Capítulo I
Estela Fonseca
Madalena.
Olhos cor de algas. Cabelo longo e liso. Castanho. Uma madeixa fogo caindo
sobre os ombros morenos, debruando o decote do vestido lilás.
Vendo-se
ao espelho, passeia os dedos pelos seios pequenos e suspira o aroma do “coffee woman cream” que, antes e
delicadamente, tinha passado no corpo inteiro. Olha o relógio para confirmar as
horas. Ainda tem tempo para rever os seus detalhes, antes de Alexandre chegar.
Alexandre
é grande. Corpo moreno e os olhos a confundirem-se com os dela. Sob o sorriso
ainda de miúdo, apesar dos seus trinta e oito anos, ela gosta de encaracolar a
ponta dos dedos nos caracóis pretos daquele homem, daquele gajo que, como
poucos, tão naturalmente seduz. Pelo sorriso e pelo olhar e pelo corpo de um deus
materializado na pele damasco doce.
Sabe
de cor os meandros da sedução. Do jogo de xadrez em que de vez em quando faz
xeque-mate para, depois, desaparecer na bruma tão facilmente como antes um dia
tinha chegado. Porque Alexandre sempre soube como jogar. Tudo na sua vida era
milimetricamente controlado, tudo na sua vida era perfeitamente colocado no
puzzle do seu quotidiano. Até porque não podia perder a casa de sonho plantada
num jardim de amores-perfeitos. E a esposa. Que tão sabiamente, ainda naquela manhã,
o tinha mimado com o sumo de laranja, as tostas com manteiga e uma fatia do
bolo caseiro que só ela sabia fazer.
Mas
Madalena é diferente. É a mexida proibida e perigosa. É colega da esposa de
Alexandre e trabalham ambas no mesmo escritório de advogados na praça da
Invicta. Opostas! Mesmo no local de trabalho. À racionalidade fria e quase
matemática da mulher, Madalena é o impulso divertido e emotivo. Se a dona de
casa perfeita prefere o clássico do saia-casaco sem sabor, Madalena ousa nos
vestidos leves e nos decotes provocadores pintados com colares ou echarpes com
perfume a frutos. E Madalena não imagina que aquele homem brincalhão e de sabor
a chocolate é o marido fantástico por quem a colega baba no escritório entre um
café e os papéis do caso seguinte!
São
apenas colegas - pensa ele à medida que rompe no pouco trânsito da cidade - Não
tinha sido difícil sair de casa. As reuniões do partido eram frequentes e a
crise politica e financeira do país obrigava-o às reuniões cinzentas onde se
discutia o sexo dos anjos! Por isso, aquela quinta-feira era apenas mais uma noite
de um cinzento demagógico.
Imiscuía-se
no seu pensamento, portanto! Nem amigas são! Justificava-se! E ele teve o
cuidado de manter todo o secretismo sobre a sua vida familiar. Mesmo assim,
sentia-se inseguro desta vez. Uma mistura de adrenalina e de ausência de bom
senso! Mas o fruto proibido é sempre o mais desejado e ele desejava Madalena. O
seu corpo pequeno que escalava sôfrego o seu. E os olhos dela! Não esquece que
foram aqueles olhos cor de algas que pela primeira vez o fizeram desviar o seu
olhar. Geralmente, ele tinha esse efeito com todas as mulheres, mas, com
Madalena, foi o oposto. Por isso, logo esqueceu o bom senso!
Madalena
esperava-o sorridente assim que a campainha se fez tocar. A sala minimalista
decorava-se apenas com a luz de velas que aromatizavam a canela, e o som calmo
de “turn me on” na voz
irrepreensível da Nora Jones. Não o deixou falar e arrastou-o para o sofá
branco. Dependurada no seu pescoço mordiscava a sua boca. As mãos dele tocavam
o vestido lilás curto. Sem pressa no beijo de língua, sem pressa os dedos dele,
húmidos, do tesão dela. Depois a camisa dele despida misturou-se com o vestido
dela, despido! A música continuava o ritmo dos corpos de ambos. Mais! - Pedia
ela. E a boca dele desceu o seu ventre e sorveu-a numa lentidão luxuriante.
Madalena misturava gemidos e palavras e súplicas. Depois puxou-o para si. A
boca dele de odor do sexo dela excitou-a mais ainda. Agora ele estava dentro de
si. Submissa na vontade de bicho dele. Macho e fêmea. Misturavam risos e pele.
Cheiros e sexo. Esfregavam-se um no outro e bebiam-se numa simbiose perfeita.
Parava o tempo o espaço a música. A mistura pura e impura de um elemento
químico e complexo só dos dois, ontologicamente inexplicável!
Ele
exigiu olhar o orgasmo dela na boca e nos olhos de Madalena, impura e
perfeitamente sua! Só então se jorrou inteiro na pele dela, perdido em sabores
e toques nunca antes sentidos.
Madalena
sorriu com boca pérfida e trincando a brincar os lábios dele, encaixou-se de
novo no sexo ainda duro de Alexandre. Olhou-o intensamente. Num gesto simples
retirou a madeixa de cabelo, colada ao suor do seu rosto. Depois acariciou,
meiga e dolente, a face de Alexandre e, sussurrando-lhe ao ouvido, disse-lhe
entre divertida e maliciosa:
-
Eu sei quem é a tua esposa…
Capítulo II
José Manuel
Barbosa
Quarta-feira.
Ok Madalena, amanhã 22h na tua casa.
Ansioso... hummm ;) Bjoo!
Quinta-feira.
Eu sei bem quem tu és!
nesta
noite em que não dormi absolutamente nada dando voltas e mais voltas virando e
revirando os pensamentos mais obscuros e tenebrosos quase confirmando todas as
minhas anteriores suspeitas sobre a conduta extra conjugal do meu homem desde
ontem por uma fatalidade do Alex quando dele recebi na noite anterior uma SMS
que seguramente não me era destinada
para
uma Madalena que só pode ser a minha colega
a Pimenta
ela as suas reacções e expressões
involuntariamente faciais e alguns estranhos e episódicos comportamentos
começaram a levantar as minhas suspeitas de que algo se poderia estar a passar
entre ambos sempre que lhe falava da minha vida familiar especialmente do
Alexandre o seu olhar e a sua
expressão a traíam tanto secretismo
em relação a mim na consulta do seu facebook
no escritório tantos gostos comuns
entre ambos dizia ela intuição
feminina a minha
ele demasiadas noites ausente até tarde que
numa delas o palerma chegou às quatro da manhã cheirando a outro gel de
banho é mais fácil um homem safar-se
com o cheiro do perfume de outra mulher do que cheirar a um estranho gel de
duche não? tão distraídos que eles
são
vão
encontrar-se hoje pela noite a coberto de mais uma interminável reunião na
distrital do partido porra que a
crise é ameaçadora para eles e as autárquicas ainda estão longe a quem pensa ele que engana?
tenho
de manter-me impassível como uma máscara chinesa a minha aparente frieza e o meu formalismo
juntamente com a previsibilidade que me caracterizam dão-me uma excelente
cobertura para que não desconfiem de tudo aquilo que já sei sobre eles nada como um falso perfil do face para apurar alguns detalhes que uma
mulher interessada é capaz de tudo
outra coisa é ser-se interesseira
a
Eva primordial aquela que verdadeiramente sou poucos amigos a conhecem os que eu permito aqueles capazes de subir
os muitíssimos degraus até ao meu íntimo
Alex percorre com facilidade esse caminho a nossa casa é o meu universo onírico em
que majestosamente me revelo em toda a plenitude brincalhona conversadora
sociável sedutora e terrivelmente doida por cama com Alex entre nós há muito que se desfizeram todo
os tabus onde tudo vale excepto a dor
o nosso deslumbramento por mais que tente não o imagino de outra
forma nos limites por isso estou segura e magoada possessa e
compreensiva incoerente e trespassada
disfarçando
o melhor que pude as olheiras e o mau humor não me dando por vencida nem por
cornuda preparei-lhe esta manhã um especial e apetitoso pequeno-almoço com
direito a um fulgurante reforço que o fez sair de casa atabalhoadamente
atrasado! já sei que não o suficiente porque tesão não lhe falta para o testar para vêr até que ponto ele
me resistia ou até para averiguar até onde iria a sua mentira que logo à noite
chegaria muito tarde por causa de mais uma das suas cinzentas reuniões em que
de certeza não iria discutir o sexo dos anjos antes divagar sobre o sexo
certamente apimentado da Madalena
as
ruas de Mouzinho da Silveira e de S. João fazem-se a descer até à dos
Mercadores como nunca a pique em que eu pareço ora deslizar ora tropeçar na
minha própria sombra e nas divagações mais exasperadas depois de passar pelo
escritório entregando documentos importantes que não ia estar o dia todo não
porque não me apetecesse trabalhar mas porque tinha surgido um problema de
resolução inadiável Dr. Ricardo
compreendeu e envolto naquele seu indisfarçável sorriso matreiro denunciador do
fraquinho que nutre por mim me mandou tratar dos meus assuntos num
vá tranquila Eva
faz
um sol tímido e as esplanadas da ribeira ainda estão desertas a esta hora que
pouco falta para as onze embrulhada ainda pelas sensações de há pouco num misto
de satisfação e de raiva o meu cérebro lateja-me no crânio com os gritos das
gaivotas olhando o cais de Gaia identifico ancorado o barco de cruzeiro que
durante três dias da semana passada nos levou por este rio acima atravessando
as inolvidáveis paisagens durienses simetricamente espelhadas na tranquilidade
do rio que o Alex fez questão de percorrermos
que
amoroso quão romântico que ironia
dias
de paz mal sabendo eu o que me
esperava melhor não desconfiando eu o
que agora acabo de confirmar que a minha intuição nunca falha
detesto
ser tomada por lorpa odeio a mentira tenho raiva à omissão premeditada só para
me protegerem
conheço
muito bem o meu marido que até foi o único com quem dormi os muitos namorados que povoaram a minha
vida anterior iam e vinham levavam uma ou mais quecas e saíam às tantas da madrugada
deixando-me os preservativos para deitar ao lixo e a cama vazia ele não
ele nunca os usou nem me deixou a cama deserta
veio
uma noite para ficar e até hoje permaneceu já lá vão uns muitos anos
por
amá-lo incondicionalmente aceito-lhe os defeitos sendo o pior deles o ser
demasiado bonito mais que inteligente
todas as mulheres o comem com os olhos e se porventura passa alguma que
não o despe ele fica como que humilhado e aborrecidamente amuado acha que todas
lhe lambem os pés ora isso
verdadeiramente
só eu sei fazê-lo e ele sabe disso
acredito
nos amores e nas paixões simultâneas aceito como possível e verosímil que um
homem ou uma mulher me diga que está apaixonado por duas pessoas ninguém pode ter a ousadia de querer ou
sentir-se pleno para outrém seria o
ser perfeito nem sequer estou a
pensar no banal triângulo homem mulher amante penso mais adiante em que um ser se
consegue validamente repartir mais ou menos igualmente entre dois outros seres
de sexos opostos ou não encontrando nas relações com essas duas pessoas às
vezes tão distintamente antagónicas complementos para a sua alma para o seu
corpo para a sua vida
não
quero é que isso aconteça com ele por ser o meu homem
eu
sei que sou possessiva e contraditória
a coerência que não me assiste é apanágio apenas das almas simples e me
questiono com ele provocando-o qual a mulher que não o é e ninguém gosta de
partilhar o seu homem com outra mulher
despejando
o pacote inteiro do açúcar este café me
sabe muito amargo sinto a
garganta apertada e os olhos humedecem como se desvanece a neblina tardia as mãos trémulas puxam de mais um cigarro
em que nesta manhã eu me suspendo
apetece-me
chorar e neste tumultuoso carrocel mental lembro o Eduardo um velho amigo de
Coimbra que conheci através da internet mais novo que o Alex mais velho na
amizade tomou-me nos seus braços uma certa noite no meio de um desabafo e
acoitou a minha tristeza na sua cama onde apenas conversámos e chorámos juntos
ternamente
apenas os nossos corpos se tocaram
e
se aqueceram nessa cumplicidade imensa que agora me vem à memória o tanto tempo
que nada sei sobre ele nem da sua vida
suponho que deve estar a regressar de mais uma missão em África um dia destes mais cedo do que tarde vou
falar-lhe tenho saudades preciso da sua opinião e compreensão e sobretudo da
sua cumplicidade
entretanto
que faço eu no que resta até à penumbra da noite gelada?
não
tenho vontade de continuar este livro por agora uma revisita a cem anos de
solidão apetece-me por aqui passar o
resto do dia talvez comer qualquer coisa que consiga engolir talvez
encharcar-me em café mantendo-me lúcida
a lucidez é o que mais me atormenta por antever os capítulos que se vão
seguir talvez me perder de olhar
absorto na multidão que tarda em chegar
prostrada
na noite após um jantar em que falaremos de tudo menos do que interessa sempre
quero ver a tua cara Alex a tua expressão com amo-te quando te despedires de
mim à porta para a tal reunião serei
frívola implacável e será impossível para ti descortinares o que me vai na
cabeça e na alma
até
porque já lhe garanti que ontem não recebi qualquer mensagem sua merda nenhuma
que a operadora a deve ter extraviado fazendo-me de loira uma mentira piedosa claro! ele mais
oxigenado do que eu acreditou ingénuo
talvez
me pendure no facebook como fazem
essas minhas amiguinhas idiotas em busca de atenção protagonismo piedade
sedução emoção ou seja lá o que for enchendo muros de lindas florzinhas frases
bombásticas notícias incessantemente propaladas por todos fotografias de gosto kitsch musiquinhas pirosas ou
animaizinhos fofinhos que aquilo às vezes parece um jardim zoológico
e
maltratando a Poesia
talvez
faça um pouco de tudo isto e em todos ponha um like ou um comentário mais arrojado que sou uma mulher
absolutamente normal em busca de renovadas emoções talvez algum príncipe encantado surja
através do meu monitor e eu faça de conta que acredito que só tenha olhos para mim e me diga e
faça crer nas palavras bonitas que todas as mulheres gostam de ouvir que
certamente dirá e eu certamente fingirei que oiço
ou
talvez
Eduardo...
