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18/08/23

Caminhos e Encruzilhadas - Capítulo 2

 

Fotografia: Bartolomeu Frederico 

Estrela

 

Acabo de chegar a Esposende, são 19 horas. Saí de Viana às 7, ainda o ar da manhã estava fresco, fazendo-me sentir que poderia caminhar com maior facilidade durante os primeiros 15 km e parar em seguida para descansar e almoçar. Assim foi, embora com o avançar do dia a temperatura subisse um pouco.

Parei em Castelo do Neiva.

Souberam-me imensamente bem os 60 minutos que demorei sentada na relva, com os pés mergulhados na água fresca do rio.

Durante este descanso, múltiplos pensamentos atravessaram a minha mente. Um deles, que me deu uma força imensa durante o tempo em que a minha vontade se dividia entre aceitar ou declinar o desafio de Adriano, chegou-me por mensagem enviada pelo meu filho Pedro. Depois de o ter informado acerca da carta e do seu conteúdo, respondeu-me: “Mãe, quando deixamos de fazer aquilo que o destino coloca no nosso caminho, perdemos tempo de vida. A vida é para ser vivida e não para ser lamentada”. Aquela frase enterneceu-me e deu-me alento para pensar positivo relativamente àquela proposta de encontro, que já tardava.

Depois, o meu pensamento vagueou e foi parar num poema que o Adriano me enviou na primeira carta que me escreveu, depois de nos conhecermos em Mafra. Rezava assim:

 

Vens de um lugar muito distante

Transportas paisagens no olhar

Cheiro a mar, no cabelo ondulante

Vens de um lugar perto do mar

 

A leveza breve do andar

A suavidade do gesto, o respirar

Fizeram-me por momentos sonhar

Que te via caminhar junto ao mar

 

Encantou-me a luz do sol, no teu sorriso

Quando me perguntaste onde ia dar

Aquele mar verde, brando e liso

 E eu respondi, que ao teu olhar

 

Encantou-me a delicadeza do teu rosto

Quando te sentaste ao meu lado

E, olhando nos meus olhos num momento

Acariciaste o meu rosto envergonhado

 

Dissemos coisas belas um ao outro

Segredaste-me desejos de viajar

Revelaste-me que és guiada por um astro

E que te reges pela força desse mar

 

E eu senti poder voar

Segurando a tua mão junto a mim

Senti-me ir contigo a esse lugar

Percorrendo o mar que não tem fim

 

A seguir ao almoço retemperador, os 15 km seguintes que me trouxeram até ao final da minha primeira etapa, revelaram-se um pouco mais duros; o calor, o peso da mochila e a minha impreparação física, começaram a pesar. Agora, aqui chegada, sentada no areal, recebo no rosto esta brisa marinha que me retempera a mente e o corpo. Olho o mar imenso e o sol laranja-forte que começa a declinar no horizonte, sinto o cansaço físico, as pernas e os pés macerados. Mas sinto-me imensamente feliz e grata – posso dizer - por ter tomado a decisão de aceitar o desafio maluco que o Adriano me propôs, naquela carta inesperada que há dias me endereçou. Quando li a carta pela primeira vez, ri-me da ideia louca e até da sua ousadia. Ri-me ainda ao lembrar-me que pouco tempo antes estava convicta que ninguém “pegaria” uma mulher com 53 anos de idade e de como estava enganada a esse respeito. Senti de novo a alma de criança, que possuía no dia em que conheci o Adriano e a lembrança do seu riso e do seu olhar ficaram tão nítidos e presentes, como naquele dia no Convento de Mafra. Sinto de novo o meu pensamento viajar e recordo o poema do Adriano, na segunda carta que me enviou. Não foram muitas essas cartas, mas cada uma delas revelava uma faceta da sua personalidade, umas vezes romântica outras, sonhador. É verdade. Todos os românticos são sonhadores e todos os sonhadores são românticos. O poema nesta segunda carta dizia assim:

 

Ah, se eu conhecesse a magia

Para conquistar-te o coração

Se eu soubesse uma fantasia

Que te roubasse a razão…

 

Se eu possuísse guardada

A varinha de condão

Que ao tocar-te minha amada

Fizesse nascer-te a paixão...

