João - 7º Esq.
“Espelho meu, espelho meu. Há alguém mais
belo que eu?”
Oh, como esta frase me invade sempre que
do espelho me acerco. Mas a perfeição, a requintada mão da Natureza quando está
nos seus dias, faz obras assim, como esta que vejo à minha frente. Eu sou
qualquer coisa de sublime. E não me canso por isso de me ver ao espelho. Tão
repetidamente que tenho já a certeza que ao afastar-me o meu reflexo permanece
nele por tão vincado estar (facto confirmado quando um dia, pé ante pé, me
aproximei sorrateiramente e vi que sim, que estava lá). Por acasos do destino,
nunca me terei cruzado com um pintor. Estaria certamente, se tal tivesse
acontecido, já eternizado numa tela semelhante ao mais belo quadro de sempre, a
obra-prima por excelência: O Menino da Lágrima. Claro que as pessoas, tacanhas
como são, dizem que não e eu faço-lhes a vontade dizendo que sim, que a
obra-prima são aqueles riscos a preto e branco com um cavalo à rasca, um boi
mal-encarado e bonecos mal feitos pelo chão; ou então aquele relógio derretido
ou a gaja do riso sonso. Como todos saberão, eu próprio me poderia
auto-retratar – já vários me elogiaram o traço – mas não o faço. Eu, que dou
brilho a tudo aquilo a que me dedico, se há coisa que detesto é falta de
modéstia. Razão, afinal – esta minha simplicidade – de estar aqui e, só
aparentemente, ninguém dar por mim.
Mas eu conheço o motivo para que isso
aconteça. Desdém. E quem desdenha… Quer comprar. Isso mesmo! E todas por aqui
forçam esse desdém, sem que se apercebam de quanto se denunciam no desejo
encapotado. A única com algum atrevimento foi a Guida, ainda que a Estela tenha
deitado a escada também. Mas estão bem iludidas. Um homem como eu, não é
escolhido, escolhe. Se bem que até as compreenda, às descaradas e às
desdenhosas. Uma figura assim, elegante, nuvem de másculos perfumes a inebriar
até o oscilar do elevador que por pouco não desfalece, pose altiva e
intelectual, nunca é coisa que se deite fora. Admiram tudo o que vêem em mim:
roupa fina, pele delicada, gestos elegantes sem perda de masculinidade. E ainda
elas não viram a minha colecção de livros imaculados, sem sublinhados
ridículos, capas ou folhas dobradas. Ou a música que ouço. Não, minto, dessa já
se deram conta. Os solos de piano Estradivários que voam pela janela aberta em
notas de Sol e Dó. Mal sabem as canseiras que isso me dá. Como não tenho
aparelhagem – penhorada por razões que não interessam, mas me fazem viver aqui
– o que toca é um roufenho rádio na Antena 2. Mas quando prevejo que o tema
está a acabar, tenho de correr para baixar o som antes que chegue a voz do
locutor que denunciaria o gira-discos que não tenho. Claro que nem sempre
consigo chegar a tempo, mas quando isso acontece todos ficam a pensar que é um
tal Pedro do 4º Dto. a roncar que nem um Chaikovski. Sim, porque também aqui
moram homens. Uns paneleirotes. Nem sequer me estorvam na estratégia. Elas é
que são estranhas, carregadas de segredos. Creio bem que algumas nem o seu nome
verdadeiro usam; e quem se serve de pseudo-anónimos ou lá como é que isso se
chama, é porque alguma marosca esconde. Já diz o outro, “quem cabritos vende e
cabras não tem…”, bom, não sei bem onde é que isto se aplica, mas vocês
percebem o que quero dizer. Adiante…
Hoje é o grande dia. Sempre fui um grande
estratega e quando meto uma coisa na pinha, nada há que me demova. E
perguntarão vocês: “Porquê, hoje?”. Porque as estratégias são mesmo assim.
Coisas que podiam ser feitas nos dias anteriores ou deixar-se para um dos dias
seguintes, não senhor, são feitas naquele dia. Só pessoas com a minha
capacidade conseguem ter largueza de espírito para decidir pelo exacto momento
de actuar. Já imaginaram o 25 de Abril ter sido levado a cabo no dia 24? Ou o
1º de Dezembro ter sido em Agosto quando está tudo de férias? Não, as coisas
devem fazer-se segundo uma ordem que só os grandes cérebros conseguem vislumbrar.