Capítulo III
Marlene
Quintinha
Eduardo
acorda para um novo dia, se assim se pode designar. Afinal não passa de um
simples arrastar de horas, maquinado por uma rotina pouco agitada e agnóstica
de projectos, na cronologia de um desempregado.
Realizadas
as tarefas do seu quotidiano doméstico pós-alvorada esquematiza um percurso que
se avizinha “mais do mesmo”, café matinal e leitura transversal dos
Classificados e Anúncios de Emprego dos jornais do dia, paragem nos CTT para
entrega de correspondência, Entrevista no Centro de Emprego e Formação
Profissional para se candidatar a cursos co-financiados, visita ao restaurante
do pai onde almoça e por horas é ajudante de cozinha, e finalmente a recarga da
Aura com um mergulho nas energias positivadas pelos Elfos que vagueiam na
Quinta das Lágrimas.
Pega
no seu PC e no aglomerado de envelopes que contêm o seu Curriculum Vitae, e
coloca-os na mala castanha já roçada e desgastada por um Passado boémio de
Vida; Guardara-a desde os tempos em que fora professor de Latim na Faculdade de
Letras da Universidade de Coimbra.
Sai
porta fora e desce dois lanços de escadas até ao rés-do-chão.
-
Bom Dia Sr. Doutor! Como sempre apressado - profere a Menina Lúcia que está a
limpar o Hall do prédio - Tenha cuidado que o piso está escorregadio, sou
empregada de limpeza, nada percebo de primeiros socorros - graceja sem maldade,
ecoando uma soluçante gargalhada que lhe abre o rosto.
Eduardo
volta-se para Lúcia e dá-lhe o seu Olhar. Sempre fora assim, Face a Face, Olhos
nos Olhos, para ele diálogo nunca foi só palavras.
Depara-se
com uma jovem mulher de feições sulcadas pelas intempéries dos anos passados.
As profundas olheiras neutralizam o azul dos seus olhos, a pele queimada pelo
Sol o brilho da sua tez.
-
Lúcia que belo bronzeado. Faz sobressair a cor dos teus olhos - enobrece
Eduardo, que gosta de a ver sorrir e pregar rasteiras ao infortúnio do destino.
-
Fui de férias para as caraíbas do nosso Norte - diz Lúcia brincando - Estive
três semanas nas vindimas no Douro. Hoje em dia temos que aproveitar todos os
biscates.
-
É verdade, esta maldita crise afecta sempre os mesmos. Vou andando.
-
Até um dia destes, Sr. Doutor - “Espero ver-te em breve” pensa para si.
Lúcia
vislumbra-se com a silhueta de Eduardo, a simplicidade e seriedade do seu olhar
fascina-a. Ama-o em silêncio, na sua Vida não existem contos de fadas.
Tal
como definido depois do almoço foi até aos Jardins da Quinta das Lágrimas,
precisava de harmonizar as suas ideias para jamais desistir, e prosseguir.
Perambulou
por entre árvores centenárias, ruínas medievais e neogóticas, tanques e
regatos, uma irrefutável beleza assombrada pela tragédia que ali tinha
ocorrido. O Amor tem duas faces, a Tragédia é uma delas.
O
calor das três da tarde estava a fustigar o seu pensamento. Buscou uma sombra,
e sentou-se no encaixe das raízes extensas e vigorosas duma das árvores.
Retira
da mala o portátil e liga-o. Vai de imediato ao Email para ver se tem
miraculosamente alguma resposta ás suas candidaturas a ofertas de emprego.
-
Outro dia sem sucesso - suspira em voz alta.
Vai
até ao Facebook para esquecer
temporariamente o Fado que o tem assistido. Eis que encontra online a Eva.
Ela
já se tinha ali pendurado fazia horas, clicava «likes», postava comentários, partilhava pensamentos de elevar o
Ego, transparecia Outra que não a Eva dos últimos dias.
-
Olá Eva! Há quanto tempo. Nunca te vejo por aqui. És o milagre do meu dia.
-
Eduardo, preciso de Ti. Quando nos podemos encontrar?
-
Agora. Vem ter comigo a Coimbra. Estou na Quinta das Lágrimas, e aqui
permanecerei à tua espera.
Eva
pega no blusão creme, nas chaves do carro e na mala, paga a conta, e sai a
passo rápido do café. Eduardo...
Capítulo IV
Paulo Melo Lopes
E
a chuva desabou como um corpo morto, pesado e rombo caindo sem cordas sobre o
asfalto, sobre as árvores e sobre os carros. Um batalhão de setas ferozes foi
disparado em direcção ao carro de Eva. Ligou os dois piscas e abrandou a
marcha. No dia anterior sonhara um sonho estranho, denso e lúcido. Uma
tempestade, tal como a que agora se abate sobre o seu BMW, à passagem por
Aveiro, surpreendera-a à beira de um poço, um poço escuro e sem fundo. Do outro
lado do poço, Alex, vestido como uma criança, enfeitado de rendinhas, de touca
branca na cabeça e bibe azul às risquinhas, ria inocentemente de uma centopeia
que lhe trepava pela perna esquerda. Atrás dele, mas separada por uma cancela
de madeira com 3 metros de altura, Madalena, sentada a uma mesa de madeira,
talvez mogno, de mãos atadas atrás das costas, olhava surpreendida uma máquina
de escrever antiga que trabalhava sem ser tocada por mão humana. Noutro plano
mais distante, delimitado por árvores de fruto - pessegueiros, nogueiras, laranjeiras
e nespereiras -, a sua mãe brindava com um velho inglês de monóculo enfiado
dentro do olho. Reconhecia a casa – um velho palacete na Foz do Porto onde fora
baptizada por entre o frufru das titis e o alfinete dourado na lapela dos avós.
Num canto mais escuro resguardado por ciprestes, o avô Lúcio desembainhava uma
espada em serrilha com a qual decepava um corvo azulino, e a avó Maria Rosa,
sentada numa cadeira de marfim, desfolhava um malmequer preto. Todo o sonho
obedecia, certamente, a um plano qualquer que desconhecia. De cada vez que Alex
se ria da centopeia que lhe trepava pela perna esquerda, Madalena abria mais a
boca – até quase toda ela ser apenas boca -, a sua mãe brindava com o velho
inglês, enquanto no canto dos ciprestes o avô decepava um corvo e a avó
arrancava uma pétala preta – a última das quais à dentada. A tempestade,
galopante como um cavalo em fúria, acabaria por liquefazer Alex. Ficaram os
restantes elementos, contracenando como se de uma gigantesca farsa se
ocupassem. Quando acordou do sonho, os seus pés estavam gelados. Eva não
conseguiu captar a essência do sonho. Todavia, uma impressão negra como a que
agora actualizava na tempestade entranhara-se na sua pele – uma sensação de que
algo catastrófico estaria eminente. Provavelmente, sorriu Eva, ainda vou ter um
acidente e é desta que morro. Riu alto. A morte, essa velha amiga, murmurou
levando a mão à cabeça. Encostou o carro à berma, a chuva impossibilitava a
viagem. Olhou pelo retrovisor, um enorme fila de carros desfocados pela chuva
parava na berma, alguns aventureiros prosseguiam, a maior parte deles tacteando
a estrada, apenas um ou outro desafiando o temporal. Desligou a música,
recostou-se e adormeceu. Maldita sonolência, amaldiçoou.
Mais
a sul, em Coimbra, Eduardo bate à porta de um gabinete escuro.
-
Faça favor - ouve-se de dentro.
Eduardo
roda a maçaneta, baixa a cabeça e entra encostando-se à porta. No gabinete, e
ao fundo, mesmo ao lado da ocupante, um quadro de cortiça alegra-se com
fotografias, gráficos, desenhos, pioneses coloridos e fotocópias; à esquerda,
uma fotocopiadora antiga Xerox morre contra a parede; à direita, um amontoado
de caixotes com produtos da oficina de artesanato - galinhos de Barcelos
multicolores, cadernos de papel reciclado enfeitados com madeira e penas de
todas as espécies de aves, caixinhas pequeninas para guardar recordações ou
jóias, sacos de sarapilheira bordados com motivos florais – sobe até ao teto.
Eduardo conhece-os perfeitamente: todas as suas terças e quintas-feiras são
ocupadas nas oficinas, de volta dos galinhos e dos cadernos.
-
Então, Eduardo, já respondeu a todos os anúncios de emprego?
-
Sim, senhora doutora – respondeu Eduardo de cabeça baixa.
-
Já falou com os elfos da Quinta das Lágrimas?
-
Sim, senhora doutora.
-
E como estão eles?
-
Zangados, senhora doutora, muito zangados – responde com tristeza.
-
E já foi ao restaurante do seu pai?
-
Sim, senhora doutora.
-
E como está ele?
-
O meu pai está muito bem, senhora doutora, obrigado.
-
E o que vai ser a ementa?
-
Arroz com bifes, sim senhora.
-
Muito bem, Eduardo…
O
silêncio nasce no gabinete sombrio, apenas entrecortado pelo matraquear nas
teclas do computador e pela chuva furiosa na vidraça. Celestina, a técnica de
serviço social, acaba o registo de assiduidade, tira os óculos baços,
deposita-os na secretária de mogno e olha na direcção de Eduardo. Eduardo
tivera o primeiro surto psicótico bastante tarde, aos 35 anos, em plena
floresta do Congo, África. Sem meios de controlo, os companheiros de missão
viram-se obrigados a amarrar Eduardo a um mogno gigante, enquanto ele gritava
aterrorizado que formigas gigantes lhe roubavam os intestinos para os
entregarem aos gorilas, e que a mãe se transformara em leoa e lhe comia as
mãos, e que os pés não eram seus mas de um crocodilo, e que um guaxinim lhe
roía as entranhas, e que os companheiros de viagem lhe queriam roubar o
cérebro. Quando deu mostras de acalmia, Eduardo era um homem diferente. África
terminara para ele. O tímido professor de Latim era apenas uma sombra do homem
que antes fora - o homem que dormira com Eva. Agora deambula pelos
departamentos do Psiquiátrico – a rouparia, a cozinha, os serviços
administrativos, a associação de recuperação, as oficinas de trabalho, o núcleo
de emprego protegido e a sala de informática -, rumina que os feiticeiros
africanos lhe roubaram o emprego e o entregaram a um departamento americano
especial que opera no coração de África. Amargura-se imenso por estar
desempregado e consulta o Sr. Pereira dos serviços administrativos várias vezes
ao dia para perguntar se tem resposta aos anúncios de emprego, como se
estivesse nos CTT; assim como pergunta a Célia, a desengonçada monitora das
estufas, se os novos cursos já saíram. Pelo caminho, e enquanto se dirige à
“Quinta das Lágrimas”, um par de árvores mirradas num canto do hospital, Lúcia
do emprego protegido, que o trata com deferência por Sr. doutor, lança-lhe um
olhar apaixonado enquanto varre, com a energia que os comprimidos lhe permitem,
a entrada do pavilhão A.
-
A Eva vem visitar-me - diz Eduardo abruptamente e sem aviso.
Um
relâmpago alaga de luz o gabinete. Celestina franze o sobrolho e aguça o olhar
em direção a Eduardo.
-
A Eva, Eduardo? – Pergunta-lhe com inquietação.
Capítulo V
Sónia Ferreira
Eva
regressou a casa depois do mau presságio que sentiu e da tempestade que invadiu
as ruas. Adiou, por agora, o encontro com Eduardo. Despiu o casaco cinzento e
abandonou-o no sofá. O seu ego estava tão acinzentado como a cor daquela peça
de vestuário. Olhou ao redor e viu-se envolvida numa solidão deprimente.
Alexandre,
mais uma vez disse que trabalharia até tarde devido às reuniões do partido e,
consequentemente, não teria horas decentes para chegar a casa.
No
escritório, Eva trocou umas palavritas, meramente profissionais, com Madalena.
Apesar das suas desconfianças em relação à colega de profissão, tratou-a com
uma certa frieza cordial.
