Madalena dos Olhos Cor de Algas



Capítulo I
Estela Fonseca

Madalena. Olhos cor de algas. Cabelo longo e liso. Castanho. Uma madeixa fogo caindo sobre os ombros morenos, debruando o decote do vestido lilás.
Vendo-se ao espelho, passeia os dedos pelos seios pequenos e suspira o aroma do “coffee woman cream” que, antes e delicadamente, tinha passado no corpo inteiro. Olha o relógio para confirmar as horas. Ainda tem tempo para rever os seus detalhes, antes de Alexandre chegar.
Alexandre é grande. Corpo moreno e os olhos a confundirem-se com os dela. Sob o sorriso ainda de miúdo, apesar dos seus trinta e oito anos, ela gosta de encaracolar a ponta dos dedos nos caracóis pretos daquele homem, daquele gajo que, como poucos, tão naturalmente seduz. Pelo sorriso e pelo olhar e pelo corpo de um deus materializado na pele damasco doce.
Sabe de cor os meandros da sedução. Do jogo de xadrez em que de vez em quando faz xeque-mate para, depois, desaparecer na bruma tão facilmente como antes um dia tinha chegado. Porque Alexandre sempre soube como jogar. Tudo na sua vida era milimetricamente controlado, tudo na sua vida era perfeitamente colocado no puzzle do seu quotidiano. Até porque não podia perder a casa de sonho plantada num jardim de amores-perfeitos. E a esposa. Que tão sabiamente, ainda naquela manhã, o tinha mimado com o sumo de laranja, as tostas com manteiga e uma fatia do bolo caseiro que só ela sabia fazer.
Mas Madalena é diferente. É a mexida proibida e perigosa. É colega da esposa de Alexandre e trabalham ambas no mesmo escritório de advogados na praça da Invicta. Opostas! Mesmo no local de trabalho. À racionalidade fria e quase matemática da mulher, Madalena é o impulso divertido e emotivo. Se a dona de casa perfeita prefere o clássico do saia-casaco sem sabor, Madalena ousa nos vestidos leves e nos decotes provocadores pintados com colares ou echarpes com perfume a frutos. E Madalena não imagina que aquele homem brincalhão e de sabor a chocolate é o marido fantástico por quem a colega baba no escritório entre um café e os papéis do caso seguinte!
São apenas colegas - pensa ele à medida que rompe no pouco trânsito da cidade - Não tinha sido difícil sair de casa. As reuniões do partido eram frequentes e a crise politica e financeira do país obrigava-o às reuniões cinzentas onde se discutia o sexo dos anjos! Por isso, aquela quinta-feira era apenas mais uma noite de um cinzento demagógico.
Imiscuía-se no seu pensamento, portanto! Nem amigas são! Justificava-se! E ele teve o cuidado de manter todo o secretismo sobre a sua vida familiar. Mesmo assim, sentia-se inseguro desta vez. Uma mistura de adrenalina e de ausência de bom senso! Mas o fruto proibido é sempre o mais desejado e ele desejava Madalena. O seu corpo pequeno que escalava sôfrego o seu. E os olhos dela! Não esquece que foram aqueles olhos cor de algas que pela primeira vez o fizeram desviar o seu olhar. Geralmente, ele tinha esse efeito com todas as mulheres, mas, com Madalena, foi o oposto. Por isso, logo esqueceu o bom senso!

Madalena esperava-o sorridente assim que a campainha se fez tocar. A sala minimalista decorava-se apenas com a luz de velas que aromatizavam a canela, e o som calmo de “turn me on” na voz irrepreensível da Nora Jones. Não o deixou falar e arrastou-o para o sofá branco. Dependurada no seu pescoço mordiscava a sua boca. As mãos dele tocavam o vestido lilás curto. Sem pressa no beijo de língua, sem pressa os dedos dele, húmidos, do tesão dela. Depois a camisa dele despida misturou-se com o vestido dela, despido! A música continuava o ritmo dos corpos de ambos. Mais! - Pedia ela. E a boca dele desceu o seu ventre e sorveu-a numa lentidão luxuriante. Madalena misturava gemidos e palavras e súplicas. Depois puxou-o para si. A boca dele de odor do sexo dela excitou-a mais ainda. Agora ele estava dentro de si. Submissa na vontade de bicho dele. Macho e fêmea. Misturavam risos e pele. Cheiros e sexo. Esfregavam-se um no outro e bebiam-se numa simbiose perfeita. Parava o tempo o espaço a música. A mistura pura e impura de um elemento químico e complexo só dos dois, ontologicamente inexplicável!
Ele exigiu olhar o orgasmo dela na boca e nos olhos de Madalena, impura e perfeitamente sua! Só então se jorrou inteiro na pele dela, perdido em sabores e toques nunca antes sentidos.
Madalena sorriu com boca pérfida e trincando a brincar os lábios dele, encaixou-se de novo no sexo ainda duro de Alexandre. Olhou-o intensamente. Num gesto simples retirou a madeixa de cabelo, colada ao suor do seu rosto. Depois acariciou, meiga e dolente, a face de Alexandre e, sussurrando-lhe ao ouvido, disse-lhe entre divertida e maliciosa:
- Eu sei quem é a tua esposa…