 

Ah, se eu soubesse das estrelas

Retirar todo o seu brilho

Para preencher estas telas

Que pinto seguindo o teu trilho...

 

Aguarelas de sonhos encantados

Com tons fortes e plangentes

De beijos longos, alucinados

Em noites encantadas e quentes...

 

Ah, se eu descobrisse o feitiço

Que te conquistasse a alma...

E esse teu corpo mestiço

Ou então... me matasse este amor que não se acalma

 

Depois, reli inúmeras vezes aquela carta e de cada uma delas, sentia que aquele desafio até fazia, algum sentido e depois, muito sentido. Ao ler a carta pela primeira vez, decidi imediatamente que não iria aceder a tal loucura. Mas depois de a reler a minha atenção começou a fixar-se cada vez mais na frase e na reflexão que Adriano referia como sendo a responsável pela ideia que me propunha: “…li, numa revista, um artigo que me ficou cá a matutar na cabeça: o relato de alguém que, numa altura de crise na sua vida, resolveu peregrinar até Santiago de Compostela. O que mais me impressionou foi a mudança que a peregrinação operou nessa pessoa.” Acho que foram também o sentido desta frase e a necessidade que já há muito sentia de dar uma volta radical na minha vida, o “gatilho” que fez acordar o meu espírito de aventureira e ditar a minha decisão definitiva de aceitar tamanha aventura. Estes pensamentos levaram-me a recordar um pequeno poema da autoria de um grande poeta português, largas vezes vencedor de prémios nacionais e internacionais de poesia. Bartolomeu D’Asp:

 

Hoje, vou onde o vento me levar

Vou deixar que ele me pegue

E que me leve... leve... leve

Que me leve, muito leve, pelo ar

 

E se o vento me quiser perder

Numa qualquer curva de monte

Que me perca, se quiser

Ou então que me deixe junto à fonte

 

Essa fonte cristalina que é teu olhar

Onde vou cada dia refrescar

Os meus lábios, os sentidos

Onde vou cada dia escutar os meus gemidos                            

 

E se tu te quiseres deixar levar

Peço ao vento para te juntar a mim

E leves, leves, pelo ar

Partiremos abraçados a sonhar

 

Rio-me, quase de forma infantil, por pensar que o poeta poderá ter escrito estes versos, pensando em nós. Nós, dois ínfimos grãos de areia, afastados num areal imenso e que tentam reencontrar-se, vencer barreiras pessoais, encontrar caminhos novos, na esperança de uma vida mais feliz, mas, sobretudo, curiosos de se verem, de verem o que o tempo fez a cada um e de se reconciliarem com esse tempo e consigo próprios. E de imediato salta-me à memória um outro poema da autoria do mesmo poeta, o qual, sem falsa modéstia, acredito que terá sido escrito expressamente para nós, inspirado em nós, na nossa história que começou na adolescência, mas, que pelos anos fora não deixou de estar latente nos nossos corações. Num rasgo maior de imaginação e fantasia, imagino-te a recitares este poema para mim, no dia feliz em que voltarmos a encontrar-nos e que, ao me teres nos teus braços, sinta finalmente a segurança e o desejo de viver intensamente ao teu lado.

 

Soltam-se estrelas de teus cabelos

Quando tu passas por mim

E dos teus olhos tão belos

Soltam-se brilhos sem fim

 

Soltam-se aromas silvestres

Desses teus ombros sedosos

Adoçam-se os ventos agrestes

Que empinam teus seios airosos

 

Pousam teus olhos nos meus

Meigos, como o firmamento

Brilhantes como infinitos céus

Exaltadores de um momento

 

E tudo em ti é volúpia

Todo o teu ser é paixão

Minha mente rodopia

Cresce-me no ventre o tesão

 

Abraço teu corpo quente

Sem segurar a urgência

Fervilha na minha mente

Um desejo, uma demência

 

Ofereces-me, lânguida, audaz

Essa tua língua frutada

Entregas-te, quase mordaz

Sabendo-te tão desejada

 

Cúmplices de um desejo

De uma profunda vontade

Inebriados por um beijo

Conquistámos a verdade!

 

                                                         Bartolomeu Frederico

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