Pressentia
que, naquele momento, o seu marido estava envolto nos braços da amante.
O
apartamento do “lar doce lar” de Alexandre e Eva tinha uma decoração requintada,
exemplo de bom gosto. A cozinha, local onde permaneciam mais tempo juntos,
estava equipada de uma maneira prática e funcional. A simbiose dos tons azuis e
amarelos distribuídos por aquele espaço transmitiam harmonia, porém Eva vivia
uma vida incolor.
Após
o duche quente e rápido, Eva estava menos preocupada com os pensamentos
negativos, parecia até que a água tinha ajudado a lavar parte dos seus
tormentos. Mais aliviada, foi até à cozinha, aqueceu o seu “take away”
e ali jantou na companhia do seu gato Teco que, carinhosamente, se esfregava
nas pernas da sua dona e esta retribuiu com uns toques leves no pelo macio
deste animal. Afinal este era o seu único amigo fiel naquela casa.
Do
outro lado da cidade ficava o apartamento de Madalena rodeado de árvores
fabulosas e à frente tinha uma praceta enfeitada com um jardim asseado e
verdejante. Ali mesmo estava o carro de Alexandre estacionado.
Madalena
acabava de preparar a mesa de jantar para dois e Alexandre abria uma garrafa de
vinho verde branco 2010.
-
Vamos fazer um brinde! -disse Alexandre elevando o copo de cristal, abanando o
néctar dos deuses e acariciando os ombros de Madalena.
-
Um brinde ao nosso amor!-retorquiu Madalena com um brilho resplandecente no
olhar que pareciam duas lanternas acesas a evidenciar o amor a transbordar do
coração.
Alexandre
fixou o olhar nos belos olhos de Madalena e ali permaneceram intactos como se o
mundo tivesse parado por um instante. Seguidamente, envolveram-se nos braços um
do outro, beijaram-se apaixonadamente e deixaram cair os corpos, como se fossem
um só, sobre o sofá. Duas personagens como Romeu e Julieta, cegos de paixão!
Eva
para disfarçar a solidão daquela casa, pegou no telemóvel e verificou se tinha
mensagens novas. Nada de novo, ninguém valorizava esta mulher, sentia-se um ser
humano indiferente a todos; este era o sentimento que Eva nutria pelo resto da
humanidade. Num gesto rápido, manuseou de novo o telefone e foi aos contatos
pesquisar o nome Eduardo. Observou intensamente este nome e, por breves
momentos, sente a sua mente aliviada e a ansiedade acalmou. Teve a sensação de
ter expulsado todas as mágoas cá para fora como acontece com aquelas conversas
em que só se precisa de um bom ouvinte para apaziguar as tristezas.
-
Hoje já é tarde… mas amanhã vou-lhe ligar….Que te parece Teco? - Disse Eva, em
tom baixo. Olhou para o seu animal de estimação e, como se fosse possível,
ficou à espera de uma resposta afirmativa!
O
gato miou e Eva soltou uma pequena gargalhada!
-
Vou tomar uma atitude! Hoje vou deixar de ser tomada como lorpa…- gaguejou Eva
ao olhar, mais uma vez, ternamente para a sua única companhia.
Decidida
em pôr um ponto final às mentiras e à vida dupla do marido foi até ao quarto,
vestiu umas calças justinhas e uma camisola às riscas preto e branco que faziam
com que a silhueta magra e esbelta de Eva sobressaísse. Indubitavelmente tinha
um corpo feminino que fazia roer de inveja a muitas mulheres.
Tranquilamente,
pegou nas chaves do carro e disse um “adeus” afetuoso para Teco. Saiu com o
objetivo de se deslocar até à casa da suposta amante do marido. No trajeto
simulou vários discursos: ou entraria de forma violenta invadindo o apartamento
e discutiria como uma estouvada chamando à atenção dos vizinhos ou falaria
civilizadamente com aqueles dois traidores, exigindo o divórcio.
O
trânsito estava caótico e os constantes semáforos a sinalizar a luz vermelha
deixavam Eva impaciente e com aquele nervosismo miudinho que provoca suores
frios.
Cortou
à esquerda e entrou na praceta do prédio de Madalena. Lá estava o carro do
marido estacionado… Alexandre estaria a fazer tudo, menos participar numa
reunião do partido… Eva não conseguia controlar as batidas aceleradas do coração.
Parou
o carro e pensou: - vou tocar à campainha e faço-me de convidada indesejada ou
faço-lhe uma espera aqui mesmo, como se fosse uma polícia à espera do
sequestrador?!
Capítulo VI
João J. A.
Madeira
Que
se fodam, pensou. Que fodam, copulem, como dois animais desprovidos de
sentidos. Que as suas inteligências se reduzam ao encaixe de ponta de pau em
passiva porta de prazer. Ela é que não alinharia em dramatismos, em teatros
ignóbeis de gritos fendidos por ofensa, em ridículas atitudes numa sociedade
machista. Ela, Eva de seu nome, primeiro nome de todas as mulheres, era uma
senhora! Uma mulher de letra grande educada na sensibilidade dos afectos, nas
carícias por carinho, na certeza de que só o amor levava ao sexo enquanto que o
sexo apenas levava repetidamente a si próprio. Não seria personagem daquela
peça. Não queria ver as costas do seu homem sobre aqueles olhos de…de… de
putéfia.
Tremia.
Tremia de raiva, de frio, de gélida ira quando se afastou. Os passos pisando
pensamentos vertidos na calçada. Ela tinha um homem sensível, inteligente e
atencioso. Madalena olhos cor de puta tinha somente uma máquina oscilante de
fugaz e efémero prazer. Eva vencia. Porque nunca o seu corpo se dera na busca
de apenas corpo. Nunca o sexo pelo sexo. Nunca.
Queria
estar só. Só, destilando raiva pelos poros do silêncio. Mas porquê tanta gente
nas ruas, hoje, logo hoje em que desejava para si um vácuo de pensamento?
Porque se amontoavam as pessoas, mudas, tristes, à beira do passeio, se naquela
noite a tristeza e o silêncio eram propriedade sua? “… a procissão”, sussurrou
alguém. A procissão! Há quanto tempo tinha abandonado a paz celestial. A
candura da catequese que em menina frequentara. Os ensinamentos de pudor e
castidade. Oh! Quanto tempo havia de recordações que mais tempo apagara. Seria
uma bênção aquela procissão? Uma dádiva para os pensamentos que tanto a
mortificavam?
Parou
olhando o alcatrão ainda desocupado. Se pecara pelo afastamento aos
ensinamentos de Deus, não era digna de se misturar com a multidão de crentes.
Recuou. Até que as costas sentiram o frio da parede de um prédio. Conseguiria
dali ver o desfile por entre a silhueta das cabeças à sua frente. Saberia ainda
benzer-se?
Subitamente,
um clamoroso mas ternurento “Oh!” denunciava a visualização das primeiras
figuras.
E
encontrou-se, lá atrás, sozinha cada vez mais rodeada de gente. Que se
empurrava disfarçadamente, se substituía subtilmente. Cada um querendo ocupar o
suposto melhor lugar do outro. Pôs-se em bicos de pés tentando vislumbrar as
primeiras imagens. E alguém se interpôs entre ela e a parede que fora sua.
Alguém que não passou. Que apenas lhe roubou o lugar.
Crianças.
Meninas em lento passo, provavelmente traquinas certamente diabretes, faziam-se
rosados anjos em simulada levitação, que as asas mal pregadas nas costas e os
pés cobertos pelas brancas vestes simulavam. Nas mãozinhas, cotos brancos
sustinham titubeantes chamas.
Um
calor, uma chama intensa lhe inundou o corpo. O lento erguer de algo duro atrás
de si, ofensivo, abusador, como que forçando a costura das calças entre as
nádegas, queimou-a, empurrou-a para onde não era possível ser empurrada. Com as
faces fervendo, quis voltar-se, enfrentá-lo. Mas, naquele momento, Madalena
agitaria como troféu o que a ela derrotava. Porquê fugir ao que a amante do
marido se entregava? Não era sua a carne do marido. Não era sua a carne sedenta
de prazer que a si se encostava. Só a sua própria carne lhe pertencia. Deveria
permitir que essa sua carne fugisse? A fuga deixa mágoa, ofensa. E a entrega?
No
silêncio da multidão, o rufar tenebroso e sincopado dos tambores alternavam com
o ranger do cabedal das botas dos bombeiros. Bum!...Bum!
O
coração vibrava-lhe a cada pancada, a cada estocada que um sexo perplexo pela
submissão lhe forçava na justeza das calças cedentes ao mais forte. Sentia-o
tão dentro de si como ao sangue bombeado por desnorteado coração. Subitamente,
numa atitude estranha de coragem ou cobardia, forçou a que o seu corpo
pressionasse quem até aí a pressionara.
O
primeiro andor. Do alto, o primeiro olhar triste e santo fixando o negro do
alcatrão contrastado na alva pureza da sua aura. Andando lento. Numa lentidão
subjugada ao andamento dos ombros que o sustêm.
Já
não sabia o nome dos santos. E só agora brevemente questionava que debaixo
daquelas vestes fortes e pesadas o santo tivera carne também. Como ela. Como as
mãos que suaves se meteram sob a camisola de riscas brancas e pretas e, em
círculos, numa aproximação de carícias, foram subindo devagar, muito devagar,
misturando poros e suor, desejo e medo, até ao abarcar dos seios rijos e
incomodados pela asfixia do soutien. Há um temor de lascívia na sua mente.
Desejo e repúdio. Querer gritar o grito que o corpo cala.
Calam-se
os tambores. Param acólitos de vestes vermelhas corridas ao longo do corpo
sibilando mudas e ininteligíveis rezas sobre o aroma do incenso exalado pelo
censer agora inerte. Detêm-se por instantes pernas castigadas por tão lento
caminhar.
Correm
mãos para sul no desabotoar de botão de cós no correr de fecho no tocar da
humidade de um sexo ávido de prazer na ponta de uns dedos hábeis, ultrajantes,
invasores perdidos desde que outro sexo o fizera acordar. Eva quer rejeitar o
que o corpo deseja por gosto. Perde-se ofega baixo no ritmo ofegante que lhe
sopra o pescoço como bênção sobre o corpo que sente não ser já seu. Cedendo ele
ao que ela não quer, que lhe restará depois? A memória do prazer? O pecado? A
culpa de um sexo molhado entre frágeis pernas em que a mente fraquejara também?
O
hissope agita-se nas mãos do prior. Asperge benzendo de humildade castigadas
cabeças caídas subitamente leves de culpa, de peso, de maldade evaporada no
escuro dos céus que se iluminam em estrondos estrelados de júbilo. Expelem-se
finalmente foguetes da alma aflita por oprimida dos homens.
Quando
o seu corpo cai, desamparado, Eva sabe que tudo acabou. Que alguém a liberta e
se perde misturado na multidão. Terá um rosto que nunca conseguirá identificar
enquanto que o seu será, onde quer que esteja, reconhecido pelos olhos desse
mesmo rosto. Sem forças, as pernas o corpo a alma tremendo, ergue-se. Quando
acima dos vultos vislumbra um outro semblante. Estático, triste. Incluirá Ele o
seu pecado nos pecados do Mundo?
A
multidão ajoelha.
Só
Eva permanece de pé.
Eu
sei, Senhor. O teu reino não é deste mundo. O meu é. Transmitiste-me a
faculdade de perdoar ou castigar. Madalena e Alexandre. De recuperar amores
perdidos ou apenas adormecidos. Eduardo. Mas têm os amores perdidos recuperação?
Ou são apenas rosto desconhecido de alguém que se dilui na multidão? Que nos
conhece sem que saibamos quem é.
Fechou
os punhos. Sorriu. Obrigada, Senhor. Pela resposta.
Finalmente
ajoelhada, benzeu-se.
Capítulo VII
Dina Rodrigues
Eva
benzeu-se e rezou. Pediu ao Senhor que lhe iluminasse o pensamento, que lhe
clareasse a resposta que antes lhe tinha dado. Afinal, ela ainda sabia
benzer-se e rezar… estava surpresa consigo própria, com o seu comportamento
naquela noite.
O
carro estava estacionado entre as árvores, perto ao apartamento da Madalena,
mas distante o suficiente para não ser visto da praceta, nem da casa dela.
Agora, enquanto caminhava em direcção ao carro, já não tinha tanto a certeza da
decisão que deveria tomar, do que deveria fazer a seguir. Já não sabia se
voltava à praceta do prédio da Madalena e fazia uma cena de mulher traída pelo
marido, com a colega do escritório, ou se ia para casa e fingia que nada de
extraordinário tinha acontecido, naquela noite. Fingia que não tinha visto o
carro do marido naquela praceta, fingia que a sua vida era maravilhosa e que
era uma mulher muito feliz. Fingia que tinha um marido maravilhoso, um marido
que era a pessoa mais fiel à face da terra…
Pensando
melhor… só ia pensar em si! Por enquanto, ia abandonar a ideia do perdão ou do
castigo, ia esquecer durante algum tempo aqueles dois, Madalena e Alexandre e
ia dedicar-se apenas a si própria. Ia adiar por mais algum tempo o encontro com
Eduardo, mas antes disso, ia telefonar-lhe a dar uma explicação porque não
tinha ido ao seu encontro na Quinta da Lágrimas. Precisava de uns dias só para
si. Não queria pensar em mais ninguém, já tinha confusões suficientes na sua
vida. Tinha de pensar com clareza que atitudes tomar, de futuro, em relação ao
marido e ao seu casamento.