Capítulo II
José Manuel Barbosa

Quarta-feira. Ok Madalena, amanhã 22h na tua casa. Ansioso... hummm ;) Bjoo!
Quinta-feira. Eu sei bem quem tu és!
nesta noite em que não dormi absolutamente nada dando voltas e mais voltas virando e revirando os pensamentos mais obscuros e tenebrosos quase confirmando todas as minhas anteriores suspeitas sobre a conduta extra conjugal do meu homem desde ontem por uma fatalidade do Alex quando dele recebi na noite anterior uma SMS que seguramente não me era destinada
para uma Madalena que só pode ser a minha colega     a Pimenta
ela     as suas reacções e expressões involuntariamente faciais e alguns estranhos e episódicos comportamentos começaram a levantar as minhas suspeitas de que algo se poderia estar a passar entre ambos sempre que lhe falava da minha vida familiar especialmente do Alexandre       o seu olhar e a sua expressão a traíam     tanto secretismo em relação a mim na consulta do seu facebook no escritório     tantos gostos comuns entre ambos dizia ela     intuição feminina a minha
ele     demasiadas noites ausente até tarde que numa delas o palerma chegou às quatro da manhã cheirando a outro gel de banho     é mais fácil um homem safar-se com o cheiro do perfume de outra mulher do que cheirar a um estranho gel de duche     não? tão distraídos que eles são
vão encontrar-se hoje pela noite a coberto de mais uma interminável reunião na distrital do partido     porra que a crise é ameaçadora para eles e as autárquicas ainda estão longe     a quem pensa ele que engana?
tenho de manter-me impassível como uma máscara chinesa     a minha aparente frieza e o meu formalismo juntamente com a previsibilidade que me caracterizam dão-me uma excelente cobertura para que não desconfiem de tudo aquilo que já sei sobre eles     nada como um falso perfil do face para apurar alguns detalhes que uma mulher interessada é capaz de tudo     outra coisa é ser-se interesseira
a Eva primordial aquela que verdadeiramente sou poucos amigos a conhecem     os que eu permito aqueles capazes de subir os muitíssimos degraus até ao meu íntimo     Alex percorre com facilidade esse caminho     a nossa casa é o meu universo onírico em que majestosamente me revelo em toda a plenitude brincalhona conversadora sociável sedutora e terrivelmente doida por cama com Alex     entre nós há muito que se desfizeram todo os tabus onde tudo vale excepto a dor     o nosso deslumbramento por mais que tente não o imagino de outra forma     nos limites     por isso estou segura e magoada possessa e compreensiva incoerente e trespassada
disfarçando o melhor que pude as olheiras e o mau humor não me dando por vencida nem por cornuda preparei-lhe esta manhã um especial e apetitoso pequeno-almoço com direito a um fulgurante reforço que o fez sair de casa atabalhoadamente atrasado! já sei que não o suficiente porque tesão não lhe falta     para o testar para vêr até que ponto ele me resistia ou até para averiguar até onde iria a sua mentira que logo à noite chegaria muito tarde por causa de mais uma das suas cinzentas reuniões em que de certeza não iria discutir o sexo dos anjos antes divagar sobre o sexo certamente apimentado da Madalena
as ruas de Mouzinho da Silveira e de S. João fazem-se a descer até à dos Mercadores como nunca a pique em que eu pareço ora deslizar ora tropeçar na minha própria sombra e nas divagações mais exasperadas depois de passar pelo escritório entregando documentos importantes que não ia estar o dia todo não porque não me apetecesse trabalhar mas porque tinha surgido um problema de resolução inadiável     Dr. Ricardo compreendeu e envolto naquele seu indisfarçável sorriso matreiro denunciador do fraquinho que nutre por mim me mandou tratar dos meus assuntos num
vá tranquila Eva
faz um sol tímido e as esplanadas da ribeira ainda estão desertas a esta hora que pouco falta para as onze embrulhada ainda pelas sensações de há pouco num misto de satisfação e de raiva o meu cérebro lateja-me no crânio com os gritos das gaivotas olhando o cais de Gaia identifico ancorado o barco de cruzeiro que durante três dias da semana passada nos levou por este rio acima atravessando as inolvidáveis paisagens durienses simetricamente espelhadas na tranquilidade do rio que o Alex fez questão de percorrermos
que amoroso     quão romântico     que ironia
dias de            paz mal sabendo eu o que me esperava     melhor não desconfiando eu o que agora acabo de confirmar que a minha intuição nunca falha
detesto ser tomada por lorpa odeio a mentira tenho raiva à omissão premeditada só para me protegerem
conheço muito bem o meu marido que até foi o único com quem dormi     os muitos namorados que povoaram a minha vida anterior iam e vinham levavam uma ou mais quecas e saíam às tantas da madrugada deixando-me os preservativos para deitar ao lixo e a cama vazia     ele não     ele nunca os usou nem me deixou a cama deserta
veio uma noite para ficar e até hoje permaneceu já lá vão uns muitos anos
por amá-lo incondicionalmente aceito-lhe os defeitos sendo o pior deles o ser demasiado bonito mais que inteligente     todas as mulheres o comem com os olhos e se porventura passa alguma que não o despe ele fica como que humilhado e aborrecidamente amuado acha que todas lhe lambem os pés     ora     isso
verdadeiramente só eu sei fazê-lo e ele sabe disso
acredito nos amores e nas paixões simultâneas aceito como possível e verosímil que um homem ou uma mulher me diga que está apaixonado por duas pessoas     ninguém pode ter a ousadia de querer ou sentir-se pleno para outrém     seria o ser perfeito     nem sequer estou a pensar no banal triângulo homem mulher amante     penso mais adiante em que um ser se consegue validamente repartir mais ou menos igualmente entre dois outros seres de sexos opostos ou não encontrando nas relações com essas duas pessoas às vezes tão distintamente antagónicas complementos para a sua alma para o seu corpo para a sua vida
não quero é que isso aconteça com ele por ser o meu homem     
eu sei que sou possessiva e contraditória     a coerência que não me assiste é apanágio apenas das almas simples e me questiono com ele provocando-o qual a mulher que não o é e ninguém gosta de partilhar o seu homem com outra mulher
despejando o pacote inteiro do açúcar este café me sabe muito amargo     sinto a garganta apertada e os olhos humedecem como se desvanece a neblina tardia     as mãos trémulas puxam de mais um cigarro em que nesta manhã eu me suspendo
apetece-me chorar e neste tumultuoso carrocel mental lembro o Eduardo um velho amigo de Coimbra que conheci através da internet mais novo que o Alex mais velho na amizade tomou-me nos seus braços uma certa noite no meio de um desabafo e acoitou a minha tristeza na sua cama onde apenas conversámos e chorámos juntos
ternamente apenas os nossos corpos se tocaram
e se aqueceram nessa cumplicidade imensa que agora me vem à memória o tanto tempo que nada sei sobre ele nem da sua vida     suponho que deve estar a regressar de mais uma missão em África     um dia destes mais cedo do que tarde vou falar-lhe tenho saudades preciso da sua opinião e compreensão e sobretudo da sua cumplicidade
entretanto que faço eu no que resta até à penumbra da noite gelada?
não tenho vontade de continuar este livro por agora uma revisita a cem anos de solidão     apetece-me por aqui passar o resto do dia talvez comer qualquer coisa que consiga engolir talvez encharcar-me em café mantendo-me lúcida     a lucidez é o que mais me atormenta por antever os capítulos que se vão seguir     talvez me perder de olhar absorto na multidão que tarda em chegar
prostrada na noite após um jantar em que falaremos de tudo menos do que interessa sempre quero ver a tua cara Alex a tua expressão com amo-te quando te despedires de mim à porta para a tal reunião     serei frívola implacável e será impossível para ti descortinares o que me vai na cabeça e na alma
até porque já lhe garanti que ontem não recebi qualquer mensagem sua merda nenhuma que a operadora a deve ter extraviado fazendo-me de loira     uma mentira piedosa claro! ele mais oxigenado do que eu acreditou ingénuo
talvez me pendure no facebook como fazem essas minhas amiguinhas idiotas em busca de atenção protagonismo piedade sedução emoção ou seja lá o que for enchendo muros de lindas florzinhas frases bombásticas notícias incessantemente propaladas por todos fotografias de gosto kitsch musiquinhas pirosas ou animaizinhos fofinhos que aquilo às vezes parece um jardim zoológico
e maltratando a Poesia
talvez faça um pouco de tudo isto e em todos ponha um like ou um comentário mais arrojado que sou uma mulher absolutamente normal em busca de renovadas emoções     talvez algum príncipe encantado surja através do meu monitor e eu faça de conta que acredito     que só tenha olhos para mim e me diga e faça crer nas palavras bonitas que todas as mulheres gostam de ouvir que certamente dirá e eu certamente fingirei que oiço
ou talvez
Eduardo...




Capítulo III
Marlene Quintinha

Eduardo acorda para um novo dia, se assim se pode designar. Afinal não passa de um simples arrastar de horas, maquinado por uma rotina pouco agitada e agnóstica de projectos, na cronologia de um desempregado.
Realizadas as tarefas do seu quotidiano doméstico pós-alvorada esquematiza um percurso que se avizinha “mais do mesmo”, café matinal e leitura transversal dos Classificados e Anúncios de Emprego dos jornais do dia, paragem nos CTT para entrega de correspondência, Entrevista no Centro de Emprego e Formação Profissional para se candidatar a cursos co-financiados, visita ao restaurante do pai onde almoça e por horas é ajudante de cozinha, e finalmente a recarga da Aura com um mergulho nas energias positivadas pelos Elfos que vagueiam na Quinta das Lágrimas.
Pega no seu PC e no aglomerado de envelopes que contêm o seu Curriculum Vitae, e coloca-os na mala castanha já roçada e desgastada por um Passado boémio de Vida; Guardara-a desde os tempos em que fora professor de Latim na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra.
Sai porta fora e desce dois lanços de escadas até ao rés-do-chão.
- Bom Dia Sr. Doutor! Como sempre apressado - profere a Menina Lúcia que está a limpar o Hall do prédio - Tenha cuidado que o piso está escorregadio, sou empregada de limpeza, nada percebo de primeiros socorros - graceja sem maldade, ecoando uma soluçante gargalhada que lhe abre o rosto.
Eduardo volta-se para Lúcia e dá-lhe o seu Olhar. Sempre fora assim, Face a Face, Olhos nos Olhos, para ele diálogo nunca foi só palavras.
Depara-se com uma jovem mulher de feições sulcadas pelas intempéries dos anos passados. As profundas olheiras neutralizam o azul dos seus olhos, a pele queimada pelo Sol o brilho da sua tez.
- Lúcia que belo bronzeado. Faz sobressair a cor dos teus olhos - enobrece Eduardo, que gosta de a ver sorrir e pregar rasteiras ao infortúnio do destino.
- Fui de férias para as caraíbas do nosso Norte - diz Lúcia brincando - Estive três semanas nas vindimas no Douro. Hoje em dia temos que aproveitar todos os biscates.
- É verdade, esta maldita crise afecta sempre os mesmos. Vou andando.
- Até um dia destes, Sr. Doutor - “Espero ver-te em breve” pensa para si.
Lúcia vislumbra-se com a silhueta de Eduardo, a simplicidade e seriedade do seu olhar fascina-a. Ama-o em silêncio, na sua Vida não existem contos de fadas.
Tal como definido depois do almoço foi até aos Jardins da Quinta das Lágrimas, precisava de harmonizar as suas ideias para jamais desistir, e prosseguir.
Perambulou por entre árvores centenárias, ruínas medievais e neogóticas, tanques e regatos, uma irrefutável beleza assombrada pela tragédia que ali tinha ocorrido. O Amor tem duas faces, a Tragédia é uma delas.
O calor das três da tarde estava a fustigar o seu pensamento. Buscou uma sombra, e sentou-se no encaixe das raízes extensas e vigorosas duma das árvores.
Retira da mala o portátil e liga-o. Vai de imediato ao Email para ver se tem miraculosamente alguma resposta ás suas candidaturas a ofertas de emprego.
- Outro dia sem sucesso - suspira em voz alta.
Vai até ao Facebook para esquecer temporariamente o Fado que o tem assistido. Eis que encontra online a Eva.
Ela já se tinha ali pendurado fazia horas, clicava «likes», postava comentários, partilhava pensamentos de elevar o Ego, transparecia Outra que não a Eva dos últimos dias.
- Olá Eva! Há quanto tempo. Nunca te vejo por aqui. És o milagre do meu dia.
- Eduardo, preciso de Ti. Quando nos podemos encontrar?
- Agora. Vem ter comigo a Coimbra. Estou na Quinta das Lágrimas, e aqui permanecerei à tua espera.
Eva pega no blusão creme, nas chaves do carro e na mala, paga a conta, e sai a passo rápido do café. Eduardo...




