23/05/23

Estendais - Capítulo 16 - Final

 


         João - 7º Esq.

 

“Espelho meu, espelho meu. Há alguém mais belo que eu?”

Oh, como esta frase me invade sempre que do espelho me acerco. Mas a perfeição, a requintada mão da Natureza quando está nos seus dias, faz obras assim, como esta que vejo à minha frente. Eu sou qualquer coisa de sublime. E não me canso por isso de me ver ao espelho. Tão repetidamente que tenho já a certeza que ao afastar-me o meu reflexo permanece nele por tão vincado estar (facto confirmado quando um dia, pé ante pé, me aproximei sorrateiramente e vi que sim, que estava lá). Por acasos do destino, nunca me terei cruzado com um pintor. Estaria certamente, se tal tivesse acontecido, já eternizado numa tela semelhante ao mais belo quadro de sempre, a obra-prima por excelência: O Menino da Lágrima. Claro que as pessoas, tacanhas como são, dizem que não e eu faço-lhes a vontade dizendo que sim, que a obra-prima são aqueles riscos a preto e branco com um cavalo à rasca, um boi mal-encarado e bonecos mal feitos pelo chão; ou então aquele relógio derretido ou a gaja do riso sonso. Como todos saberão, eu próprio me poderia auto-retratar – já vários me elogiaram o traço – mas não o faço. Eu, que dou brilho a tudo aquilo a que me dedico, se há coisa que detesto é falta de modéstia. Razão, afinal – esta minha simplicidade – de estar aqui e, só aparentemente, ninguém dar por mim.

Mas eu conheço o motivo para que isso aconteça. Desdém. E quem desdenha… Quer comprar. Isso mesmo! E todas por aqui forçam esse desdém, sem que se apercebam de quanto se denunciam no desejo encapotado. A única com algum atrevimento foi a Guida, ainda que a Estela tenha deitado a escada também. Mas estão bem iludidas. Um homem como eu, não é escolhido, escolhe. Se bem que até as compreenda, às descaradas e às desdenhosas. Uma figura assim, elegante, nuvem de másculos perfumes a inebriar até o oscilar do elevador que por pouco não desfalece, pose altiva e intelectual, nunca é coisa que se deite fora. Admiram tudo o que vêem em mim: roupa fina, pele delicada, gestos elegantes sem perda de masculinidade. E ainda elas não viram a minha colecção de livros imaculados, sem sublinhados ridículos, capas ou folhas dobradas. Ou a música que ouço. Não, minto, dessa já se deram conta. Os solos de piano Estradivários que voam pela janela aberta em notas de Sol e Dó. Mal sabem as canseiras que isso me dá. Como não tenho aparelhagem – penhorada por razões que não interessam, mas me fazem viver aqui – o que toca é um roufenho rádio na Antena 2. Mas quando prevejo que o tema está a acabar, tenho de correr para baixar o som antes que chegue a voz do locutor que denunciaria o gira-discos que não tenho. Claro que nem sempre consigo chegar a tempo, mas quando isso acontece todos ficam a pensar que é um tal Pedro do 4º Dto. a roncar que nem um Chaikovski. Sim, porque também aqui moram homens. Uns paneleirotes. Nem sequer me estorvam na estratégia. Elas é que são estranhas, carregadas de segredos. Creio bem que algumas nem o seu nome verdadeiro usam; e quem se serve de pseudo-anónimos ou lá como é que isso se chama, é porque alguma marosca esconde. Já diz o outro, “quem cabritos vende e cabras não tem…”, bom, não sei bem onde é que isto se aplica, mas vocês percebem o que quero dizer. Adiante…