Eva
chegou ao carro. Daqui podia avistar o carro do marido, que continuava
estacionado na praceta. Agora tinha a certeza de que era mesmo isso que queria
fazer, ia tirar uns dias de férias! Ia tirar uns dias só para se dedicar a si
própria, longe deles todos.
Ela
era superior ao marido e à amante. A raiva e o ódio que sentia por eles,
faziam-na sentir muito forte. Tinha de encontrar a melhor maneira de explicar
as férias marcadas, assim tão à pressa, mas Segunda-feira não podia ir
trabalhar porque não se queria encontrar com aquela ordinária e traidora da
Madalena.
-
Que se lixem os dois! Segunda-feira já vou estar longe daquele escritório! – Pensou
ela.
Entrou
no carro, deu à chave a arrancou. Uma chuva miudinha começou a cair e ela
sentia-se demasiado nervosa para prestar atenção à estrada. Aquela chuva também
não ajudava nada, mas lá conseguiu chegar a casa, ao que deveria ser o seu
refúgio… Chegou lá, sentou-se no sofá e logo o Teco, o seu fiel companheiro,
saltou para o seu colo, muito feliz por ver a dona. Ela afagou o gato e foi à
janela, precisava de respirar. Já chovia com mais força. Ficou à janela a ver a
chuva e a pensar na sua vida, o que aliás, mais tinha feito nesta noite, desde
que deixou aquela procissão. Não queria que Alexandre a encontrasse em casa,
quando voltasse. Talvez ele já não voltasse essa noite, só regressasse no dia
seguinte, mas mesmo assim não queria arriscar a vê-lo. Agarrou no telefone e
fez uma reserva num hotel. A seguir, telefonou à Ana, uma amiga que a podia
ajudar, nesse momento de tristeza e revolta.
-
Ana, amiga, podes ficar com o meu gato, por alguns dias? Vou de férias e não
tenho a quem o deixar!
-
Não te preocupes, Eva. Quando é que precisas que fique com ele?
-
Hoje! Agora! – Respondeu Eva.
-
Agora?!... – Perguntou Ana. - Mas está bem, para que servem os amigos senão
para se ajudarem quando é preciso? Podes passar por minha casa e deixar o Teco.
Prometo tratar bem dele!
-
É uma emergência, fico-te muito grata! – Agradeceu Eva. – Depois conto-te tudo.
Vou para Tróia, para aquele hotel que um dia me falaste, aquele com o spa. - É
mesmo disto que eu preciso neste momento!
Rapidamente,
fez uma mala com roupa e alguns produtos de higiene, meteu o gato num cesto
quentinho e apressadamente dirigiu-se ao carro. Passou em casa da Ana e seguiu
viagem. Tinha uma longa viagem pela frente…
Finalmente,
ia poder desfrutar de uns mimos para si. Mesmo que o tempo não estivesse bom
para a praia, ia saber-lhe bem, estar afastada de casa, longe das confusões e dos
problemas que a sua vida estava a atravessar. A Ana, um dia disse-lhe que
aquele hotel era muito bom e que o spa era uma verdadeira tentação.
-
É tudo o que eu quero neste momento… Estar num bom hotel, rodeado de bonitas
paisagens, o Estuário do Sado e a Serra da Arrábida. Quero dar uns passeios
pela praia, com a bonita vista para a serra da Arrábida, e claro, os milagrosos
tratamentos de relaxamento do spa! – Pensou ela.
Eva
conduziu pela noite dentro, lutou contra o sono e o cansaço e chegou a Tróia exausta,
mas pela primeira vez, em tanto tempo, sentia-se livre. Mal conseguiu dormir,
acordou cedo e cheia de vontade para ver o nascer do sol, da varanda do hotel.
Uma
nova Eva estava a despertar para a vida!
Capítulo VIII
Paulo Rodrigues
- Senhor
Primeiro Ministro, é verdade que vai…
Acelerando
o passo e empurrando o microfone, num gesto nada consentâneo com o cargo que
ocupa, o Primeiro Ministro Alexandre Baltazar interrompeu a jornalista e
afirmou: “No final do conselho de ministros será lido um comunicado”, enquanto
transpunha a porta que o aguardava entreaberta e que se fechou atrás de si.
Virando-se
para a câmara, a jornalista Rute Soares concluiu a peça:
-
São as declarações possíveis que conseguimos obter do Primeiro Ministro sobre a
sua possível demissão. Ficaremos por aqui à espera do comunicado final do
conselho de ministros. Por agora é tudo, Zé.
-
A jornalista Rute Soares a acompanhar o conselho de ministros extraordinário,
para analisar a possível demissão do Primeiro Ministro, na sequência do
escândalo sexual que protagonizou.
-
Para analisar precisamente este caso temos connosco em estúdio Carlos
Figueiredo, o nosso analista para questões de política interna. Carlos, achas
que o Primeiro Ministro se vai demitir ou não?
-
Boa noite Zé, temos assistido nas últimas semanas a tomadas de posição
diametralmente opostas, em que claro está, os comentadores afectos ao partido
do poder minimizam a situação, enquanto todos os restantes pedem a sua
demissão,…
-
Mas achas que a situação justifica essa demissão? E os custos para a
estabilidade da governação?
-
O que me parece é que a questão não é apenas do foro intimo do Primeiro
Ministro enquanto cidadão, tal como defendeu ontem o presidente da Assembleia
da República, há dinheiros públicos envolvidos e tanto quanto a investigação
conseguiu apurar até agora, a situação configura um presumível abuso de poder.
-
Portanto crês que para não desgastar mais a imagem do governo junto da opinião
pública, se deveria demitir?
-
Não se trata apenas de manter a imagem, o que foi apurado até agora é grave, e
se se vier a provar que é verdade sou de opinião que não tem outra saída que
não seja demitir-se…
NNNNNÃÃÃÃÃÃOOOOOOOOO
Com
um salto, sentou-se na cama, ofegante, olhos esgazeados perscrutando a
escuridão, a testa alagada em suor.
Os
segundos pareceram-lhe eternos enquanto esperava ver o dedo acusador de um juiz
apontado na sua direcção. Não podia acabar a carreira daquela forma. A política
era um meio para a sua ambição desmesurada pelo poder. Não podia falhar. A
respiração que teimava em não acalmar denotava o seu nervosismo. A espera
apenas lhe devolveu silêncio e trevas e por fim apercebeu-se que tinha tido um
pesadelo. Deixou-se cair pesadamente na cama, com um misto de alívio mas também
de preocupação.
Estava
transtornado e tinha uma razão para isso. À chegada a casa um bilhete lacónico
em cima da mesa dizia apenas “fui de férias”. Não pensava que pudesse ser
descoberto sobretudo depois dos cuidados que pusera na preparação das suas
escapadelas. Contudo, aquele bilhete não lhe deixava muitas ilusões a esse
respeito.
A
família era importante. Enquanto conservador tinha construído uma carreira
assente na imagem de homem de família arreigado às tradições, que o seu partido
defendia. Era parte da sua estratégia.
Mas
mais importante do que isso, o escritório de advogados no qual Eva trabalhava
seria a mola impulsionadora da sua carreira. Os contactos estavam feitos. Não
podia voltar atrás agora.
Tantos
sonhos e projectos que tinha. Quantas vezes se via em sonhos como secretário de
estado, depois como ministro, a seguir como primeiro ministro, até alcançar por
fim o lugar supremo de mais alto magistrado da nação.
Sonhava
ter uma biografia. Imaginara-a até com um capítulo cujo título seria “Madalena
dos olhos cor de algas”.
Porém,
quão longe estava agora de pensar em Madalena. O sucesso era a razão da sua
existência. Tinha que resolver o problema que tinha entre mãos, ou pelo menos
manter as aparências, custasse o que custasse. Só não sabia era como.
Muitos
quilómetros mais a sul alguém também não dormia ainda. Por muito que tentasse
acalmar-se, a verdade é que os acontecimentos recentes continuavam a bailar-lhe
no pensamento, misturando-se ideias contraditórias a cada instante, que lhe
toldavam a razão.
Imagens
passadas desfilavam em catadupa à sua frente, alheias à sua vontade, que apenas
queria fechar os olhos e adormecer.
Até
que algo inusitado lhe apareceu. Alexandre, que nunca fraquejava, sentado no
chão com os cotovelos apoiados nos joelhos e a cabeça entre as mãos, pedia
desculpa. Alexandre, que nunca se enganava e raramente tinha dúvidas, admitia
ter errado.
A
princípio pensou que fosse o seu subconsciente a pregar-lhe uma partida. Não
negava que gostava de ter uma borracha com a qual pudesse apagar os últimos
meses da sua existência. Gostaria que a sua vida pudesse voltar a ser o que
era. Mas logo de seguida a raiva acumulada lhe fez ver que o tempo não volta
atrás e é preciso reagir às adversidades.
A
imagem parecia-lhe tão real que se levantou para se aproximar e responder-lhe.
Tão depressa como apareceu, assim se desvaneceu a imagem, deixando-a parada no
meio do quarto, na semi-obscuridade da aurora que já começava a entrar pelas
frestas da persiana.
O
frio da madrugada enregelou-a e despertou-lhe os sentidos. Estava acordada
agora. Meteu-se novamente na cama e ficou a olhar para o tecto sem saber muito bem
o que pensar.
Não
acreditava em espiritismo, nem em percepção extra sensorial nem nada desse tipo
de coisas. Mas a imagem pareceu-lhe tão real…
Tudo
isto fugia ao seu entendimento. Do pouco que sabia sobre estes fenómenos
parecia-lhe que este tipo de visões aconteciam sempre em castelos ou palácios
antigos e as pessoas que apareciam eram sempre mortos.
Nunca
imaginou que pudesse estar num hotel de luxo a “ver” e “ouvir” uma pessoa viva.
Inconscientemente conotava a religiosidade com algo do passado. Pelo menos
consigo foi assim, a sua prática religiosa restringiu-se às obrigações que lhe
impuseram enquanto criança. Esta mistura de passado com modernidade causava-lhe
agora espanto.
A
menos que…
E
se tivesse poderes dos quais nunca tinha suspeitado?
Fechou
os olhos e inspirou lentamente. Seria possível que conseguisse “falar” com
outras pessoas à distância, que conhecesse os seus pensamentos, que soubesse o
que iriam fazer a seguir?
Uma
ideia ainda mais absurda lhe ocorreu subitamente. Enquanto advogada o
cumprimento das leis sempre foi para si um imperativo. No entanto, contra todo
o princípio da racionalidade, fez, de forma consciente e de livre vontade, sexo
na via pública.
Porquê
não sabia ainda, mas ocorria-lhe agora que subconscientemente tinha noção da
sua impunidade, que nada de mal lhe poderia acontecer.
Seria
verdade? Só havia uma forma de descobrir: iria fazê-lo de novo. Em Coimbra iria
fazer sexo com Eduardo na Quinta das Lágrimas.
Capítulo IX
Pedro Miguel
Ferreira
Sexta-Feira, 7 de
Dezembro de 2012, 11:00h
Madalena
olhava incessantemente para o seu relógio de pulso. Os ponteiros indicavam que
eram onze da manhã em ponto. Tentava, em vão, concentrar-se nos diversos
processos que tinha em mãos mas sentia-se terrivelmente ansiosa. Na chegada ao
escritório, foi informada de que Eva tinha ido repentinamente de férias e por
período indeterminado. Ela sentiu um súbito aperto no estômago ao receber a
notícia. Tornava-se praticamente evidente que este interregno nas actividades
profissionais de Eva estaria relacionado com o seu casamento. A única dúvida
que restava a Madalena era se a sua patroa tinha descoberto que ela estava
directamente implicada nas traições cometidas pelo marido. Era essa a incerteza
que a deixava inquieta e receosa. Em simultâneo, sentia um estranho frémito de
alegria com a forte perspectiva de finalmente ter infligido um forte golpe no
orgulho da poderosa Eva Andrade Magalhães. Ela ainda tentou esclarecer o
assunto com o Alexandre mas ele não lhe tinha atendido a chamada.