Capítulo IV
Paulo Melo Lopes

E a chuva desabou como um corpo morto, pesado e rombo caindo sem cordas sobre o asfalto, sobre as árvores e sobre os carros. Um batalhão de setas ferozes foi disparado em direcção ao carro de Eva. Ligou os dois piscas e abrandou a marcha. No dia anterior sonhara um sonho estranho, denso e lúcido. Uma tempestade, tal como a que agora se abate sobre o seu BMW, à passagem por Aveiro, surpreendera-a à beira de um poço, um poço escuro e sem fundo. Do outro lado do poço, Alex, vestido como uma criança, enfeitado de rendinhas, de touca branca na cabeça e bibe azul às risquinhas, ria inocentemente de uma centopeia que lhe trepava pela perna esquerda. Atrás dele, mas separada por uma cancela de madeira com 3 metros de altura, Madalena, sentada a uma mesa de madeira, talvez mogno, de mãos atadas atrás das costas, olhava surpreendida uma máquina de escrever antiga que trabalhava sem ser tocada por mão humana. Noutro plano mais distante, delimitado por árvores de fruto - pessegueiros, nogueiras, laranjeiras e nespereiras -, a sua mãe brindava com um velho inglês de monóculo enfiado dentro do olho. Reconhecia a casa – um velho palacete na Foz do Porto onde fora baptizada por entre o frufru das titis e o alfinete dourado na lapela dos avós. Num canto mais escuro resguardado por ciprestes, o avô Lúcio desembainhava uma espada em serrilha com a qual decepava um corvo azulino, e a avó Maria Rosa, sentada numa cadeira de marfim, desfolhava um malmequer preto. Todo o sonho obedecia, certamente, a um plano qualquer que desconhecia. De cada vez que Alex se ria da centopeia que lhe trepava pela perna esquerda, Madalena abria mais a boca – até quase toda ela ser apenas boca -, a sua mãe brindava com o velho inglês, enquanto no canto dos ciprestes o avô decepava um corvo e a avó arrancava uma pétala preta – a última das quais à dentada. A tempestade, galopante como um cavalo em fúria, acabaria por liquefazer Alex. Ficaram os restantes elementos, contracenando como se de uma gigantesca farsa se ocupassem. Quando acordou do sonho, os seus pés estavam gelados. Eva não conseguiu captar a essência do sonho. Todavia, uma impressão negra como a que agora actualizava na tempestade entranhara-se na sua pele – uma sensação de que algo catastrófico estaria eminente. Provavelmente, sorriu Eva, ainda vou ter um acidente e é desta que morro. Riu alto. A morte, essa velha amiga, murmurou levando a mão à cabeça. Encostou o carro à berma, a chuva impossibilitava a viagem. Olhou pelo retrovisor, um enorme fila de carros desfocados pela chuva parava na berma, alguns aventureiros prosseguiam, a maior parte deles tacteando a estrada, apenas um ou outro desafiando o temporal. Desligou a música, recostou-se e adormeceu. Maldita sonolência, amaldiçoou.
Mais a sul, em Coimbra, Eduardo bate à porta de um gabinete escuro.
- Faça favor - ouve-se de dentro.
Eduardo roda a maçaneta, baixa a cabeça e entra encostando-se à porta. No gabinete, e ao fundo, mesmo ao lado da ocupante, um quadro de cortiça alegra-se com fotografias, gráficos, desenhos, pioneses coloridos e fotocópias; à esquerda, uma fotocopiadora antiga Xerox morre contra a parede; à direita, um amontoado de caixotes com produtos da oficina de artesanato - galinhos de Barcelos multicolores, cadernos de papel reciclado enfeitados com madeira e penas de todas as espécies de aves, caixinhas pequeninas para guardar recordações ou jóias, sacos de sarapilheira bordados com motivos florais – sobe até ao teto. Eduardo conhece-os perfeitamente: todas as suas terças e quintas-feiras são ocupadas nas oficinas, de volta dos galinhos e dos cadernos.
- Então, Eduardo, já respondeu a todos os anúncios de emprego?
- Sim, senhora doutora – respondeu Eduardo de cabeça baixa.
- Já falou com os elfos da Quinta das Lágrimas?
- Sim, senhora doutora.
- E como estão eles?
- Zangados, senhora doutora, muito zangados – responde com tristeza.
- E já foi ao restaurante do seu pai?
- Sim, senhora doutora.
- E como está ele?
- O meu pai está muito bem, senhora doutora, obrigado.
- E o que vai ser a ementa?
- Arroz com bifes, sim senhora.
- Muito bem, Eduardo…
O silêncio nasce no gabinete sombrio, apenas entrecortado pelo matraquear nas teclas do computador e pela chuva furiosa na vidraça. Celestina, a técnica de serviço social, acaba o registo de assiduidade, tira os óculos baços, deposita-os na secretária de mogno e olha na direcção de Eduardo. Eduardo tivera o primeiro surto psicótico bastante tarde, aos 35 anos, em plena floresta do Congo, África. Sem meios de controlo, os companheiros de missão viram-se obrigados a amarrar Eduardo a um mogno gigante, enquanto ele gritava aterrorizado que formigas gigantes lhe roubavam os intestinos para os entregarem aos gorilas, e que a mãe se transformara em leoa e lhe comia as mãos, e que os pés não eram seus mas de um crocodilo, e que um guaxinim lhe roía as entranhas, e que os companheiros de viagem lhe queriam roubar o cérebro. Quando deu mostras de acalmia, Eduardo era um homem diferente. África terminara para ele. O tímido professor de Latim era apenas uma sombra do homem que antes fora - o homem que dormira com Eva. Agora deambula pelos departamentos do Psiquiátrico – a rouparia, a cozinha, os serviços administrativos, a associação de recuperação, as oficinas de trabalho, o núcleo de emprego protegido e a sala de informática -, rumina que os feiticeiros africanos lhe roubaram o emprego e o entregaram a um departamento americano especial que opera no coração de África. Amargura-se imenso por estar desempregado e consulta o Sr. Pereira dos serviços administrativos várias vezes ao dia para perguntar se tem resposta aos anúncios de emprego, como se estivesse nos CTT; assim como pergunta a Célia, a desengonçada monitora das estufas, se os novos cursos já saíram. Pelo caminho, e enquanto se dirige à “Quinta das Lágrimas”, um par de árvores mirradas num canto do hospital, Lúcia do emprego protegido, que o trata com deferência por Sr. doutor, lança-lhe um olhar apaixonado enquanto varre, com a energia que os comprimidos lhe permitem, a entrada do pavilhão A.
- A Eva vem visitar-me - diz Eduardo abruptamente e sem aviso.
Um relâmpago alaga de luz o gabinete. Celestina franze o sobrolho e aguça o olhar em direção a Eduardo.
- A Eva, Eduardo? – Pergunta-lhe com inquietação.




