Contos completos

14/03/22

Na Fragilidade do Barro - Capítulo 10

 

Fotografia: Sónia Ferreira

Adelaide e Clarinha despediram-se, em lágrimas, com a esperança de um novo reencontro acontecer com brevidade. Adelaide sentia uma antítese de sentimentos: tristeza por não ter a filha por perto; alegria por ter tido a sorte da Dra. Manuela ter-se cruzado no seu difícil percurso de vida…

Esta Doutora foi um “Anjo na Terra” que surgiu na vida de Adelaide. A sua atitude empática em relação a esta nova etapa de Clarinha e a preocupação com a sua mãe, demonstrava o quanto tinha um coração nobre, repleto de amor ao próximo. Que ser humano extraordinário ( pensou Adelaide)!

De regresso a Aljustrel, Manuela e Adelaide permaneceram longos minutos em silêncio, cada uma refletia sobre os momentos vivenciados  na curta visita à capital.

António, durante a noite, continuava a distribuir aqueles jornais proibidos pelo Regime Fascista que Portugal atravessava. Este homem agia inspirado pelas mesmas ideologias  do seu amigo Américo. No seu coração reinava a amizade leal por aquele amigo que nada sabia o que lhe teria acontecido…apenas a sua intuição remetia-o para a crença de que um dia haveriam de se encontrar em nome da Liberdade tão, sigilosamente, proclamada por ambos.

O Sr. Tenente Francisco vestido com aquela farda oficial, quando passava pelos seus súbditos todos lhe faziam uma espécie vénia, baixando a cabeça. Era um homem muito respeitado quer pela sociedade civil, quer pelas Entidades policiais, militares e governamentais.

Francisco, António, Américo e o falecido Xavier, eram o quarteto mais respeitado na escola. A valentia destes quatro amigos intimidavam tanto os colegas mais novos como os colegas mais velhos da escola e da aldeia. Aos olhos das meninas eram vistos como os heróis invencíveis e, simultaneamente, rapazes belos com uns corpos esculturais bem definidos!

Certa noite, Xavier foi até à taberna de Manuel e de Judite,  pais de António, como fazia quase todos os dias. Aqui encontrou-se com os dois amigos de longa data:  Américo e António.

A conversa animada com os amigos, Xavier ficou empolgado com o ambiente de diversão e bebeu repetidamente uns copitos de um famoso licor feito pela Judite que, para além do sabor adocicado, tinha uns bons graus de álcool. Já embriagado começou a pronunciar frases contra o Regime a favor da Liberdade.

Entretanto, entre os clientes estava um sujeito “infiltrado” defensor acérrimo daquele Regime doentio que, então, se vivia. A proibida liberdade de expressão de Xavier foi fatal e levou-o a uma morte rápida, através de um tiro de pistola em que a bala ficou alojada no cérebro. O sangue ficou evidenciado na parede da taberna e jorrava em fio pelo corpo abatido e pelo chão daquele espaço. António, segurou a cabeça imóvel do amigo e chorava compulsivamente. As lágrimas gordas que saíam desesperadamente dos olhos eram sinónimo de raiva e de vingança que soletrava nos ouvidos do amigo:”vou matar aquele sacana…prometo-te que vou fazer justiça com as minhas próprias mãos…” e ali ficou abraçado àquele corpo estendido no chão, como se isto fosse um pesadelo e que não passaria, apenas, de um pensamento ruim…

Francisco, o “Chico”, como era conhecido, estava há longos anos no Porto.  O contacto entre os quatro amigos terminou quando o Chico concluiu a 4ª classe e foi morar para a casa de um irmão do seu pai,  na Cidade Invicta. Aqui estudou num colégio militar e enveredou por esta vida até chegar ao cargo de tenente.Passados uns anos, detinha uma boa posição profissional que lhe deu a possibilidade de pedir transferência para Beja, próximo da sua terra Natal.

Após o longo  interrogatório do Sr. Tenente Francisco com o António, este nada adiantou de concreto sobre o percurso que fazia com a sua bicicleta, durante a noite. Apesar de terem sido grandes amigos na infância, António apenas confiava no Américo, mesmo sem saber do seu paradeiro.

Entretanto, o Sr. Tenente neste interrogatório mudou de estratégia em relação às questões. Iniciou uma conversa informal com António sobre a infância:

- António, lembras-te quando nós os dois mais o Américo e o Xavier fazíamos aqueles disparates e éramos reconhecidos como heróis na escola e pelos jovens mais velhos da aldeia?

- Lembro-me muito bem…também me recordo que o Sr. Tenente, naquela altura, alinhava livremente nos nossos planos, sem medo de sermos apanhados por um polícia…- Afirmou António olhando fixamente para o atual Sr. Tenente Francisco, enquanto passava a mão na barba esbranquiçada, que há muito não era cortada.

- O Sr. Tenente sabia que o nosso amigo Xavier foi assassinado por um polícia à paisana, pelo simples facto de estar meio embriagado e ter falado a favor da Liberdade e contra a este maldito Regime? - António inquiriu com um tom de voz carregada  de raiva, com as mão trémulas e com os olhos rasos de água…

- Pronto, Sr. Tenente, pode mandar-me prender se entender, acabei de proferir a expressão “maldito Regime” ...

- António, lamento a morte de Xavier, não sabia… tinha muito apreço por ele…- Francisco afirmou desolado por esta notícia.

Ambos permaneceram em silêncio por breves minutos. António permanecia imóvel, cabisbaixo a reviver todos os momentos da morte fatídica do seu amigo.

Francisco foi até à janela e olhava para o horizonte como se esperasse uma resposta do Além. Num curto período de segundos passaram várias experiências de vida, desde a infância até à atualidade…Pensou se esta escolha profissional teria sido a melhor…

 

 Sónia Ferreira

2 comentários:

  1. Os corajosos que ousam enfrentar os ditadores.
    São muito poucos.

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  2. Parabéns, Sónia Ferreira.
    Gostei do capítulo; e gostei especialmente do diálogo “viscoso”.

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