Há
vários anos que as duas travavam uma espécie de guerra surda dentro da
sociedade de advogados. Ignoravam-se subtilmente e limitavam-se a ter conversas
de circunstância ou relacionadas com trabalho. A rivalidade datava da época em
que o pai de Eva ainda era vivo. O notável Dr. João Andrade Magalhães tinha
sido o patrono de Madalena no início da sua carreira. O período de estágio foi
penoso mas o empenho e rigor demonstrado pela jovem advogada permitiram-lhe
conquistar o respeito e admiração dos sócios fundadores. Nesse tempo, a Eva
também já trabalhava no escritório e evidenciava-se como uma jovem promessa no
universo do Direito Comercial. Porém, desde logo, se notou que não existia
empatia entre aquelas duas mulheres. Eram dois universos diametralmente opostos
que entravam em choque. A mãe da Madalena em jeito de brincadeira, costumava
dizer que os ricos já nasciam com cara de ricos. Era o caso de Eva. Talvez o
resultado genético de uma soma de gerações de uma família culta, influente e
abastada que nunca tinha sofrido as agruras do trabalho operário e da carência
dos bens mais essenciais. Desde sempre educada nos melhores colégios da cidade
do Porto, Eva exalava uma aura de beleza, requinte e altivez que o seu
berço de ouro lhe tinha proporcionado. A sua dicção evidenciava o sotaque
afectado das meninas da Foz e o seu círculo de amizades era extremamente
restrito. No campo oposto encontrava-se Madalena. Desde logo, os seus apelidos
familiares Silva Alves nunca poderiam ser comparados aos sonantes Andrade Magalhães.
Nascida e criada em Sobrado, uma vila situada nas proximidades de Valongo que
se situava nos antípodas sociais da Foz, tradicional área de residência da alta
burguesia portuense. Era a filha única de um casal modesto. O pai era
marceneiro e a mãe conciliava a vida doméstica com alguns trabalhos de costura
para a vizinhança. Com bastante trabalho e sacrifício, tinham-lhe proporcionado
a possibilidade de estudar com a esperança que a filha viesse a ter uma vida
mais confortável.
Com
o passar dos anos foi isso mesmo que acabou por acontecer. Madalena foi subindo
gradualmente de posição no seio da sociedade de advogados, mérito do seu
trabalho e competência. Comprou um bonito apartamento perto do Marquês,
conduzia o seu exclusivo automóvel Lexus, começou a ter cuidados redobrados com
a sua imagem e passou a frequentar os restaurantes e bares da moda. Nem por
isso a atitude de Eva em relação a ela tinha mudado. Mantinham um
relacionamento frio e distante. A sua patroa nunca deixaria de a encarar como
uma parola da aldeia que tinha conseguido ascender alguns degraus na escala
social. Era tudo uma questão de pedigree.
No
entanto, o crescente grau de sofisticação de Madalena foi acompanhado de uma
ambição e ânsia de protagonismo ainda maiores. Perdeu alguns tiques
provincianos, ficou mais extrovertida e tornou-se uma mulher bastante sensual.
Gradualmente, também se foi apercebendo da cobiça e desejo que provocava nos
homens. Esta capacidade aliada às suas qualidades profissionais resultaria numa
mistura explosiva que lhe poderia proporcionar uma ascensão ainda mais
fulgurante. Madalena entrou num jogo perigoso que abalou profundamente a sua
moral e a sua educação familiar. O ponto de viragem ocorreu pouco tempo antes
do seu antigo patrono se aposentar e retirar do escritório. O eminente Dr.
Andrade Magalhães revelou que tinha tanto de perverso como de advogado
brilhante. Envolveram-se num escaldante relacionamento extra conjugal onde a
submissão e o masoquismo do velho patriarca foram levados ao extremo durante alguns
meses. Este caso serviu para cimentar em definitivo a posição de Madalena
dentro do escritório e foi a primeira alfinetada sigilosa no nariz empinado de
Eva.
A
retrospectiva mental dos últimos anos de vida de Madalena foi interrompida
subitamente pelo toque do seu telemóvel. Ela estremeceu e olhou algo
contrariada para o visor do telefone pousado em cima da secretária. Número
confidencial. Só poderia ser ele.
-
Estou? – Atendeu em voz baixa.
-
Olá Madalena. Cumpriu o combinado? – Interrogou o homem do outro lado da linha.
-
Sim. O trabalho está feito…
-
Muito bem. Preciso que me entregue isso ainda hoje. Vá-se encontrar comigo no
Motel Portofino que fica paralelo à Via Norte, uma das saídas da cidade. Nove e
meia da noite. Estarei na suite 303. Tem garagem para dois carros. Por favor,
não se atrase.
-
Lá estarei… - respondeu Madalena, numa voz trémula. Sentiu as mãos a suar.
-
Certo. Até logo, Madalena.
-
Até logo, Rogério.
Sexta-Feira, 7 de
Dezembro de 2012, 21:25h
Nem
mesmo os suaves ritmos musicais dos Mazzy
Star que ecoavam no rádio do carro de
Madalena lhe conseguiram serenar o sistema nervoso. Rogério, aquele homem
misterioso, de proveniência obscura e que lhe tinha proposto um perigoso
desafio tinha a estranha capacidade de a deixar extremamente agitada. Ao chegar
na portaria do motel, foi notificada que o hóspede já estaria à sua espera.
Entrou em baixa velocidade na garagem, estacionou a viatura e subiu o pequeno
lanço de escadas que dava acesso à suite. Rogério, estava sentado num sofá
colocado no canto do quarto e manuseava um computador portátil pousado em cima
das pernas. Um homem alto, corpulento, de cabelo desalinhado e rosto seco e bem
barbeado. Desviou lentamente o olhar do monitor e franziu o sobrolho ao ver
Madalena entrar.
-
Boa noite Madalena. Tudo bem consigo? – Saudou, levantando-se do sofá para a
cumprimentar.
-
Tudo bem. Agora vocês também marcam encontros em motéis? – Perguntou ela, com
alguma desconfiança na voz.
-
Estou cansado de encontros em cafés e restaurantes de terceira categoria. Estes
locais têm os requisitos perfeitos em termos de confidencialidade. O que serve
para dar umas escapadelas conjugais também servirá para outros assuntos mais
sérios, não é verdade? – Ripostou, com ironia na voz – Mas não vamos perder
tempo com essas discussões. Trouxe o que lhe pedi?
-
Aqui tem – disse ela, ao entregar-lhe uma pequeníssima câmara de filmar.
-
Óptimo!
Rogério,
apressou-se a ligar a câmara ao seu computador portátil. Teclou durante breves
segundos e depois ficou a observar o monitor atentamente. Esboçou um sorriso
cruel quando viu as primeiras imagens.
-
Está cumprida a minha parte do acordo? - Perguntou Madalena já impaciente.
-
Realizou um excelente trabalho. Isto é um filme digno de um Óscar da
pornografia. E tenho a dizer-lhe que o seu desempenho foi estupendo. Na
segunda-feira, irá receber a segunda parcela do pagamento que lhe prometemos.
Temos aqui o necessário para arrasar com a vida do seu amigo Alexandre.
-
Não estou propriamente eufórica com isso. De qualquer modo, aceitei a missão e
quero-me afastar deste caso o mais rapidamente possível. No entanto, ainda
gostaria de saber como chegaram até mim…
-
Foi muito fácil – Rogério insistia num tom irónico – O já falecido Dr. Andrade
Magalhães era um homem importante e como tal, foi sempre acompanhado de perto
pelo nosso serviço. Quando ficou mais velho tornou-se mais descuidado com os
seus devaneios sexuais e descobrimos que a Madalena tinha tido um caso com ele.
A partir desse momento, tornou-se a mulher ideal para este trabalho devido à
sua proximidade com uma família tão ilustre.
-
Entendo o vosso interesse no Dr. Andrade Magalhães. Mas em relação ao Alexandre
não consigo compreender as vossas intenções.
-
O problema desse sujeito é que gosta de se colocar em bicos de pés. Quem é esse
homem, afinal de contas? – Atirou, fazendo um gesto teatral – Apenas um tipo
bem parecido que conseguiu dar o golpe do baú ao casar com a filha de um dos
advogados mais bem cotados do país. Tirou um curso de Gestão à pressão na Lusíada.
Sim, porque ficaria mal à Dra. Eva casar com um gajo sem canudo. Depois do
casamento e com o alto patrocínio do sogro, abriu aquele stand de automóveis
topo de gama usados para se entreter e pouco depois meteu-se na política. E é
aí que começam os problemas. Chegou ao cargo de vereador na Câmara do Porto mas
agora quer voos mais altos. Pretende ser cabeça de lista nas próximas eleições
autárquicas e está a pôr em causa toda a estratégia de coligações delineada
pelos partidos do Governo. Alguns ministros estão a ficar seriamente irritados
com ele.
-
E vocês fazem os recados que os políticos vos ordenam …
-
Minha querida, o que é que você pensa que fazem as secretas deste país falido?
Acha que andamos a perseguir fundamentalistas islâmicos ou a fomentar golpes de
estado em África? Não se iluda - acrescentou ele, recostando-se no sofá.
-
Realmente não é uma matéria que suscite o meu interesse.
-
Já é tarde. Deixemos o trabalho de parte. Venha para perto de mim… - disse
Rogério, enquanto abria o fecho das calças.
-
Desculpe, mas isso não faz parte do nosso acordo… - gaguejou Madalena.
-
Tem algum contrato escrito? Quer-se queixar ao sindicato dos agentes secretos?
O que lhe pagámos dá direito a isto e muito mais – disse ele, num tom jocoso -
Vá, deixe-se de merdas e faça uso dos seus talentos.
Capítulo X
José Bessa
Rasos
de água tinham sido os olhos de Madalena quase sempre, toda a vida, mesmo
quando fazia mal. Embora lhe soubesse bem uma certa vingança, incomodava-a,
havia como que um remorso na sua existência, quase como que uma culpa cada vez
que arquitectava mais uma investida. Mesmo agora, e era um caso pessoal,
sabia-lhe fisicamente bem a traição mas não a desfrutava em pleno, estava
sempre à escuta, sempre fora dela mesmo com o Alexandre dentro de si. Vivia
como sua censurada espectadora.
Quando
em criança o dr. Andrade de Magalhães, o João, como a mãe o tratava, ou o, o
senhor doutor, como a obrigava a dizer, lhe dava dois beijos à entrada de casa,
subia dentro dela um queimor de vingança, um tremor febril que ainda hoje sente
«e a Evinha, não veio?».
Na
pequena sala de estar do apartamento, seu quarto também, enquanto esperava que
a mãe e o senhor doutor conversassem sobre o problema a resolver, rangia os
dentes a compasso com o gemer da cama e o sussurro do «cala-te que a catraia
vai contar». O esgar nojento no sorriso esbeiçado de despedida dava-lhe
vómitos, «até depois menina…» dizia passando a mão suada pela sua face corada.
«A Evinha para a próxima, vem?» Era nessa altura que lhe saltavam as lágrimas,
que tremia descontroladamente e ansiava que alguém morresse para que tudo
aquilo acabasse. Assim que a mãe aparecia, já de quarto arrumado, ela fugia
para a rua e a mãe, comprometida, não a chamava, deixava-a andar lá fora até à
noitinha. Quando o pai chegava, sempre tarde, e ela não sabia o que mentir para
justificar os olhos vermelhos, dava-lhe um beijo entrava com ele e escondia-se
cozinha adentro disfarçando ajudas.
Muitas
vezes se questionou se o pai desconfiava. Sabia que o doutor tinha sido sócio
do pai em África quando recém-casados foram tentar a sorte, sabia que as coisas
tinham corrido mal e que a mãe ainda tinha lá ficado doente mais dez meses,
sabia das obrigações financeiras para com o doutor ainda desses tempos, mas,
sabia que não sabia nada em concreto, que lhe escondiam muita coisa. Não
poderiam contar?
A
verdade é que o doutor tinha sido sempre uma presença assídua e, embora o pai
não o olhasse nos olhos não pareciam disfarçar inimizades. Quando, depois de
muita insistência, vinha com a Evinha, iam dar um passeio pelo monte e no
regresso estava sempre combinado um lanche no restaurante do pai. Eva não
gostava de entrar, sentava-se numa mesa debaixo da ramada e olhava com
desconfiança para o ambiente interior. O restaurante, como lhe chamava Madalena
era mais um modesto tasco onde se serviam umas iscas e se bebiam uns copos de
vinho, onde raramente se via uma mulher, onde nunca entrava uma criança. Ponto
de encontro de marceneiros ex colegas do pai, e operários da Companhia. Era
também, por vezes, local de zaragatas e as mulheres da zona atravessavam sempre
a rua para não lhe passarem à porta.
Com
o passar dos anos Eva deixou de ir a casa do Alves «paizinho, não quero ir, não
gosto daquela gente.». O doutor anuiu. «se não queres ir, não vais; também não
são ambientes para ti» disse aliviado do compromisso. Em Sobrado, onde nem
tinha de dar explicações, justificou a ausência da Evinha com os compromissos
de estudo. Assunto arrumado.
Madalena
e Eva estudaram, cada uma no seu ambiente até que se reencontraram numa certa
queima das fitas, uma, quartanista a outra, caloira. Após a serenata o dr.
Andrade Magalhães, que ainda dedilhava umas guitarradas, fez questão que lhe
tirassem uma fotografia entre as duas com os braços rodeando-lhes o pescoço
como se de duas filhas se tratassem.