Capítulo V
Sónia Ferreira

Eva regressou a casa depois do mau presságio que sentiu e da tempestade que invadiu as ruas. Adiou, por agora, o encontro com Eduardo. Despiu o casaco cinzento e abandonou-o no sofá. O seu ego estava tão acinzentado como a cor daquela peça de vestuário. Olhou ao redor e viu-se envolvida numa solidão deprimente.
Alexandre, mais uma vez disse que trabalharia até tarde devido às reuniões do partido e, consequentemente, não teria horas decentes para chegar a casa.
No escritório, Eva trocou umas palavritas, meramente profissionais, com Madalena. Apesar das suas desconfianças em relação à colega de profissão, tratou-a com uma certa frieza cordial.
Pressentia que, naquele momento, o seu marido estava envolto nos braços da amante.
O apartamento do “lar doce lar” de Alexandre e Eva tinha uma decoração requintada, exemplo de bom gosto. A cozinha, local onde permaneciam mais tempo juntos, estava equipada de uma maneira prática e funcional. A simbiose dos tons azuis e amarelos distribuídos por aquele espaço transmitiam harmonia, porém Eva vivia uma vida incolor.
Após o duche quente e rápido, Eva estava menos preocupada com os pensamentos negativos, parecia até que a água tinha ajudado a lavar parte dos seus tormentos. Mais aliviada, foi até à cozinha, aqueceu o seu “take away” e ali jantou na companhia do seu gato Teco que, carinhosamente, se esfregava nas pernas da sua dona e esta retribuiu com uns toques leves no pelo macio deste animal. Afinal este era o seu único amigo fiel naquela casa.
Do outro lado da cidade ficava o apartamento de Madalena rodeado de árvores fabulosas e à frente tinha uma praceta enfeitada com um jardim asseado e verdejante. Ali mesmo estava o carro de Alexandre estacionado.
Madalena acabava de preparar a mesa de jantar para dois e Alexandre abria uma garrafa de vinho verde branco 2010.
- Vamos fazer um brinde! -disse Alexandre elevando o copo de cristal, abanando o néctar dos deuses e acariciando os ombros de Madalena.
- Um brinde ao nosso amor!-retorquiu Madalena com um brilho resplandecente no olhar que pareciam duas lanternas acesas a evidenciar o amor a transbordar do coração.
Alexandre fixou o olhar nos belos olhos de Madalena e ali permaneceram intactos como se o mundo tivesse parado por um instante. Seguidamente, envolveram-se nos braços um do outro, beijaram-se apaixonadamente e deixaram cair os corpos, como se fossem um só, sobre o sofá. Duas personagens como Romeu e Julieta, cegos de paixão!
Eva para disfarçar a solidão daquela casa, pegou no telemóvel e verificou se tinha mensagens novas. Nada de novo, ninguém valorizava esta mulher, sentia-se um ser humano indiferente a todos; este era o sentimento que Eva nutria pelo resto da humanidade. Num gesto rápido, manuseou de novo o telefone e foi aos contatos pesquisar o nome Eduardo. Observou intensamente este nome e, por breves momentos, sente a sua mente aliviada e a ansiedade acalmou. Teve a sensação de ter expulsado todas as mágoas cá para fora como acontece com aquelas conversas em que só se precisa de um bom ouvinte para apaziguar as tristezas.
- Hoje já é tarde… mas amanhã vou-lhe ligar….Que te parece Teco? - Disse Eva, em tom baixo. Olhou para o seu animal de estimação e, como se fosse possível, ficou à espera de uma resposta afirmativa!
O gato miou e Eva soltou uma pequena gargalhada!
- Vou tomar uma atitude! Hoje vou deixar de ser tomada como lorpa…- gaguejou Eva ao olhar, mais uma vez, ternamente para a sua única companhia.
Decidida em pôr um ponto final às mentiras e à vida dupla do marido foi até ao quarto, vestiu umas calças justinhas e uma camisola às riscas preto e branco que faziam com que a silhueta magra e esbelta de Eva sobressaísse. Indubitavelmente tinha um corpo feminino que fazia roer de inveja a muitas mulheres.
Tranquilamente, pegou nas chaves do carro e disse um “adeus” afetuoso para Teco. Saiu com o objetivo de se deslocar até à casa da suposta amante do marido. No trajeto simulou vários discursos: ou entraria de forma violenta invadindo o apartamento e discutiria como uma estouvada chamando à atenção dos vizinhos ou falaria civilizadamente com aqueles dois traidores, exigindo o divórcio.
O trânsito estava caótico e os constantes semáforos a sinalizar a luz vermelha deixavam Eva impaciente e com aquele nervosismo miudinho que provoca suores frios.
Cortou à esquerda e entrou na praceta do prédio de Madalena. Lá estava o carro do marido estacionado… Alexandre estaria a fazer tudo, menos participar numa reunião do partido… Eva não conseguia controlar as batidas aceleradas do coração.
Parou o carro e pensou: - vou tocar à campainha e faço-me de convidada indesejada ou faço-lhe uma espera aqui mesmo, como se fosse uma polícia à espera do sequestrador?!




Capítulo VI
João J. A. Madeira

Que se fodam, pensou. Que fodam, copulem, como dois animais desprovidos de sentidos. Que as suas inteligências se reduzam ao encaixe de ponta de pau em passiva porta de prazer. Ela é que não alinharia em dramatismos, em teatros ignóbeis de gritos fendidos por ofensa, em ridículas atitudes numa sociedade machista. Ela, Eva de seu nome, primeiro nome de todas as mulheres, era uma senhora! Uma mulher de letra grande educada na sensibilidade dos afectos, nas carícias por carinho, na certeza de que só o amor levava ao sexo enquanto que o sexo apenas levava repetidamente a si próprio. Não seria personagem daquela peça. Não queria ver as costas do seu homem sobre aqueles olhos de…de… de putéfia.
Tremia. Tremia de raiva, de frio, de gélida ira quando se afastou. Os passos pisando pensamentos vertidos na calçada. Ela tinha um homem sensível, inteligente e atencioso. Madalena olhos cor de puta tinha somente uma máquina oscilante de fugaz e efémero prazer. Eva vencia. Porque nunca o seu corpo se dera na busca de apenas corpo. Nunca o sexo pelo sexo. Nunca.
Queria estar só. Só, destilando raiva pelos poros do silêncio. Mas porquê tanta gente nas ruas, hoje, logo hoje em que desejava para si um vácuo de pensamento? Porque se amontoavam as pessoas, mudas, tristes, à beira do passeio, se naquela noite a tristeza e o silêncio eram propriedade sua? “… a procissão”, sussurrou alguém. A procissão! Há quanto tempo tinha abandonado a paz celestial. A candura da catequese que em menina frequentara. Os ensinamentos de pudor e castidade. Oh! Quanto tempo havia de recordações que mais tempo apagara. Seria uma bênção aquela procissão? Uma dádiva para os pensamentos que tanto a mortificavam?
Parou olhando o alcatrão ainda desocupado. Se pecara pelo afastamento aos ensinamentos de Deus, não era digna de se misturar com a multidão de crentes. Recuou. Até que as costas sentiram o frio da parede de um prédio. Conseguiria dali ver o desfile por entre a silhueta das cabeças à sua frente. Saberia ainda benzer-se?
Subitamente, um clamoroso mas ternurento “Oh!” denunciava a visualização das primeiras figuras.
E encontrou-se, lá atrás, sozinha cada vez mais rodeada de gente. Que se empurrava disfarçadamente, se substituía subtilmente. Cada um querendo ocupar o suposto melhor lugar do outro. Pôs-se em bicos de pés tentando vislumbrar as primeiras imagens. E alguém se interpôs entre ela e a parede que fora sua. Alguém que não passou. Que apenas lhe roubou o lugar.
Crianças. Meninas em lento passo, provavelmente traquinas certamente diabretes, faziam-se rosados anjos em simulada levitação, que as asas mal pregadas nas costas e os pés cobertos pelas brancas vestes simulavam. Nas mãozinhas, cotos brancos sustinham titubeantes chamas.
Um calor, uma chama intensa lhe inundou o corpo. O lento erguer de algo duro atrás de si, ofensivo, abusador, como que forçando a costura das calças entre as nádegas, queimou-a, empurrou-a para onde não era possível ser empurrada. Com as faces fervendo, quis voltar-se, enfrentá-lo. Mas, naquele momento, Madalena agitaria como troféu o que a ela derrotava. Porquê fugir ao que a amante do marido se entregava? Não era sua a carne do marido. Não era sua a carne sedenta de prazer que a si se encostava. Só a sua própria carne lhe pertencia. Deveria permitir que essa sua carne fugisse? A fuga deixa mágoa, ofensa. E a entrega?
No silêncio da multidão, o rufar tenebroso e sincopado dos tambores alternavam com o ranger do cabedal das botas dos bombeiros. Bum!...Bum!
O coração vibrava-lhe a cada pancada, a cada estocada que um sexo perplexo pela submissão lhe forçava na justeza das calças cedentes ao mais forte. Sentia-o tão dentro de si como ao sangue bombeado por desnorteado coração. Subitamente, numa atitude estranha de coragem ou cobardia, forçou a que o seu corpo pressionasse quem até aí a pressionara.
O primeiro andor. Do alto, o primeiro olhar triste e santo fixando o negro do alcatrão contrastado na alva pureza da sua aura. Andando lento. Numa lentidão subjugada ao andamento dos ombros que o sustêm.
 Já não sabia o nome dos santos. E só agora brevemente questionava que debaixo daquelas vestes fortes e pesadas o santo tivera carne também. Como ela. Como as mãos que suaves se meteram sob a camisola de riscas brancas e pretas e, em círculos, numa aproximação de carícias, foram subindo devagar, muito devagar, misturando poros e suor, desejo e medo, até ao abarcar dos seios rijos e incomodados pela asfixia do soutien. Há um temor de lascívia na sua mente. Desejo e repúdio. Querer gritar o grito que o corpo cala.
 Calam-se os tambores. Param acólitos de vestes vermelhas corridas ao longo do corpo sibilando mudas e ininteligíveis rezas sobre o aroma do incenso exalado pelo censer agora inerte. Detêm-se por instantes pernas castigadas por tão lento caminhar.
Correm mãos para sul no desabotoar de botão de cós no correr de fecho no tocar da humidade de um sexo ávido de prazer na ponta de uns dedos hábeis, ultrajantes, invasores perdidos desde que outro sexo o fizera acordar. Eva quer rejeitar o que o corpo deseja por gosto. Perde-se ofega baixo no ritmo ofegante que lhe sopra o pescoço como bênção sobre o corpo que sente não ser já seu. Cedendo ele ao que ela não quer, que lhe restará depois? A memória do prazer? O pecado? A culpa de um sexo molhado entre frágeis pernas em que a mente fraquejara também?
O hissope agita-se nas mãos do prior. Asperge benzendo de humildade castigadas cabeças caídas subitamente leves de culpa, de peso, de maldade evaporada no escuro dos céus que se iluminam em estrondos estrelados de júbilo. Expelem-se finalmente foguetes da alma aflita por oprimida dos homens.
Quando o seu corpo cai, desamparado, Eva sabe que tudo acabou. Que alguém a liberta e se perde misturado na multidão. Terá um rosto que nunca conseguirá identificar enquanto que o seu será, onde quer que esteja, reconhecido pelos olhos desse mesmo rosto. Sem forças, as pernas o corpo a alma tremendo, ergue-se. Quando acima dos vultos vislumbra um outro semblante. Estático, triste. Incluirá Ele o seu pecado nos pecados do Mundo?
A multidão ajoelha.
Só Eva permanece de pé.
Eu sei, Senhor. O teu reino não é deste mundo. O meu é. Transmitiste-me a faculdade de perdoar ou castigar. Madalena e Alexandre. De recuperar amores perdidos ou apenas adormecidos. Eduardo. Mas têm os amores perdidos recuperação? Ou são apenas rosto desconhecido de alguém que se dilui na multidão? Que nos conhece sem que saibamos quem é.
Fechou os punhos. Sorriu. Obrigada, Senhor. Pela resposta.
Finalmente ajoelhada, benzeu-se.    




