma visita à ala onde se situava o consultório de Helena, psiquiatra, para a qual estava convocado. Que lhe faria ela? Além de uma consulta... Conversar? Medicar? - Medicar... não, não estou doente, caramba!. Que drogas me irá ela administrar? Para modificar desejos, pensares, sentimentos?... Meus pais entendem-me agora como doente, mas será que Helena é da mesma opinião? Ninguém se dignou ouvir-me as razões...
- Que razões Sebastião? Meus pais decidiram segundo as razões deles e ponto final! Esquecer, também... como posso passar uma esponja na minha relação com Amadeu? Já sinto a falta dele, meu apoio, meu equilíbrio. Com ele me sinto mais seguro mais decidido...
Esta tomada de posição dos dois amados, trazia uma desconhecida força ao novo Sebastião... a sinceridade de Sebastião traiu-o quando da discussão com os pais. A sua honestidade acabara por dar início a uma barreira entre gerações. Levado ao consultório do dr. Saavedra, na cidade, quase por intimação dos pais, este aconselhou-o a um período de afastamento dos lugares e convívios habituais. Para eles, pais, era-lhes prioritário tornar seu filho um homem. Literalmente...
- Homem sou eu.! E meus mais nobres sentimentos não são pertença de nenhuma mulher. Destas só guardo amizade. E tenho amigas, já de algum tempo... Mas, decididamente, a pessoa de minha vida é Amadeu! Difícil entender?
Agora o drama maior era não conseguir contactá-lo. Não tinha acesso a telefones nem computadores. Também por carta, não havia autorização nem modo para estabelecer qualquer contacto... Eram todas, formas de comunicar excluídas em regulamento, daquela Casa... Mas acreditava piamente que Amadeu iria conseguir quebrar barreiras, para poderem rever-se. Como, não sabia, mas...
- Que aborrecimento!
Novamente, três pancadas na porta e a voz de Ilda, sempre desagradável a distraí-lo. Colocou o diário na gaveta. Fechou-a à chave, guardando-a. Ao percorrer o corredor imenso, deparou-se com Matilde, que, de certeza lhe fazia uma espera...
Há quanto tempo estaria ela ali? Em pose estudada, tentando ser descontraída, camisola semi-aberta até ao início dos seios (lindos, por sinal). Um sorriso deliciosamente composto à aproximação de Sebastião. Seguiram juntos, devagar. Matilde querendo saber "coisas" do novo companheiro da Casa, com perguntas em cima de perguntas que às tantas Sebastião já nem ouvia. E numa transição de segundos, pôs-se a imaginar tudo o que ela poderia estar a perguntar “- porque estaria ali? Quem o castigara? Sim, ela bem sabia, pois também se sentia enjaulada. Será que ele, Sebastião, sentia também uma raiva imensa, capaz de matar? Tal como ela? Tinha namorada? Era mais bonita que ela, Matilde?”
Baboseiras!... Pensou. Mas para amenizar a conversa disparatada, endossou-lhe um breve sorriso, como resposta. Indicativo de paz! Logo depois apressou o passo, informando-a que iria, ainda, passar no consultório de Helena e para que a intrometida Matilde não ousasse acompanhá-lo, combinou que se encontrariam pouco depois no Refeitório, ao jantar. Com certeza, deixara-a nervosa, incomodada com a sua atitude inesperada. Parecia sentir-se desprezada.
Mas queria lá saber… até conseguia ver os pensamentos dela a borbulhar: “Quem se julga ele? Está bem, é alto, bem apessoado, mas um pouco gordo. Não muito, vá lá, mas gordo.... não assim elegante como eu. E eu aqui a mostrar-lhe o que tenho de melhor, em mim. Nunca mais verá nada parecido e eu já não repito a cena. Nem que ele queira. Parvo! Nem para os ditos olhou. De certeza que a namorada não os tem tão perfeitos. Não sabes o que perdes, Sebastião. Mas na primeira oportunidade apanho-te a chave da cómoda e irei desvendar mistérios teus, a tua vida. Não, não me escapas Sebastião!...”
Não o constrangeu a conversa com Helena. Ela foi convidativa. Como psiquiatra sabia fazê-lo. Tinha a noção disso. Tirar "coelhos da cartola" fazia parte da sua profissão. Ele não se importava. Sentira empatia por Helena, e sabia que teria nela uma aliada para o apoiar no que precisasse, de futuro. Teria de ser paciente e esperar pela altura certa. Não se sentia louco nem era criminoso. Lúcido, sim, graças a Deus! Helena somente receitara um comprimido leve para melhor passar as noites. Com sonos repousados. Deu a entender que o seu tempo de clausura não seria extenso.
Sebastião deixou o consultório dirigindo um bonito sorriso a Helena, daqueles que encantavam Amadeu, também. Agora, com o apetite anunciado, arrepiou caminho até á Sala de Jantar.

                                                                     Fernanda Simões



15 comentários:

  1. Pelo o que compreendi da história o Sebastião é homossexual (não) assumido e os pais preferem entregá-lo aos cuidados de um psiquiatra. Infelizmente, uma história tão verdadeira que até arrepia. Mentes doentes são os pais de Sebastião. Aguardo continuação 🐦

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    1. Uma sociedade de valores um pouco obscuros, tantas vezes ainda.

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  2. impressionante
    Adorei ler
    Bjs

    Kique

    Hoje em Caminhos Percorridos - A difícil vida de casado de um homem...

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  3. ótimo post, seguindo o blog!
    bjs
    http://www.pinkbelezura.com

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  4. E, a seguir, cantaram todos a canção Sebastião come tudo, tudo tudo :)))

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  5. Estou a gostar e espero a continuação!

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  6. Ecos de mentes (de dementes certamente também) muito bem escritos. Uma narrativa com nó e laçada para que o leitor não se perca nem desista.

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  7. Interessante esta abordagem. Um recém-chegado.
    O passado recente feito clausura, o mergulho no ambiente hostil, a Matilde, a dissecação do consultório.
    Muito bem, Fernanda Simões. Parabéns.

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  8. Prisioneiros dentro de si próprio?... Interessante este Sebastião.
    Parabéns, Fernanda!

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  9. Em nome da Fernanda Simões, um agradado agradecimento a todos que aqui deixaram o seu comentário.

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  10. Gostei muito do que li, é uma boa narrativa que me leva esperar pelo próximo capitulo.
    Bjs

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  11. O texto, mais uma vez, é excelente! Pena que, em pleno século XXI, ainda seja tão difícil para as pessoas entenderem que não somos todos iguais!

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