A
partir daí, numa omnipresença doentia. Começou a convida-la para jantar, a
oferecer-lhe boleias limitando-lhe os contactos com colegas, a dar-lhe dinheiro
para perfumes e cigarros, a ajudar na renda do quarto, a pagar água e luz, a
emprestar-lhe livros, a convida-la para saídas, até que um dia, após uma noite
de discoteca mais bebida a levou para a sua casa da Aguda e, quando acordou,
Madalena já não sentia culpa, já não sentia raiva, já não sentia remorso.
Madalena tinha perdido a dignidade, tantas vezes despojada por ele a partir
daí.
Tarde
naquela manhã, sozinha, estava como agora, nesta tarde ausente.
Rogério
deixou-a à porta após o almoço e disse-lhe lá do alto, «agora juizinho a
aguarda ordens».
Madalena
entrou em casa, bateu com a porta, largou a carteira, atirou as chaves,
arrancou os sapatos, acendeu um cigarro, abriu uma janela, aspirou fundo e,
estonteada caiu num choro convulso que a sufocou quase ao desmaio. Era uma
perdida.
Quando
recuperou algum ser olhou em volta, o seu apartamento estava frio de penumbra,
o último Sol escoava-se pela janela poente. Levantou-se para ver o mar. O mar
era a sua calma de sempre, mesmo quando cuspia a sua ira nas rochas a
tranquilizava. Dali, era um mar lá longe, dali, era um reflexo no horizonte sem
fim, mas estava lá e ela sentia-o cá.
Olhou
a rua e o que via do seu décimo andar foi uma amálgama de irrealidade numa
fenda. Abismo de vertigem. Luzes tremeluzentes, penumbras deslizantes,
sussurros, apitos, alguém que esbraceja, um autocarro que desce chorando metais
numa lamúria estridente e ela, como que duma nuvem, como que ausente daquele
Mundo vivo, olha a cicatriz urbana, que mexe apesar de tudo, que vive apesar de
tudo. E ela, no seu limbo de juizinho, aguarda ordens.
Voltou-se,
sentou-se no peitoril da janela, acendeu um cigarro inclinou-se para trás e «Que
consegui na vida?, um curso?, um carro?, um apartamento?, umas férias aqui ou
acolá?, uma independência dependente?, o respeito deste ou daquele pela roupa
que visto? Quem sou eu afinal, que tanto me esforcei para ser alguém, e não
consigo ser ninguém. Ando a saltar de cama em cama de vingançazinha em
vingançazinha, quando sei que não a posso destruir.»
Veio-lhe
à memória a mãe «somos duas amantes, mãe…», o pai «morreremos sem ter onde cair
de mortos sr. Alves?», o meio-irmão «seu merdas!, se me ajudasses!», atirou o
cigarro para o abismo e preparou-se para sair «talvez um copo, é isso, talvez
um copo…».
O
telefone tocou, Madalena ainda desambientada de tudo procurou o telemóvel, na
insistência do toque fitou o telefone fixo «esta agora!, o fixo?!», saltou
sobre o sofá e o toque parou «tarde de mais…», puxou a chamada e era de
Coimbra.
Sentiu
uma serenidade perigosa, uma vontade indomável de dar a volta a tudo, custasse
o que custasse. Ela sairia por cima. «Que me quererá o parvo?, ás tantas mais
dinheiro, vem-me sempre com latins, sempre muito mansinho. Que me interessa um
meio-irmão que conheci adulta e por coincidência? Uma mentira familiar torpe,
uma baixeza que me fizeram. As suas indecisões só me servem de estorvo, sempre
que lhe peço alguma coisa hesita, está sempre doente, raramente me serve para
alguma coisa, um estorvo é o que ele é, um estorvo.»
-
Estou? Eduardo? Que ideia é essa agora de me telefonares para o fixo?
Capítulo XI
Luísa Vaz Tavares
-
Tira-me daqui Madalena. Preciso de sair daqui!
-
O que é que te deu agora? Da última vez que te dignaste falar comigo estavas aí
como se estivesses num resort nas
Bahamas.
Eram
sempre assim, as conversas entre os dois meios-irmãos Eduardo e Madalena. Uma
espécie de amor\ódio que os impedia de ter um relacionamento pacífico e ao
mesmo tempo os aproximava mutuamente. No início, quando se conheceram, até
tinha crescido uma verdadeira amizade de irmãos mas depois tudo se desmoronou.
Quando,
no seu leito de morte, o pai a mandara chamar, Madalena chegou a pensar numa
possível fortuna secreta que a ascenderia ao topo da escalada social onde
trepava os primeiros degraus, mas não, o pai queria apenas expiar os pecados.
Como uma redenção visando um lugar no céu, talvez. Assim, à queima-roupa, tinha
lançado a bomba ali mesmo na enfermaria do hospital. A traição e a consequente
existência daquele meio-irmão, três anos mais novo. << a tua mãe preferiu
ficar em áfrica, para se curar da doença, e um homem sente-se sozinho, sabes
como é filha… >> Não, não sabia! Era uma justificação tão torpe como
todas as outras que já se tinha habituado a ouvir de todos os homens. Afinal o
pai tinha feito o mesmo que os outros. O mundo era, todo ele, uma teia de
mentiras e traições.
Mas
Eduardo parecia diferente. Foi diferente. Foi um estranha-se depois
entranha-se. Eduardo começou a admirar a irmã sofisticada e determinada que lhe
tinha calhado em sorte e Madalena também passou a gostar cada vez mais daquele
rapaz inteligente e altruísta, recém-licenciado, que se preparava para a sua
primeira missão em áfrica. Conheceram-se devagar, durante os períodos em que
Eduardo permanecia em Portugal e dava aulas de latim na faculdade de letras da
universidade de Coimbra. Madalena pensou ter encontrado uma alma gémea, alguém
que a apoiava e a quem se podia mostrar sem artefactos. Até que Eduardo começou
a censurar o seu estilo de vida, e depois, depois tudo se desmoronou quando ele
regressou da sua última missão, absolutamente enlouquecido.
Ainda
assim, é Madalena que é chamada de cada vez que Eduardo tem mais um surto
psicótico e é internado no psiquiátrico. Como única parente conhecida.
Aguardava-a,
impaciente, sentado na pontinha da cama branca do quarto imaculadamente branco.
Depois da conversa com Madalena, Eduardo tinha-se barbeado e vestido com a
melhor roupa do seu espólio, tinha feito a mala e esperava pelo toque na porta
que o devolveria à liberdade. Madalena não o tinha dito mas era sempre assim,
ela vinha sempre. Quase se sobressaltou quando a enfermeira o interpelou
pronunciando o seu nome com voz clara.
-
Sim, senhora enfermeira.
-
A sua irmã veio buscá-lo, Dr. Eduardo.
-
Agora vê se tomas a medicação que eu tenho mais que fazer do que andar a viajar
do Porto até aqui para assinar termos de responsabilidade. – Madalena seguia a
enfermeira e como que cumprindo um ritual a que já estava habituada, pegou na
mala que entregou a Eduardo indiciando que não tinha tempo a perder.
Lado
a lado, os dois percorreram o corredor sem que algum pronunciasse uma só
palavra. Estavam absortos em pensamentos dos passos que iriam dar a seguir.
Eduardo ansiava embrenhar-se nas ruas históricas da sua velha cidade. Se
Madalena lhe perguntasse onde ia ou porque ia de certeza não lhe saberia
responder, era um apelo inexplicável pelos cheiros, pelas cores, pelos sons, da
cidade que era a sua casa. E Madalena desejosa de voltar ao seu Porto de abrigo.
Despediram-se com um beijo rápido.
Madalena
entra no carro, mira-se no espelho retrovisor e, antes de dar à chave para
arrancar, liga o telemóvel que tinha desligado antes da conversa com a
enfermeira. Tinha duas chamadas não atendidas e um SMS, de Alexandre. <<
Onde andas? Preciso ver-te, estou em tua casa >>. Já nem se lembrava que
lhe tinha dado uma chave, era a primeira vez que ele a utilizava, e naquele
momento sentiu-se invadida no seu espaço interior, como se todo o seu Eu,
tivesse sido devassado durante a vida inteira. << Estou em Coimbra, volto
amanhã >>, uma resposta quase instintiva com sabor a liberdade. Nem que
fosse apenas por uma noite, ia ser ela. Sem os esquemas, sem as desconfianças,
sem os subterfúgios de uma vida semi-oculta. Eduardo teria de lhe dar guarida
no seu velho apartamento.
Na
entrada sul, Eva chegava à sua Atenas portuguesa. Tinha partido sem planear
nenhum rumo. A ida para Troia tinha sido um erro. As inquietações tinham
viajado com ela, as dúvidas, as incertezas, os sentimentos, tinham ido na sua
bagagem. Por isso, tinha fechado a conta no hotel e tinha iniciado o caminho de
volta para casa. Sem saber ainda o que fazer, ia ao sabor de cada momento,
pernoitando pelo caminho se lhe apetecesse. E ao vislumbrar Coimbra apeteceu-lhe.
Coimbra era, para ela, uma cidade de encantos. Primeiro, tinham sido os quatro
anos de uma vida académica intensa enquanto frequentava a faculdade de direito
e depois os meses tórridos de paixão com Eduardo.
Eduardo
tinha sido o seu caso extra-conjugal. Numa das noites em que Alexandre saíra
para mais uma das prolongadas reuniões do partido, Eva, enraivecida, entrou num
desses chats da internet que vendem sedução ao desbarato e Eduardo foi a
surpresa. Uma conversa interessante e inteligente foi apenas o primeiro passo
de uma cumplicidade sem limites e sem tempo. Das conversas íntimas pela noite
dentro até aos passeios românticos na quinta das lágrimas foi um instante. As
cenas de sexo desenfreado testemunhadas pelas pedras rubras da fonte dos
amores, as tentativas vãs de disfarce perante os transeuntes, as fantasias onde
o limite era a dor, foram uma espiral de emoções que deixou como marca a
confiança de uma intimidade, gravada na sala dos poetas do penedo da saudade.
Antes
da partida de Eduardo para mais uma missão, despediam-se, sob a melancolia do
sol mortazino de um final de tarde, quando Eva se lembrou de gravar aquelas
últimas palavras.
“Apenas um instante, é
o que nos separa”.
Eduardo
voltou-se devagar. Girando sobre o seu próprio corpo, encarou Eva
-…
um instante que já passou.
Capítulo XII
Casimiro
Teixeira
Ninguém
sabe ao certo como eu vivia. - Afirmava Madalena - Ninguém faz a mais pálida
ideia. A cor aquosa dos meus olhos não pertence a ninguém, nem nunca pertenceu.
Na verdade, ninguém poderá saber jamais, com a precisão de um ourives, o exacto
calibre e densidade de luz com que estes olhos se referem numa unidade de
medida. É tudo uma treta infinita! Uma treta absurda e perpetuada por quem mais
se interessa pela forma côncava e dura das minhas mamas ou pelo buraco sedoso e
húmido, da parte de trás da minha coxa, do que por mim propriamente. Sou carne,
e a carne não tem olhos. É, portanto, com um refrescante sentimento de
satisfação exausta, que experimento a sensação de ser útil e tão desprotegida
ao mesmo tempo.
-
Podes foder-me amanhã, em vez de ser hoje? – Pergunto-lhes. – É que hoje
sinto-me demasiado vulnerável cá dentro, tenho o corpo apenas, e mais nada
percebes? – De facto nunca ninguém me respondeu quando assim lhes remetia a
questão. Ficavam silenciosos por momentos, e fodiam-me na mesma.
Essa
pergunta não tem de facto nenhuma resposta concreta. Como se eu existisse para
ser fodida, ponto final. Sem perguntas desnecessárias à prática fugaz do coito
ocasional que eles tanto procuravam.
Sim.
Poderia afirmar aqui e agora que, em algum lugar esquecido do tempo inteiro da
minha vida, eu me vendi, para conseguir coisas. Coisas, e não emoções, nunca
emoções. Fui uma puta! Poderia afirma-lo aqui e agora, e isto seria
provavelmente verdade. Eles deram-me boas somas de dinheiro, todos eles me
deram, de uma ou outra forma. E depois do sexo, a vida já não me parecia assim
tão cara, como me parecera antes. Na realidade, eu nem tenho casa própria, nem
carro próprio, nem um emprego, nem uma vida minha sequer, mas os meus olhos, os
meus olhos voltavam a ser feitos de algas, por breves instantes, nesse
entretanto entre a pergunta inútil e a resposta que nunca chegava. Os meus
olhos ainda eram meus nesse curto interlúdio, apesar de nem já habitarem neste
corpo. Sim, eu fui uma puta, mas, isso acabou agora.
Era
o mínimo. A vida é mais uma questão de despesa do que de ganho. É preciso saber
com quanto se quer viver. Aprendi a viver como que num desespero sorridente.