Capítulo VII
Dina Rodrigues

Eva benzeu-se e rezou. Pediu ao Senhor que lhe iluminasse o pensamento, que lhe clareasse a resposta que antes lhe tinha dado. Afinal, ela ainda sabia benzer-se e rezar… estava surpresa consigo própria, com o seu comportamento naquela noite.
O carro estava estacionado entre as árvores, perto ao apartamento da Madalena, mas distante o suficiente para não ser visto da praceta, nem da casa dela. Agora, enquanto caminhava em direcção ao carro, já não tinha tanto a certeza da decisão que deveria tomar, do que deveria fazer a seguir. Já não sabia se voltava à praceta do prédio da Madalena e fazia uma cena de mulher traída pelo marido, com a colega do escritório, ou se ia para casa e fingia que nada de extraordinário tinha acontecido, naquela noite. Fingia que não tinha visto o carro do marido naquela praceta, fingia que a sua vida era maravilhosa e que era uma mulher muito feliz. Fingia que tinha um marido maravilhoso, um marido que era a pessoa mais fiel à face da terra…
Pensando melhor… só ia pensar em si! Por enquanto, ia abandonar a ideia do perdão ou do castigo, ia esquecer durante algum tempo aqueles dois, Madalena e Alexandre e ia dedicar-se apenas a si própria. Ia adiar por mais algum tempo o encontro com Eduardo, mas antes disso, ia telefonar-lhe a dar uma explicação porque não tinha ido ao seu encontro na Quinta da Lágrimas. Precisava de uns dias só para si. Não queria pensar em mais ninguém, já tinha confusões suficientes na sua vida. Tinha de pensar com clareza que atitudes tomar, de futuro, em relação ao marido e ao seu casamento.
Eva chegou ao carro. Daqui podia avistar o carro do marido, que continuava estacionado na praceta. Agora tinha a certeza de que era mesmo isso que queria fazer, ia tirar uns dias de férias! Ia tirar uns dias só para se dedicar a si própria, longe deles todos.
Ela era superior ao marido e à amante. A raiva e o ódio que sentia por eles, faziam-na sentir muito forte. Tinha de encontrar a melhor maneira de explicar as férias marcadas, assim tão à pressa, mas Segunda-feira não podia ir trabalhar porque não se queria encontrar com aquela ordinária e traidora da Madalena.
- Que se lixem os dois! Segunda-feira já vou estar longe daquele escritório! – Pensou ela.
Entrou no carro, deu à chave a arrancou. Uma chuva miudinha começou a cair e ela sentia-se demasiado nervosa para prestar atenção à estrada. Aquela chuva também não ajudava nada, mas lá conseguiu chegar a casa, ao que deveria ser o seu refúgio… Chegou lá, sentou-se no sofá e logo o Teco, o seu fiel companheiro, saltou para o seu colo, muito feliz por ver a dona. Ela afagou o gato e foi à janela, precisava de respirar. Já chovia com mais força. Ficou à janela a ver a chuva e a pensar na sua vida, o que aliás, mais tinha feito nesta noite, desde que deixou aquela procissão. Não queria que Alexandre a encontrasse em casa, quando voltasse. Talvez ele já não voltasse essa noite, só regressasse no dia seguinte, mas mesmo assim não queria arriscar a vê-lo. Agarrou no telefone e fez uma reserva num hotel. A seguir, telefonou à Ana, uma amiga que a podia ajudar, nesse momento de tristeza e revolta.
- Ana, amiga, podes ficar com o meu gato, por alguns dias? Vou de férias e não tenho a quem o deixar!
- Não te preocupes, Eva. Quando é que precisas que fique com ele?
- Hoje! Agora! – Respondeu Eva.
- Agora?!... – Perguntou Ana. - Mas está bem, para que servem os amigos senão para se ajudarem quando é preciso? Podes passar por minha casa e deixar o Teco. Prometo tratar bem dele!
- É uma emergência, fico-te muito grata! – Agradeceu Eva. – Depois conto-te tudo. Vou para Tróia, para aquele hotel que um dia me falaste, aquele com o spa. - É mesmo disto que eu preciso neste momento!
Rapidamente, fez uma mala com roupa e alguns produtos de higiene, meteu o gato num cesto quentinho e apressadamente dirigiu-se ao carro. Passou em casa da Ana e seguiu viagem. Tinha uma longa viagem pela frente…
Finalmente, ia poder desfrutar de uns mimos para si. Mesmo que o tempo não estivesse bom para a praia, ia saber-lhe bem, estar afastada de casa, longe das confusões e dos problemas que a sua vida estava a atravessar. A Ana, um dia disse-lhe que aquele hotel era muito bom e que o spa era uma verdadeira tentação.
- É tudo o que eu quero neste momento… Estar num bom hotel, rodeado de bonitas paisagens, o Estuário do Sado e a Serra da Arrábida. Quero dar uns passeios pela praia, com a bonita vista para a serra da Arrábida, e claro, os milagrosos tratamentos de relaxamento do spa! – Pensou ela.
Eva conduziu pela noite dentro, lutou contra o sono e o cansaço e chegou a Tróia exausta, mas pela primeira vez, em tanto tempo, sentia-se livre. Mal conseguiu dormir, acordou cedo e cheia de vontade para ver o nascer do sol, da varanda do hotel.
Uma nova Eva estava a despertar para a vida!