Hoje é o grande dia. Sempre fui um grande estratega e quando meto uma coisa na pinha, nada há que me demova. E perguntarão vocês: “Porquê, hoje?”. Porque as estratégias são mesmo assim. Coisas que podiam ser feitas nos dias anteriores ou deixar-se para um dos dias seguintes, não senhor, são feitas naquele dia. Só pessoas com a minha capacidade conseguem ter largueza de espírito para decidir pelo exacto momento de actuar. Já imaginaram o 25 de Abril ter sido levado a cabo no dia 24? Ou o 1º de Dezembro ter sido em Agosto quando está tudo de férias? Não, as coisas devem fazer-se segundo uma ordem que só os grandes cérebros conseguem vislumbrar. E hoje é o dia. É o dia de ser eu a visitar o 8, que é como quem diz o 3113 que somado dá 8. Dois buracos encavalitados, dos quais algum se há-de tapar até que só reste o outro. Um buraco como um zero, que é onde tudo começa. Hoje, quando surpreendentemente me virem entrar lá nesse 8, com a minha beleza de macho que todos invejam, a perspicácia no olhar que todos apreciam, a minha pose que todos admiram, em suma, a minha personalidade, quais Pedros, quais Euclides, Davides ou Josés, essas aberrações de género que só pensam em petiscadas e picnics. Elas, nomes falsos ou verdadeiros, pudicas ou descaradas, virgens como as florestas ou visitadas como a Torre de Belém, pulularão como abelhas à volta do doce mel que sou eu. E eu escolherei uma, uma só, que mais que isso é bacanal. Amanhã vos contarei. Não saiam daí.

*

Eu vou dar cabo desta merda toda. Ai, vou! Uma das mais ignóbeis traições a que já me sujeitei. Elas viram-me entrar e viraram-me a cara. Não apreciaram os sapatos Gucci, o meu fato Zegna, o meu perfume Chanel, nada! E eu vou rebentar com isto à bomba, oh, se vou! Gente ingrata, mal-agradecida que não dá valor ao que a rodeia. Ainda pensei inicialmente que o mal estivesse no nevoeiro nicotinado que alagava a sala, no barulho ensurdecedor que toldava os ouvidos e as distraíam da minha presença e, descarado, impus a minha presença pedindo lume à Sara. Qual quê! Que me desviasse depressa, que lhe estragava as vistas, disse ela. Para onde?, perguntei-me eu olhando em volta. E foi então que vi: no palco, em jeitos amaricados, em rotações corporais mais sinuosas que uma cobra, estavam os machos do meu prédio. Dançavam – pfff! Se aquilo alguma vez é dançar… – e faziam gestos eróticos com o corpo coberto de óleo que mais pareciam panadinhos saídos da frigideira; e, pasme-se!, tinham a cobri-los somente uma tanga branca tão elevada que só me lembrava travessas de oscilantes farófias sem canela. E isto é um ultraje à minha pessoa, ao meu modo de vestir aristocrata, à minha decência capilar que toda se arrepiou. Repito: traição! Qual o homem bem vestido que não se sente derrotado perante a força maior de uma tanga? Só me apeteceu chorar, auto-retratar-me com o rosto angélico do Menino da Lágrima. Mas eis que a minha personalidade vem ao de cima e o meu silencioso sentido vingativo acorda numa intempestiva decisão. Vou rebentar com esta cambada de depravados sexuais. Ai vou! Vou construir uma bomba e rebentar com isto tudo, uma bomba de tal tamanho que… oh, merda! Mas como raio se constrói uma bomba, se a esmerada educação nunca me permitiu tal ideia? (penso), (esperem, ainda estou a pensar), (aguentem, é só mais um bocadinho)… Oh! Bendita inteligência. Como não me lembrei disso mais cedo? Um fósforo arde. Uma caixa de fósforos provoca uma pequena explosão. Logo, cinquenta caixas de fósforos…Bum! Ah, ah, eles não sabem que quando se metem comigo o Mundo pula e avança. Não sabem com quem se meteram. Eu no exterior, uma guita inflamável até à caixa do elevador e era uma vez um prédio de tangas y sus muchachas. Ahahahah (riso de Drácula depois de ferrar o dente).

*

Benevides – Euclides, descuidaste-te?

Euclides – Eu? Não. Porquê? Cheira mal?

Benevides – Não. É que ouvi um “Pssschhh” e pensei que fosses tu.

Euclides – Só se estou incontinente. Também não admira, com a porcaria de comeres que me fazes…

*

“Notícias do Bairro” – Conforme anunciado, vai ser demolido na próxima semana o mais antigo edifício deste bairro. Abandonado desde que há anos o elevador pegou fogo, tinha como único residente um indivíduo que, em trajes menores mas de elevada qualidade, dançava para os ratos. Consta ainda, na vizinhança, que o edifício estaria assombrado por fantasmas de tanga que, ao som de gritos doidos, perseguiriam outros seres do Além, mas esses sim, de lençol. Como mandam as regras do pudor.

 

FIM

 

                                                                                       João J. A. Madeira

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