Sem saída, mas uma vida ainda assim, que exercia sem cessar um domínio que eu
sabia ser útil. O essencial: não nos perdermos para sempre, e não perder,
nunca, aquilo que, de nós, dorme no mundo. Eu andava cansada de tudo. Dormia
mal havia cinco noites e a minha paciência para os sussurros bacocos que
ecoavam soltos pelos corredores da firma, era mais do que pouca. Eva sabia de
tudo. Sabia que eu fodia em intervalos regulares com o seu marido, que eu
fodia-o para conseguir...para conseguir o quê? – Já nem sei. Só queria que ela
entendesse.
Naquela
manhã deplorável trouxe o Eduardo comigo para o Porto. Era o meu único bálsamo
de humanidade. O meu derradeiro bastião. Fingia chantageá-lo com birras e ele
vinha comigo. Fingia ignorar os seus pedidos e ele vinha. Vinha como um
cachorrinho bem amestrado. – Pois. Eu bem sei. Ainda me resta muita maldade
entranhada cá dentro, uns restos que ficaram cá dentro, sem eu saber. Ando a
aprender lentamente a limpar-me por dentro. O Eduardo ajuda-me nesta purga e
eu, em troca, ajudo-o a sacudir-se de toda aquela loucura. Não devia ter cedido
àquele porco do Rogério. Pulha! Grande pulha de merda. Enfim, agora já está.
Será uma lição que o Alexandre não irá esquecer tão cedo. O primeiro golpe está
dado, a partir de agora será quase impossível parar este processo. “audaces fortuna adiuvat” diz-me o
Eduardo.
–
A sorte favorece os audazes! Espero que sim. Pedi-lhe que não me massacrasse
com as suas atrozes lições de piano, mas ele não me quis dar ouvidos e o pior é
que tem razão. O Eduardo tem sempre razão.
Minha
querida Madalena. O teu íntimo tem a sua grandeza e como tu encantas por
demais. Gostas do que é desimportante, como os insectos ou o pó da memória das
coisas. Gostas também das gentes desimportantes, as despessoas, como lhes
chamas. Sonhas com a conquista de uma vida mais simples. Entanto, no
escritório, ouves as descrições de corredores enormes, de carros grandes, de
férias intermináveis, de vidas sem fim, esvazias esse olhar daquilo que te
rodeia, imaginas estas paredes caiadas, e enche-las com o brilho que consegues
trazer dos seus sonhos. Minha querida irmã. Agora, ao lembrar-me de ti, tenho
uma espécie de sorriso brando, parecido com o sorriso que tu própria trazes
nesses momentos.
A
minha irmã mora no alto de uma Praça, na continuação jusante do corredor de
prédios impossíveis de serem habitados por despessoas, mas daqui, consegue ver
uma boa parte da cidade, os campos ao longe, o mar mais distante, contudo, a
menor distância que não consegue ver sem ajuda, chega apenas até ao seu próprio
coração, poucas dezenas de centímetros mais abaixo. Em algum momento do
passado, Madalena foi uma menina, filha única e delicada, estimada pelos pais;
mas, quando a conheci, já era uma mulher feita de uma dureza de carnes e de
dores, que homem algum conseguirá perfurar. Ela precisa de mim.
Há
um lugar aqui na sua casa, uma espécie de câmara clara - a câmara do tempo – é
assim que ela lhe chama, mobilada com vagos móveis, onde ela está sempre mesmo
quando nem está em casa, e onde tem, precocemente, um rosto de uma qualquer
heroína de novo-romance, destituída de qualquer significado como de presença.
Nesta sala é um fantasma que já nem corpo possui para ser reflectido no espelho
colocado à sua frente. Recordo-me que Madalena montou este nicho no fim do
apartamento, porque sentiu necessidade de se refletir em espelhos, para ter a
certeza de que não estava dissolvida num nada. - Minha pobre irmã! - Não sabes
que és tudo para mim? Trouxeste-me de volta da loucura e não o esquecerei,
nunca.
Numa
parede adjacente, encostado ao canto, encontra-se um piano que eu faço questão
de tocar sempre que aqui venho. Raramente o faço e este instrumento tornou-se o
meu Santo Graal. Todos me julgam louco ainda, só porque eu me atrevo a apontar
o dedo a alguns que se dizem sãos. Mas não sou louco por isso. Sou louco porque
tinha de o ser já. Não serão mais loucos os que se resignam a acharem-se sãos?
– Não sei. Sei sim, que aquele seu piano nunca me julga, mesmo quando eu lhe
envieso as notas perfeitas. A minha irmã também não, eu sei que não. Nunca
mais.
O
seu piano é todo preto, menos a conta certa de teclas brancas necessárias, e,
ao centro as letras Steinway & Sons
que sobressaem a dourado. Ainda nessa mesma parede, ao lado do piano, fica um
móvel alto que, à primeira vista, parece ser de mogno, mas que, depois de
observado com maior atenção, se conclui ser de nogueira muito escura. O móvel
tem um tampo de mármore rosa, tingido de laivos brancos, que o divide em parte
de baixo e parte de cima. Na parte de baixo: três gavetas e três portas, na
parte de cima: duas prateleiras onde Madalena dispôs os mais importantes
objectos da sua vida inteira: o seu diploma, emoldurado numa dúbia talha de
oiro raspado, a boneca de trapos que a mãe lhe coseu de prenda aos cinco anos,
um pisa-papéis mirabolante de cores, o retábulo de todos os santos possíveis a
adorarem o menino, esculpido a golpes determinados de cinzel e formão pelo seu
pai numa só peça inteiriça de carvalho, um par de óculos de fundo verde e baço,
uma partitura do "Pedro e o Lobo" Opus 67 do Prokofiev, e uma moldura
espaventosa que albergava uma fotografia de si mesma amarrada firme num abraço
desprendido ao Dr. Andrade Magalhães, o pai da minha Eva.
Quando
vi esta fotografia, foi quando juntei todos os pontos esparsos desta tragédia
de merda que se chama a nossa vida.
Os
raios violentíssimos dos últimos dias de Agosto, filtrados pelas cortinas de
algodão espesso enchiam a divisão de uma luz martirizante que encruecia os
olhos e a alma. Sentei-me em frente ao piano, endireitei as costas e toquei o Opus 67
do Prokofiev, o seu preferido. Senti
que, em cada nota maravilhosa que eu acertava, se dissolviam todos os pequenos
ódios insignificantes que nos afastaram estes longos anos. - Minha pobre e
querida irmã, como eu te quero tanto.
Recordo-me
também vagamente da presença do nosso pai, um patético saco testicular de
ténues tentações, que não resistiu à vulgaridade e traiu a tua mãe, o triste
miserável. Detesto todos aqueles que alguma vez te fizeram brotar uma só
lágrima desses teus olhos maravilhosos. Por isso detesto também o teu falso
segundo pai, aquele falso filho-da-puta do Dr. Andrade Magalhães, que se tornou
pai de nós todos, ainda que verdadeiro, só o tenha sido para a Eva. Ela
contou-me tudo Madalena, sabias? Tudo. Como em cada ano da sua infância, o foi
descobrindo, e em como o florir das raparigas que lhe passavam pelos braços só
tinham uma estação. No ano seguinte, eram substituídas por outros rostos de
flores que, na estação anterior ainda eram meras garotas. E depois, por um mero
acaso, eu fodi-lhe a filha verdadeira e ele, cabrão vingativo, seduziu-te a ti.
É esta linha sanguínea de prazer que nos une agora. É nesta linha que reside
toda a tragédia desta pequena história.
E
para este homem, de cuja vil semente germinou a única mulher que a minha louca
pila arrombou, para este homem que as contemplava, não passavam todas de vagas
anuais cujo peso e esplendor se derramava efémero sobre a sua cama. – Como tu
também foste, minha pobre, pobre irmã! Minha infeliz, ingénua irmã, desgraçadamente
devassada pelo próprio homem que pôs neste mundo quem tu mais odeias! Pobre,
pobre irmã.
Sabes,
ainda ontem, ou terá sido há mais tempo? Já nem importa. Feito escritor,
apresentei um romance meu, o primeiro, numa espécie de livraria, onde se oferece
café, numa pequena rua da minha querida Coimbra. Sabes qual é? Sentado num
banco de pé alto, para uma dúzia de mulheres com mais de sessenta anos, li
excertos que nunca antes havia lido alto e, como se falasse apenas do romance,
falei das ruas desta terra onde nasci e das pessoas com quem vivi. Falei de ti
Madalena, a mulheres de cabelo pintado, com blusas em tons pastel, à dona da
livraria, a um par de curiosos que entraram ao abrigo do frio e pelo cheiro
acolhedor dos livros. Enquanto falava, sentia que me olhavam com um sorriso
adormecido, como se estivessem congeladas noutro pensamento. A excepção era uma
mulher de pescoço esticado para a frente, fato de treino cor de rosa, e um
colar que destoava e que gritava alto não ser de fancaria, que sorria quando eu
olhava na sua direcção. Era cedo, três e tal da tarde, disso lembro-me bem. Lá
fora, havia um sol tímido e um tempo parado, uma estrada sem movimento, a
avenida principal. Antes de terminar, li um excerto sobre sexo. Do único sexo
que conheci. As velhas gostaram. Várias mulheres compraram o romance, dezasseis
euros, e pediram-me para escrever o nome. A mulher do fato de treino cor de
rosa esperou pelo fim. Estendeu-me o livro de maneira diferente, conhecia-me
bem, e eu a ela.
-
Eva! Foi só um instante. Meu Deus, um fugaz instante! E agora estás aqui. Não
vieste quando me disseste, mas sempre vieste afinal.
-
Sim, estou aqui. Foi um instante, mas um instante que deu fruto meu querido.
Estou grávida, Eduardo.
-
A sério? Tens a certeza? Isso é maravilhoso!
-
Pois é.
-
Mas, tens mesmo a certeza?
-
Tenho, Eduardo, não sejas cansativo.
-
Mas...estás aqui, agora, a dizer-me isso. E nós... nós... Já se passaram tantos
anos. Não posso...Tenho de te perguntar. O filho é meu?
-
Pois de quem haveria de ser, minha louca cavalgadura? Estás a insinuar que te
meti os cornos alguma vez? Tu és o amor da minha vida.
-
Merda Eva! Podes-me chamar-me de louco se quiseres, mas não me tomes por
estúpido por favor. É uma pergunta mais que pertinente, não achas? Já se
passaram anos e anos. É biologicamente impossível. Além do mais, tu és casada
certo? O teu marido chama-se Alexandre não é verdade?
-
Ora, ora meu querido. Esse boneco do Alexandre nunca deixou nenhum bichinho no
meu útero. Ele usa camisinha sempre, tanto comigo, como com todas as outras com
quem fode. Usa camisinha com a tua irmã, eu imagino, para não deixar um rasto
permanente que lhe estrague os projectos políticos. Não o negues. Eu sei que
ele e a...esqueçamos isso agora. Eduardo, esta criança tem de ser tua meu querido,
mesmo que nem tenhas sido tu a gerá-la, tem de ser tua. Se alguma vez me amaste
não me recuses isto, por favor.
O
piano agora, parece até tocar sozinho, e nenhuma nota é mais ou menos falha que
a anterior. Pareces tão feliz ai sentada a ouvir-me, e eu, eu nem me atrevo a
perturbar-te o sorriso com estas notícias minha irmã. Como te poderei dizer que
irei ser pai de uma criança que, sem saberes tu já odeias?
Capítulo XIII
Carolina Lemos
Madalena
precisou de espairecer um pouco, continuava a sentir uma lama interior que lhe
toldava as entranhas. Lembrou-se de ir para a Foz um pouco, passear à
beira-mar, enquanto deixava Eduardo a descansar um pouco mais. Eduardo tinha
tido uma noite muito agitada, tendo Madalena que ir abaná-lo várias vezes e aconchegá-lo,
devido aos delírios constantes que habitavam a noite de Eduardo. Ainda por cima
ouviu várias vezes Eduardo repetir aquele nome…Aquele nome que desde criança
ouvia como a espada que comandava o seu destino… Eva! Eva! Eva!
Estava
um dia de chuva e vento forte, aquele vento agreste que trespassa a alma sem
piedade. Exactamente o que Madalena precisava para expiar toda aquela água suja
que sentia dentro de si. Sabia que não tinha tido muitas escolhas na vida,
sempre se sentiu levada por um fio qual marioneta na mão de todos os homens que
a usaram, sim, sentia-se usada. Mas será que não teria havido um dia em que podia
ter escolhido outro caminho?
Sentia-se
usada até pelo palerma do Alexandre, que se servia dela para se sentir mais
macho, mais viril. Podia ter sido diferente. Podia ter sido uma linda história
de amor, porque Madalena podia amá-lo, como podia ter amado outro homem
qualquer, desde que ele a olhasse fundo nos seus olhos cor de algas e tivesse
visto o mar infinito debaixo da cobertura ondulante das algas ao sabor da
corrente errante. Sim, uma errante, era assim que se sentia. Porra de vida. Ia
ser sempre assim?
Depois
de Alexandre iria encontrar outro homem para outro jogo de quem usa mais quem?
Sim, porque Alexandre era já um xeque-mate à vista, depois de ter entregue todo
o material a Rogério.