Capítulo VIII
Paulo Rodrigues

- Senhor Primeiro Ministro, é verdade que vai…
Acelerando o passo e empurrando o microfone, num gesto nada consentâneo com o cargo que ocupa, o Primeiro Ministro Alexandre Baltazar interrompeu a jornalista e afirmou: “No final do conselho de ministros será lido um comunicado”, enquanto transpunha a porta que o aguardava entreaberta e que se fechou atrás de si.
Virando-se para a câmara, a jornalista Rute Soares concluiu a peça:
- São as declarações possíveis que conseguimos obter do Primeiro Ministro sobre a sua possível demissão. Ficaremos por aqui à espera do comunicado final do conselho de ministros. Por agora é tudo, Zé.
- A jornalista Rute Soares a acompanhar o conselho de ministros extraordinário, para analisar a possível demissão do Primeiro Ministro, na sequência do escândalo sexual que protagonizou.
- Para analisar precisamente este caso temos connosco em estúdio Carlos Figueiredo, o nosso analista para questões de política interna. Carlos, achas que o Primeiro Ministro se vai demitir ou não?
- Boa noite Zé, temos assistido nas últimas semanas a tomadas de posição diametralmente opostas, em que claro está, os comentadores afectos ao partido do poder minimizam a situação, enquanto todos os restantes pedem a sua demissão,…
- Mas achas que a situação justifica essa demissão? E os custos para a estabilidade da governação?
- O que me parece é que a questão não é apenas do foro intimo do Primeiro Ministro enquanto cidadão, tal como defendeu ontem o presidente da Assembleia da República, há dinheiros públicos envolvidos e tanto quanto a investigação conseguiu apurar até agora, a situação configura um presumível abuso de poder.
- Portanto crês que para não desgastar mais a imagem do governo junto da opinião pública, se deveria demitir?
- Não se trata apenas de manter a imagem, o que foi apurado até agora é grave, e se se vier a provar que é verdade sou de opinião que não tem outra saída que não seja demitir-se…
NNNNNÃÃÃÃÃÃOOOOOOOOO
Com um salto, sentou-se na cama, ofegante, olhos esgazeados perscrutando a escuridão, a testa alagada em suor.
Os segundos pareceram-lhe eternos enquanto esperava ver o dedo acusador de um juiz apontado na sua direcção. Não podia acabar a carreira daquela forma. A política era um meio para a sua ambição desmesurada pelo poder. Não podia falhar. A respiração que teimava em não acalmar denotava o seu nervosismo. A espera apenas lhe devolveu silêncio e trevas e por fim apercebeu-se que tinha tido um pesadelo. Deixou-se cair pesadamente na cama, com um misto de alívio mas também de preocupação.
Estava transtornado e tinha uma razão para isso. À chegada a casa um bilhete lacónico em cima da mesa dizia apenas “fui de férias”. Não pensava que pudesse ser descoberto sobretudo depois dos cuidados que pusera na preparação das suas escapadelas. Contudo, aquele bilhete não lhe deixava muitas ilusões a esse respeito.
A família era importante. Enquanto conservador tinha construído uma carreira assente na imagem de homem de família arreigado às tradições, que o seu partido defendia. Era parte da sua estratégia.
Mas mais importante do que isso, o escritório de advogados no qual Eva trabalhava seria a mola impulsionadora da sua carreira. Os contactos estavam feitos. Não podia voltar atrás agora.
Tantos sonhos e projectos que tinha. Quantas vezes se via em sonhos como secretário de estado, depois como ministro, a seguir como primeiro ministro, até alcançar por fim o lugar supremo de mais alto magistrado da nação.
Sonhava ter uma biografia. Imaginara-a até com um capítulo cujo título seria “Madalena dos olhos cor de algas”.
Porém, quão longe estava agora de pensar em Madalena. O sucesso era a razão da sua existência. Tinha que resolver o problema que tinha entre mãos, ou pelo menos manter as aparências, custasse o que custasse. Só não sabia era como.
Muitos quilómetros mais a sul alguém também não dormia ainda. Por muito que tentasse acalmar-se, a verdade é que os acontecimentos recentes continuavam a bailar-lhe no pensamento, misturando-se ideias contraditórias a cada instante, que lhe toldavam a razão.
Imagens passadas desfilavam em catadupa à sua frente, alheias à sua vontade, que apenas queria fechar os olhos e adormecer.
Até que algo inusitado lhe apareceu. Alexandre, que nunca fraquejava, sentado no chão com os cotovelos apoiados nos joelhos e a cabeça entre as mãos, pedia desculpa. Alexandre, que nunca se enganava e raramente tinha dúvidas, admitia ter errado.
A princípio pensou que fosse o seu subconsciente a pregar-lhe uma partida. Não negava que gostava de ter uma borracha com a qual pudesse apagar os últimos meses da sua existência. Gostaria que a sua vida pudesse voltar a ser o que era. Mas logo de seguida a raiva acumulada lhe fez ver que o tempo não volta atrás e é preciso reagir às adversidades.
A imagem parecia-lhe tão real que se levantou para se aproximar e responder-lhe. Tão depressa como apareceu, assim se desvaneceu a imagem, deixando-a parada no meio do quarto, na semi-obscuridade da aurora que já começava a entrar pelas frestas da persiana.
O frio da madrugada enregelou-a e despertou-lhe os sentidos. Estava acordada agora. Meteu-se novamente na cama e ficou a olhar para o tecto sem saber muito bem o que pensar.
Não acreditava em espiritismo, nem em percepção extra sensorial nem nada desse tipo de coisas. Mas a imagem pareceu-lhe tão real…
Tudo isto fugia ao seu entendimento. Do pouco que sabia sobre estes fenómenos parecia-lhe que este tipo de visões aconteciam sempre em castelos ou palácios antigos e as pessoas que apareciam eram sempre mortos.
Nunca imaginou que pudesse estar num hotel de luxo a “ver” e “ouvir” uma pessoa viva. Inconscientemente conotava a religiosidade com algo do passado. Pelo menos consigo foi assim, a sua prática religiosa restringiu-se às obrigações que lhe impuseram enquanto criança. Esta mistura de passado com modernidade causava-lhe agora espanto.
A menos que…
E se tivesse poderes dos quais nunca tinha suspeitado?
Fechou os olhos e inspirou lentamente. Seria possível que conseguisse “falar” com outras pessoas à distância, que conhecesse os seus pensamentos, que soubesse o que iriam fazer a seguir?
Uma ideia ainda mais absurda lhe ocorreu subitamente. Enquanto advogada o cumprimento das leis sempre foi para si um imperativo. No entanto, contra todo o princípio da racionalidade, fez, de forma consciente e de livre vontade, sexo na via pública.
Porquê não sabia ainda, mas ocorria-lhe agora que subconscientemente tinha noção da sua impunidade, que nada de mal lhe poderia acontecer.
Seria verdade? Só havia uma forma de descobrir: iria fazê-lo de novo. Em Coimbra iria fazer sexo com Eduardo na Quinta das Lágrimas.




Capítulo IX
Pedro Miguel Ferreira

Sexta-Feira, 7 de Dezembro de 2012, 11:00h
Madalena olhava incessantemente para o seu relógio de pulso. Os ponteiros indicavam que eram onze da manhã em ponto. Tentava, em vão, concentrar-se nos diversos processos que tinha em mãos mas sentia-se terrivelmente ansiosa. Na chegada ao escritório, foi informada de que Eva tinha ido repentinamente de férias e por período indeterminado. Ela sentiu um súbito aperto no estômago ao receber a notícia. Tornava-se praticamente evidente que este interregno nas actividades profissionais de Eva estaria relacionado com o seu casamento. A única dúvida que restava a Madalena era se a sua patroa tinha descoberto que ela estava directamente implicada nas traições cometidas pelo marido. Era essa a incerteza que a deixava inquieta e receosa. Em simultâneo, sentia um estranho frémito de alegria com a forte perspectiva de finalmente ter infligido um forte golpe no orgulho da poderosa Eva Andrade Magalhães. Ela ainda tentou esclarecer o assunto com o Alexandre mas ele não lhe tinha atendido a chamada.
Há vários anos que as duas travavam uma espécie de guerra surda dentro da sociedade de advogados. Ignoravam-se subtilmente e limitavam-se a ter conversas de circunstância ou relacionadas com trabalho. A rivalidade datava da época em que o pai de Eva ainda era vivo. O notável Dr. João Andrade Magalhães tinha sido o patrono de Madalena no início da sua carreira. O período de estágio foi penoso mas o empenho e rigor demonstrado pela jovem advogada permitiram-lhe conquistar o respeito e admiração dos sócios fundadores. Nesse tempo, a Eva também já trabalhava no escritório e evidenciava-se como uma jovem promessa no universo do Direito Comercial. Porém, desde logo, se notou que não existia empatia entre aquelas duas mulheres. Eram dois universos diametralmente opostos que entravam em choque. A mãe da Madalena em jeito de brincadeira, costumava dizer que os ricos já nasciam com cara de ricos. Era o caso de Eva. Talvez o resultado genético de uma soma de gerações de uma família culta, influente e abastada que nunca tinha sofrido as agruras do trabalho operário e da carência dos bens mais essenciais. Desde sempre educada nos melhores colégios da cidade do Porto, Eva exalava uma aura de beleza, requinte e altivez que o seu berço de ouro lhe tinha proporcionado. A sua dicção evidenciava o sotaque afectado das meninas da Foz e o seu círculo de amizades era extremamente restrito. No campo oposto encontrava-se Madalena. Desde logo, os seus apelidos familiares Silva Alves nunca poderiam ser comparados aos sonantes Andrade Magalhães. Nascida e criada em Sobrado, uma vila situada nas proximidades de Valongo que se situava nos antípodas sociais da Foz, tradicional área de residência da alta burguesia portuense. Era a filha única de um casal modesto. O pai era marceneiro e a mãe conciliava a vida doméstica com alguns trabalhos de costura para a vizinhança. Com bastante trabalho e sacrifício, tinham-lhe proporcionado a possibilidade de estudar com a esperança que a filha viesse a ter uma vida mais confortável.
Com o passar dos anos foi isso mesmo que acabou por acontecer. Madalena foi subindo gradualmente de posição no seio da sociedade de advogados, mérito do seu trabalho e competência. Comprou um bonito apartamento perto do Marquês, conduzia o seu exclusivo automóvel Lexus, começou a ter cuidados redobrados com a sua imagem e passou a frequentar os restaurantes e bares da moda. Nem por isso a atitude de Eva em relação a ela tinha mudado. Mantinham um relacionamento frio e distante. A sua patroa nunca deixaria de a encarar como uma parola da aldeia que tinha conseguido ascender alguns degraus na escala social. Era tudo uma questão de pedigree.
No entanto, o crescente grau de sofisticação de Madalena foi acompanhado de uma ambição e ânsia de protagonismo ainda maiores. Perdeu alguns tiques provincianos, ficou mais extrovertida e tornou-se uma mulher bastante sensual. Gradualmente, também se foi apercebendo da cobiça e desejo que provocava nos homens. Esta capacidade aliada às suas qualidades profissionais resultaria numa mistura explosiva que lhe poderia proporcionar uma ascensão ainda mais fulgurante. Madalena entrou num jogo perigoso que abalou profundamente a sua moral e a sua educação familiar. O ponto de viragem ocorreu pouco tempo antes do seu antigo patrono se aposentar e retirar do escritório. O eminente Dr. Andrade Magalhães revelou que tinha tanto de perverso como de advogado brilhante. Envolveram-se num escaldante relacionamento extra conjugal onde a submissão e o masoquismo do velho patriarca foram levados ao extremo durante alguns meses. Este caso serviu para cimentar em definitivo a posição de Madalena dentro do escritório e foi a primeira alfinetada sigilosa no nariz empinado de Eva.
A retrospectiva mental dos últimos anos de vida de Madalena foi interrompida subitamente pelo toque do seu telemóvel. Ela estremeceu e olhou algo contrariada para o visor do telefone pousado em cima da secretária. Número confidencial. Só poderia ser ele.
- Estou? – Atendeu em voz baixa.
- Olá Madalena. Cumpriu o combinado? – Interrogou o homem do outro lado da linha.
- Sim. O trabalho está feito…
- Muito bem. Preciso que me entregue isso ainda hoje. Vá-se encontrar comigo no Motel Portofino que fica paralelo à Via Norte, uma das saídas da cidade. Nove e meia da noite. Estarei na suite 303. Tem garagem para dois carros. Por favor, não se atrase.
- Lá estarei… - respondeu Madalena, numa voz trémula. Sentiu as mãos a suar.
- Certo. Até logo, Madalena.
- Até logo, Rogério.