E hoje é o dia. É o dia de ser eu a visitar o 8, que é como quem diz o 3113 que
somado dá 8. Dois buracos encavalitados, dos quais algum se há-de tapar até que
só reste o outro. Um buraco como um zero, que é onde tudo começa. Hoje, quando
surpreendentemente me virem entrar lá nesse 8, com a minha beleza de macho que
todos invejam, a perspicácia no olhar que todos apreciam, a minha pose que
todos admiram, em suma, a minha personalidade, quais Pedros, quais Euclides,
Davides ou Josés, essas aberrações de género que só pensam em petiscadas e
picnics. Elas, nomes falsos ou verdadeiros, pudicas ou descaradas, virgens como
as florestas ou visitadas como a Torre de Belém, pulularão como abelhas à volta
do doce mel que sou eu. E eu escolherei uma, uma só, que mais que isso é
bacanal. Amanhã vos contarei. Não saiam daí.
*
Eu vou dar cabo desta merda toda. Ai, vou!
Uma das mais ignóbeis traições a que já me sujeitei. Elas viram-me entrar e
viraram-me a cara. Não apreciaram os sapatos Gucci, o meu fato Zegna, o meu perfume
Chanel, nada! E eu vou rebentar com isto à bomba, oh, se vou! Gente ingrata,
mal-agradecida que não dá valor ao que a rodeia. Ainda pensei inicialmente que
o mal estivesse no nevoeiro nicotinado que alagava a sala, no barulho
ensurdecedor que toldava os ouvidos e as distraíam da minha presença e,
descarado, impus a minha presença pedindo lume à Sara. Qual quê! Que me
desviasse depressa, que lhe estragava as vistas, disse ela. Para onde?,
perguntei-me eu olhando em volta. E foi então que vi: no palco, em jeitos
amaricados, em rotações corporais mais sinuosas que uma cobra, estavam os
machos do meu prédio. Dançavam – pfff! Se aquilo alguma vez é dançar… – e
faziam gestos eróticos com o corpo coberto de óleo que mais pareciam panadinhos
saídos da frigideira; e, pasme-se!, tinham a cobri-los somente uma tanga branca
tão elevada que só me lembrava travessas de oscilantes farófias sem canela. E
isto é um ultraje à minha pessoa, ao meu modo de vestir aristocrata, à minha
decência capilar que toda se arrepiou. Repito: traição! Qual o homem bem
vestido que não se sente derrotado perante a força maior de uma tanga? Só me
apeteceu chorar, auto-retratar-me com o rosto angélico do Menino da Lágrima.
Mas eis que a minha personalidade vem ao de cima e o meu silencioso sentido
vingativo acorda numa intempestiva decisão. Vou rebentar com esta cambada de
depravados sexuais. Ai vou! Vou construir uma bomba e rebentar com isto tudo,
uma bomba de tal tamanho que… oh, merda! Mas como raio se constrói uma bomba,
se a esmerada educação nunca me permitiu tal ideia? (penso), (esperem, ainda
estou a pensar), (aguentem, é só mais um bocadinho)… Oh! Bendita inteligência.
Como não me lembrei disso mais cedo? Um fósforo arde. Uma caixa de fósforos
provoca uma pequena explosão. Logo, cinquenta caixas de fósforos…Bum! Ah, ah,
eles não sabem que quando se metem comigo o Mundo pula e avança. Não sabem com
quem se meteram. Eu no exterior, uma guita inflamável até à caixa do elevador e
era uma vez um prédio de tangas y sus muchachas. Ahahahah (riso de Drácula
depois de ferrar o dente).
*
Benevides – Euclides, descuidaste-te?
Euclides – Eu? Não. Porquê? Cheira mal?
Benevides – Não. É que ouvi um “Pssschhh”
e pensei que fosses tu.
Euclides – Só se estou incontinente.
Também não admira, com a porcaria de comeres que me fazes…
*
“Notícias do Bairro” – Conforme anunciado,
vai ser demolido na próxima semana o mais antigo edifício deste bairro.
Abandonado desde que há anos o elevador pegou fogo, tinha como único residente
um indivíduo que, em trajes menores mas de elevada qualidade, dançava para os
ratos. Consta ainda, na vizinhança, que o edifício estaria assombrado por
fantasmas de tanga que, ao som de gritos doidos, perseguiriam outros seres do
Além, mas esses sim, de lençol. Como mandam as regras do pudor.
FIM
João J. A. Madeira
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