Ai
o dinheiro, a bela sedução do dinheiro. Mas será no que no fundo aceitou todo
aquele negócio com Rogério só por dinheiro? Ou também para mostrar a Alexandre
que ele não era o homem mais poderoso do mundo como ele gostava de sentir que
era, tanto na cama, como nas reuniões políticas onde se sentia o deus do poder?
Madalena
pensava nisto tudo enquanto caminhava por aquele passeio, bem perto da borda,
separando-a do abismo do mar apenas o equilíbrio ténue que Madalena ainda tinha
dentro de si. O vento continuava a soprar, qual tornado sem fim, bem forte, bem
cortante, qual assassino de emoções.
Na
outra ponta da cidade, Alexandre conduzia furiosamente pelas ruas do Porto.
Sentia-se numa roleta, sem saber a qual número ia parar. Até há poucos dias,
sentia que tinha o mundo nas mãos, que era só uma questão de tempo para ter
tudo o que queria. Eva, Madalena, o poder político, que belo triunvirato de
adrenalina que lhe corria nas veias e no sémen, num jorrar de conquistas
sucessivas, tal como um general romano em campanha.
O
carro derrapava nas curvas. Alexandre nem olhava para o lado, atravessando um e
outro sinal vermelho sem contemplação. Aquele email. Aquele maldito email
que tinha visto ao acordar, no seu telemóvel, junto de Daniela, a secretária do
stand de automóveis, que sempre
cobiçara e com quem tinha mantido um flirt
que o excitava. Tinha-a encontrado por acaso ao pé de um bar onde tinha ido
relaxar um pouco depois de mais uma reunião intensa e com alguma crispação no
ar por parte dos seus opositores e para pensar um pouco no que fazer com o seu
casamento e com Madalena que não tinha dado mais sinais de vida. E tinha sido
mais uma noite em que Alexandre se sentira o dominador…até acordar com aquele email. Aquele maldito email. Como é que Madalena tinha sido
capaz?
Alexandre
sabia que era uma questão de horas até aquele email começar a surtir os seus efeitos. Aquele maldito email. Tinha visto os destinatários para
quem tinha sido enviado o email e
sabia que o seu mundo estava preso apenas pelo passar dos minutos e
horas…Bastava o ponteiro do relógio mover-se um pouco mais e o terramoto que
Alexandre nunca previra iria originar um tsunami de proporções gigantescas.
Aquele maldito email.
Madalena!
Como tinhas sido tu capaz de tamanha façanha? De tamanha traição! Traição,
ignóbil palavra que Alexandre tinha adicionado no vocabulário do casamento
perfeito. Perfeito até aquele dia, em que se tinha atirado para o emaranhado
dos olhos cor de algas de Madalena. Cor de algas…que curioso, nunca tinha
percebido qual era a cor verdadeira dos olhos daquela mulher que o consumira
num desejo sem fim.
E
só ali, em pleno excesso de velocidade, sem ouvir as buzinas dos outros carros,
é que tinha percebido que aquele brilho era de um verde-alga, passando pelo
vermelho-paixão que tingia algumas algas também. Alexandre sentia agora que se
tinha deixado cair num redemoinho de acontecimentos, do qual dificilmente
sairia sem grandes consequências. Traição, traição…era a palavra que Alexandre
repetia incessantemente enquanto carregava no acelerador um pouco mais. Eva,
como te pude trair assim?
Eva,
Eva…serás tu a minha única salvação? Será que me irás conseguir perdoar, será
que conseguiremos recuperar algo do que deixei afogar na luxúria?
Onde
estás tu Eva? Estarás ferida de morte, ou conseguirei de alguma maneira
trazer-te até mim de novo e juntos faremos desaparecer as cinzas que este
incêndio deixou?
E
o carro continuava a rolar sem destino pelas ruas molhadas de uma manhã fria
mas ao mesmo tempo escaldante na vida de Alexandre.
Oh
Eva! Oh Madalena…! Oohhhh…. e Alexandre tentou agarrar o volante com força e
reduzir a velocidade de modo a evitar o choque com aquele camião que tinha
aparecido de repente vindo daquela rua que Alexandre nem sabia que existia. Mas
o carro rodopiou no piso molhado pela chuva castigadora que parecia ser a mão
de um deus a lavar os pecados dos que caíram nas malhas das redes da tentação.
E
o carro topo de gama, último modelo da marca preferida de Alexandre, no seu
azul-escuro a lembrar o mar profundo, rodopiou mais um pouco, sem controle,
capotou e embateu a uma velocidade estonteante numa árvore, que deixou cair os
seus ramos, por cima daquele carro, feito jazigo de um destino sem freio. Da
fronte de Alexandre escorria um fio de sangue, assim como dos seus lábios e dos
seus órgãos internos feitos emaranhado depois de tal impacto. Ainda saia fumo
do motor quando o INEM chegou. Estará vivo? Perguntavam os transeuntes
curiosos. Não me parece, diziam os mais pessimistas. Já viste como o carro
ficou? Este já não se safa! Devia vir bêbado, mais um!- diziam outros.
Madalena
estacou o passo, e virou-se frente para o mar. Fechou os olhos e sentiu nesses
olhos cor de algas, o chamamento das marés impetuosas que batiam contra o
paredão. Sentiu os seus pés a quererem levantar do chão e os braços a quererem
abraçar o mar que continuava a chamá-la para um mergulho de redenção. E a minha
vida acaba assim? Envolta em marés? Mas assim acabava tudo e deixava de vez de
ser marioneta. Neste último acto da minha vida, seria eu a decidir o meu final.
Era tentador este chamamento libertador do mar. E Madalena inclinou-se mais para
a frente, sentido a força da gravidade a ganhar a luta com a sua vida…. Nesse
instante ouviu-se um grito vindo do outro lado do passeio….
Eduardo
acordou sobressaltado. Só se lembrava das palavras de Eva… - Grávida, estou
grávida… Seria verdade ou tudo apenas fruto da sua loucura?
Capítulo XIV
Luísa Vaz
Tavares
Um
impulso chamava-o para um qualquer lugar. Eduardo não sabia para onde ia mas
sabia que tinha que ir. Eva, Madalena, as duas gritavam pela sua ajuda, como se
fosse, ele, o salvador que tinha a vida de ambas nas mãos. As ruas que
desaguavam na foz encontravam-se absolutamente devastadas pela tempestade que
as assolara, tinha sido uma noite dos demónios. Talvez por isso, também, o seu
sono tivesse sido tão atormentado. Mas a verdade é que a ansiedade continuava,
apesar de já estar bem desperto. O bater das ondas latejava-lhe nas têmporas… e
Madalena…
-
Não!... Madalena, não faças isso!
Madalena
sobressaltou-se com o grito. Familiar e a tocar-lhe o coração. Só aquela voz
tinha a força para a despegar do apelo das marés. Hesitante, entre o magnetismo
do mar e o olhar de Eduardo, que naquele momento reflectia toda a inquietude da
cor incerta das algas, cambaleou para os braços do irmão. Querido Eduardo, tão
frágil e ao mesmo tempo tão forte, era a sua única tábua de salvação. Não lhe
fez perguntas, nem sequer lhe lançou um olhar recriminador, limitou-se a
abraça-la e a consumir-lhe as lágrimas. O que sendo tão pouco era tanto. Dos
olhares de soslaio, dos silêncios súbitos à sua passagem, estava ela farta.
Ninguém… ninguém tinha o direito de julgar os seus actos ou de questionar as
suas opções, quando era ela própria que se sentia uma perdida dentro de si
mesma. Se podia ter seguido por outros caminhos, claro que podia, mas a vida é
feita de escolhas e aquelas tinham sido as suas escolhas. Bem ou mal, a sua
vida era o destino do caminho que um dia havia escolhido. Mas, vendo bem, ainda
tinha muito caminho para percorrer. E o rumo poderia sempre ser alterado. Era
tudo tão mais claro, nos braços de Eduardo.
Indiferentes
a tudo o que se passava à volta, os dois deixavam fluir o seu entendimento
perfeito, quando o telemóvel de Eduardo saltou numa gritaria desesperada. Era
Eva. O que quereria ela àquela hora da manhã? Eduardo percebeu que apesar do
alívio por ter encontrado Madalena, a ansiedade que o tinha feito saltar da
cama em sobressalto continuava a corroer-lhe os sentidos. Desfez-se do abraço e
afastou-se para atender.
-
Eva, estás bem?
Do
outro lado, a voz de Eva soou aflita. Disléxica e confusa, pronunciava palavras
soltas que não davam para Eduardo entender exactamente o que se passava, só
percebeu que tinha acontecido algo de grave com Alexandre. Um acidente.
-
Eva, diz-me onde estás. Eu vou ter contigo.
Era
impossível a Madalena não ouvir a conversa do irmão, ainda para mais que à
medida que as palavras surgiam do outro lado da linha a inquietação emergia em
todo o seu corpo. Assim, quando Eduardo desligou, a pergunta foi inevitável.
-
Eva está bem?
-
Foi Alexandre, ele teve um acidente e Eva está no hospital. Madalena, tu estás
bem? Eu vou lá ter com ela.
-
Eu também vou.
Era
a resposta que Eduardo menos esperava, e não sabia se aquela era uma boa ideia,
mas tinha pressa e sabia que se tentasse demover Madalena iria perder bastante
tempo e provavelmente não o conseguiria.
Eva
esperava-o no átrio do serviço de urgência e sentiu um choque quando viu
Madalena, mas naquele momento tudo o que precisava era o conforto dos braços de
Eduardo e, sem sequer olhar para a colega, correu a refugiar-se no peito do
homem que agora sentia como seu. Alexandre agonizava entre a vida e a morte e
ela estava preocupada, claro, mas era de Eduardo que ela precisava. Desde o
reencontro, em Coimbra, que tudo se tornara claro no seu espírito e na sua
alma. Alexandre tinha sido um grande engano na sua vida. Nunca a respeitara e,
talvez, nunca a tivesse amado mesmo. Tudo o que queria era ascender na sua
carreira política e promover o próprio ego. Ela, sim, ela tinha-o amado. Ou
pelo menos assim o pensava. Tinha sido o único a quem havia permitido que
entrasse nas profundezas do seu íntimo. Mas Eduardo tinha entrado sem
permissão. Porque não precisava. Eduardo tinha entrada natural em todo o seu
ser, Eduardo era a metade que a preenchia na sua total plenitude.
Alguém,
na recepção, procurava os acompanhantes do doente Alexandre Coutinho e
Madalena, perante o alheamento de Eva, apresentou-se, ela, como familiar. O
médico esperava-a para lhe dizer que não havia mais nada a fazer. O coração de
Alexandre ainda batia mas iria parar a qualquer momento. E ela pediu para estar
com ele uma última vez.
Madalena
aproximou-se da cama onde Alexandre soltava os últimos suspiros, tensa e sem
saber o que fazer. Agarrou-lhe a mão.
-
Porquê Alexandre? Porquê este desfecho tão mais que esperado? Sempre te achaste
o dono do mundo e ele largou-te como larga todos os comuns mortais.
A
linha recta no monitor cardíaco e o barulho dos alarmes indicou que tinha
chegado o fim. Eva e Eduardo esperavam-na, ainda no átrio.
-
Sinto muito, Madalena. – As duas encararam-se como que reconhecendo um mútuo
engano de que ambas tinham sido vitimas.
No
velório, quase só as figuras do partido e mais alguns amigos e inimigos da
política. E Eva com Eduardo, e Madalena. Que nem sabia ao certo porque ali
estava. Eva tinha mencionado uma eventual suspeita de atentado, e uma
investigação que tinha como alvo um tal Rogério Estorninho dos serviços
secretos do governo central. Tinha de tirar tudo a limpo, que a última coisa
que precisava era ser implicada num crime, àquela altura dos acontecimentos.
Eva
aproximou-se e Madalena ofereceu-lhe um sorriso lacónico.
-
Tivemos os destinos cruzados logo à nascença, não é Madalena?
-
Pois… quem diria que, depois de tudo, tu e o meu irmão seriam almas gémeas.
Parece que vamos ser da família, Eva.
-
Nós sempre fomos da família, Madalena. Temos o mesmo sangue a correr nas veias.
Madalena
sempre havia nutrido uma certa desconfiança relativa à permanência da mãe em
Africa mesmo depois de o pai ter regressado a Portugal, mas nunca tinha tido
coragem para esmiuçar o assunto. Na verdade, a possibilidade quase certa de ser
irmã de Eva não lhe agradava. Aquela sonsa de nariz empinado não podia ter
tudo, enquanto ela não tinha nada. Afinal, tinham sido geradas no mesmo útero.
-
Como é que sabes?
-
Era ainda criança. Ouvi uma conversa entre os meus pais… quer dizer, entre o
meu pai e a esposa dele. Ela não podia ter filhos e então concordou em
aceitar-me como filha desde que tudo ficasse em segredo.
Madalena,
impávida, não mostrava qualquer reacção.
-
Porque me estás a dizer isso agora?
-
Eu e Eduardo vamos ter um filho…
Fim
Publicado em Livro: Acrescenta Um Ponto Ao Conto - Vol I
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