Sexta-Feira, 7 de Dezembro de 2012, 21:25h
Nem mesmo os suaves ritmos musicais dos Mazzy Star que ecoavam no rádio do carro de Madalena lhe conseguiram serenar o sistema nervoso. Rogério, aquele homem misterioso, de proveniência obscura e que lhe tinha proposto um perigoso desafio tinha a estranha capacidade de a deixar extremamente agitada. Ao chegar na portaria do motel, foi notificada que o hóspede já estaria à sua espera. Entrou em baixa velocidade na garagem, estacionou a viatura e subiu o pequeno lanço de escadas que dava acesso à suite. Rogério, estava sentado num sofá colocado no canto do quarto e manuseava um computador portátil pousado em cima das pernas. Um homem alto, corpulento, de cabelo desalinhado e rosto seco e bem barbeado. Desviou lentamente o olhar do monitor e franziu o sobrolho ao ver Madalena entrar.
- Boa noite Madalena. Tudo bem consigo? – Saudou, levantando-se do sofá para a cumprimentar.
- Tudo bem. Agora vocês também marcam encontros em motéis? – Perguntou ela, com alguma desconfiança na voz.
- Estou cansado de encontros em cafés e restaurantes de terceira categoria. Estes locais têm os requisitos perfeitos em termos de confidencialidade. O que serve para dar umas escapadelas conjugais também servirá para outros assuntos mais sérios, não é verdade? – Ripostou, com ironia na voz – Mas não vamos perder tempo com essas discussões. Trouxe o que lhe pedi?
- Aqui tem – disse ela, ao entregar-lhe uma pequeníssima câmara de filmar.
- Óptimo!
Rogério, apressou-se a ligar a câmara ao seu computador portátil. Teclou durante breves segundos e depois ficou a observar o monitor atentamente. Esboçou um sorriso cruel quando viu as primeiras imagens.
- Está cumprida a minha parte do acordo? - Perguntou Madalena já impaciente.
- Realizou um excelente trabalho. Isto é um filme digno de um Óscar da pornografia. E tenho a dizer-lhe que o seu desempenho foi estupendo. Na segunda-feira, irá receber a segunda parcela do pagamento que lhe prometemos. Temos aqui o necessário para arrasar com a vida do seu amigo Alexandre.
- Não estou propriamente eufórica com isso. De qualquer modo, aceitei a missão e quero-me afastar deste caso o mais rapidamente possível. No entanto, ainda gostaria de saber como chegaram até mim…
- Foi muito fácil – Rogério insistia num tom irónico – O já falecido Dr. Andrade Magalhães era um homem importante e como tal, foi sempre acompanhado de perto pelo nosso serviço. Quando ficou mais velho tornou-se mais descuidado com os seus devaneios sexuais e descobrimos que a Madalena tinha tido um caso com ele. A partir desse momento, tornou-se a mulher ideal para este trabalho devido à sua proximidade com uma família tão ilustre.
- Entendo o vosso interesse no Dr. Andrade Magalhães. Mas em relação ao Alexandre não consigo compreender as vossas intenções.
- O problema desse sujeito é que gosta de se colocar em bicos de pés. Quem é esse homem, afinal de contas? – Atirou, fazendo um gesto teatral – Apenas um tipo bem parecido que conseguiu dar o golpe do baú ao casar com a filha de um dos advogados mais bem cotados do país. Tirou um curso de Gestão à pressão na Lusíada. Sim, porque ficaria mal à Dra. Eva casar com um gajo sem canudo. Depois do casamento e com o alto patrocínio do sogro, abriu aquele stand de automóveis topo de gama usados para se entreter e pouco depois meteu-se na política. E é aí que começam os problemas. Chegou ao cargo de vereador na Câmara do Porto mas agora quer voos mais altos. Pretende ser cabeça de lista nas próximas eleições autárquicas e está a pôr em causa toda a estratégia de coligações delineada pelos partidos do Governo. Alguns ministros estão a ficar seriamente irritados com ele.
- E vocês fazem os recados que os políticos vos ordenam …
- Minha querida, o que é que você pensa que fazem as secretas deste país falido? Acha que andamos a perseguir fundamentalistas islâmicos ou a fomentar golpes de estado em África? Não se iluda - acrescentou ele, recostando-se no sofá.
- Realmente não é uma matéria que suscite o meu interesse.
- Já é tarde. Deixemos o trabalho de parte. Venha para perto de mim… - disse Rogério, enquanto abria o fecho das calças.
- Desculpe, mas isso não faz parte do nosso acordo… - gaguejou Madalena.
- Tem algum contrato escrito? Quer-se queixar ao sindicato dos agentes secretos? O que lhe pagámos dá direito a isto e muito mais – disse ele, num tom jocoso - Vá, deixe-se de merdas e faça uso dos seus talentos.




Capítulo X
José Bessa

Rasos de água tinham sido os olhos de Madalena quase sempre, toda a vida, mesmo quando fazia mal. Embora lhe soubesse bem uma certa vingança, incomodava-a, havia como que um remorso na sua existência, quase como que uma culpa cada vez que arquitectava mais uma investida. Mesmo agora, e era um caso pessoal, sabia-lhe fisicamente bem a traição mas não a desfrutava em pleno, estava sempre à escuta, sempre fora dela mesmo com o Alexandre dentro de si. Vivia como sua censurada espectadora.
Quando em criança o dr. Andrade de Magalhães, o João, como a mãe o tratava, ou o, o senhor doutor, como a obrigava a dizer, lhe dava dois beijos à entrada de casa, subia dentro dela um queimor de vingança, um tremor febril que ainda hoje sente «e a Evinha, não veio?».
Na pequena sala de estar do apartamento, seu quarto também, enquanto esperava que a mãe e o senhor doutor conversassem sobre o problema a resolver, rangia os dentes a compasso com o gemer da cama e o sussurro do «cala-te que a catraia vai contar». O esgar nojento no sorriso esbeiçado de despedida dava-lhe vómitos, «até depois menina…» dizia passando a mão suada pela sua face corada. «A Evinha para a próxima, vem?» Era nessa altura que lhe saltavam as lágrimas, que tremia descontroladamente e ansiava que alguém morresse para que tudo aquilo acabasse. Assim que a mãe aparecia, já de quarto arrumado, ela fugia para a rua e a mãe, comprometida, não a chamava, deixava-a andar lá fora até à noitinha. Quando o pai chegava, sempre tarde, e ela não sabia o que mentir para justificar os olhos vermelhos, dava-lhe um beijo entrava com ele e escondia-se cozinha adentro disfarçando ajudas.
Muitas vezes se questionou se o pai desconfiava. Sabia que o doutor tinha sido sócio do pai em África quando recém-casados foram tentar a sorte, sabia que as coisas tinham corrido mal e que a mãe ainda tinha lá ficado doente mais dez meses, sabia das obrigações financeiras para com o doutor ainda desses tempos, mas, sabia que não sabia nada em concreto, que lhe escondiam muita coisa. Não poderiam contar?
A verdade é que o doutor tinha sido sempre uma presença assídua e, embora o pai não o olhasse nos olhos não pareciam disfarçar inimizades. Quando, depois de muita insistência, vinha com a Evinha, iam dar um passeio pelo monte e no regresso estava sempre combinado um lanche no restaurante do pai. Eva não gostava de entrar, sentava-se numa mesa debaixo da ramada e olhava com desconfiança para o ambiente interior. O restaurante, como lhe chamava Madalena era mais um modesto tasco onde se serviam umas iscas e se bebiam uns copos de vinho, onde raramente se via uma mulher, onde nunca entrava uma criança. Ponto de encontro de marceneiros ex colegas do pai, e operários da Companhia. Era também, por vezes, local de zaragatas e as mulheres da zona atravessavam sempre a rua para não lhe passarem à porta.
Com o passar dos anos Eva deixou de ir a casa do Alves «paizinho, não quero ir, não gosto daquela gente.». O doutor anuiu. «se não queres ir, não vais; também não são ambientes para ti» disse aliviado do compromisso. Em Sobrado, onde nem tinha de dar explicações, justificou a ausência da Evinha com os compromissos de estudo. Assunto arrumado.
Madalena e Eva estudaram, cada uma no seu ambiente até que se reencontraram numa certa queima das fitas, uma, quartanista a outra, caloira. Após a serenata o dr. Andrade Magalhães, que ainda dedilhava umas guitarradas, fez questão que lhe tirassem uma fotografia entre as duas com os braços rodeando-lhes o pescoço como se de duas filhas se tratassem.
A partir daí, numa omnipresença doentia. Começou a convida-la para jantar, a oferecer-lhe boleias limitando-lhe os contactos com colegas, a dar-lhe dinheiro para perfumes e cigarros, a ajudar na renda do quarto, a pagar água e luz, a emprestar-lhe livros, a convida-la para saídas, até que um dia, após uma noite de discoteca mais bebida a levou para a sua casa da Aguda e, quando acordou, Madalena já não sentia culpa, já não sentia raiva, já não sentia remorso. Madalena tinha perdido a dignidade, tantas vezes despojada por ele a partir daí.
Tarde naquela manhã, sozinha, estava como agora, nesta tarde ausente.
Rogério deixou-a à porta após o almoço e disse-lhe lá do alto, «agora juizinho a aguarda ordens».
Madalena entrou em casa, bateu com a porta, largou a carteira, atirou as chaves, arrancou os sapatos, acendeu um cigarro, abriu uma janela, aspirou fundo e, estonteada caiu num choro convulso que a sufocou quase ao desmaio. Era uma perdida.
Quando recuperou algum ser olhou em volta, o seu apartamento estava frio de penumbra, o último Sol escoava-se pela janela poente. Levantou-se para ver o mar. O mar era a sua calma de sempre, mesmo quando cuspia a sua ira nas rochas a tranquilizava. Dali, era um mar lá longe, dali, era um reflexo no horizonte sem fim, mas estava lá e ela sentia-o cá.
Olhou a rua e o que via do seu décimo andar foi uma amálgama de irrealidade numa fenda. Abismo de vertigem. Luzes tremeluzentes, penumbras deslizantes, sussurros, apitos, alguém que esbraceja, um autocarro que desce chorando metais numa lamúria estridente e ela, como que duma nuvem, como que ausente daquele Mundo vivo, olha a cicatriz urbana, que mexe apesar de tudo, que vive apesar de tudo. E ela, no seu limbo de juizinho, aguarda ordens.
Voltou-se, sentou-se no peitoril da janela, acendeu um cigarro inclinou-se para trás e «Que consegui na vida?, um curso?, um carro?, um apartamento?, umas férias aqui ou acolá?, uma independência dependente?, o respeito deste ou daquele pela roupa que visto? Quem sou eu afinal, que tanto me esforcei para ser alguém, e não consigo ser ninguém. Ando a saltar de cama em cama de vingançazinha em vingançazinha, quando sei que não a posso destruir.»
Veio-lhe à memória a mãe «somos duas amantes, mãe…», o pai «morreremos sem ter onde cair de mortos sr. Alves?», o meio-irmão «seu merdas!, se me ajudasses!», atirou o cigarro para o abismo e preparou-se para sair «talvez um copo, é isso, talvez um copo…».
O telefone tocou, Madalena ainda desambientada de tudo procurou o telemóvel, na insistência do toque fitou o telefone fixo «esta agora!, o fixo?!», saltou sobre o sofá e o toque parou «tarde de mais…», puxou a chamada e era de Coimbra.
Sentiu uma serenidade perigosa, uma vontade indomável de dar a volta a tudo, custasse o que custasse. Ela sairia por cima. «Que me quererá o parvo?, ás tantas mais dinheiro, vem-me sempre com latins, sempre muito mansinho. Que me interessa um meio-irmão que conheci adulta e por coincidência? Uma mentira familiar torpe, uma baixeza que me fizeram. As suas indecisões só me servem de estorvo, sempre que lhe peço alguma coisa hesita, está sempre doente, raramente me serve para alguma coisa, um estorvo é o que ele é, um estorvo.»
- Estou? Eduardo? Que ideia é essa agora de me telefonares para o fixo?




Capítulo XI
Luísa Vaz Tavares

- Tira-me daqui Madalena. Preciso de sair daqui!
- O que é que te deu agora? Da última vez que te dignaste falar comigo estavas aí como se estivesses num resort nas Bahamas.
Eram sempre assim, as conversas entre os dois meios-irmãos Eduardo e Madalena. Uma espécie de amor\ódio que os impedia de ter um relacionamento pacífico e ao mesmo tempo os aproximava mutuamente. No início, quando se conheceram, até tinha crescido uma verdadeira amizade de irmãos mas depois tudo se desmoronou.
Quando, no seu leito de morte, o pai a mandara chamar, Madalena chegou a pensar numa possível fortuna secreta que a ascenderia ao topo da escalada social onde trepava os primeiros degraus, mas não, o pai queria apenas expiar os pecados. Como uma redenção visando um lugar no céu, talvez. Assim, à queima-roupa, tinha lançado a bomba ali mesmo na enfermaria do hospital. A traição e a consequente existência daquele meio-irmão, três anos mais novo. << a tua mãe preferiu ficar em áfrica, para se curar da doença, e um homem sente-se sozinho, sabes como é filha… >> Não, não sabia! Era uma justificação tão torpe como todas as outras que já se tinha habituado a ouvir de todos os homens. Afinal o pai tinha feito o mesmo que os outros. O mundo era, todo ele, uma teia de mentiras e traições.
Mas Eduardo parecia diferente. Foi diferente. Foi um estranha-se depois entranha-se. Eduardo começou a admirar a irmã sofisticada e determinada que lhe tinha calhado em sorte e Madalena também passou a gostar cada vez mais daquele rapaz inteligente e altruísta, recém-licenciado, que se preparava para a sua primeira missão em áfrica. Conheceram-se devagar, durante os períodos em que Eduardo permanecia em Portugal e dava aulas de latim na faculdade de letras da universidade de Coimbra. Madalena pensou ter encontrado uma alma gémea, alguém que a apoiava e a quem se podia mostrar sem artefactos. Até que Eduardo começou a censurar o seu estilo de vida, e depois, depois tudo se desmoronou quando ele regressou da sua última missão, absolutamente enlouquecido.
Ainda assim, é Madalena que é chamada de cada vez que Eduardo tem mais um surto psicótico e é internado no psiquiátrico. Como única parente conhecida.

Aguardava-a, impaciente, sentado na pontinha da cama branca do quarto imaculadamente branco. Depois da conversa com Madalena, Eduardo tinha-se barbeado e vestido com a melhor roupa do seu espólio, tinha feito a mala e esperava pelo toque na porta que o devolveria à liberdade. Madalena não o tinha dito mas era sempre assim, ela vinha sempre. Quase se sobressaltou quando a enfermeira o interpelou pronunciando o seu nome com voz clara.
- Sim, senhora enfermeira.
- A sua irmã veio buscá-lo, Dr. Eduardo.
- Agora vê se tomas a medicação que eu tenho mais que fazer do que andar a viajar do Porto até aqui para assinar termos de responsabilidade. – Madalena seguia a enfermeira e como que cumprindo um ritual a que já estava habituada, pegou na mala que entregou a Eduardo indiciando que não tinha tempo a perder.
Lado a lado, os dois percorreram o corredor sem que algum pronunciasse uma só palavra. Estavam absortos em pensamentos dos passos que iriam dar a seguir. Eduardo ansiava embrenhar-se nas ruas históricas da sua velha cidade. Se Madalena lhe perguntasse onde ia ou porque ia de certeza não lhe saberia responder, era um apelo inexplicável pelos cheiros, pelas cores, pelos sons, da cidade que era a sua casa. E Madalena desejosa de voltar ao seu Porto de abrigo. Despediram-se com um beijo rápido.
Madalena entra no carro, mira-se no espelho retrovisor e, antes de dar à chave para arrancar, liga o telemóvel que tinha desligado antes da conversa com a enfermeira. Tinha duas chamadas não atendidas e um SMS, de Alexandre. << Onde andas? Preciso ver-te, estou em tua casa >>. Já nem se lembrava que lhe tinha dado uma chave, era a primeira vez que ele a utilizava, e naquele momento sentiu-se invadida no seu espaço interior, como se todo o seu Eu, tivesse sido devassado durante a vida inteira. << Estou em Coimbra, volto amanhã >>, uma resposta quase instintiva com sabor a liberdade. Nem que fosse apenas por uma noite, ia ser ela. Sem os esquemas, sem as desconfianças, sem os subterfúgios de uma vida semi-oculta. Eduardo teria de lhe dar guarida no seu velho apartamento.

Na entrada sul, Eva chegava à sua Atenas portuguesa. Tinha partido sem planear nenhum rumo. A ida para Troia tinha sido um erro. As inquietações tinham viajado com ela, as dúvidas, as incertezas, os sentimentos, tinham ido na sua bagagem. Por isso, tinha fechado a conta no hotel e tinha iniciado o caminho de volta para casa. Sem saber ainda o que fazer, ia ao sabor de cada momento, pernoitando pelo caminho se lhe apetecesse. E ao vislumbrar Coimbra apeteceu-lhe. Coimbra era, para ela, uma cidade de encantos. Primeiro, tinham sido os quatro anos de uma vida académica intensa enquanto frequentava a faculdade de direito e depois os meses tórridos de paixão com Eduardo.
Eduardo tinha sido o seu caso extra-conjugal. Numa das noites em que Alexandre saíra para mais uma das prolongadas reuniões do partido, Eva, enraivecida, entrou num desses chats da internet que vendem sedução ao desbarato e Eduardo foi a surpresa. Uma conversa interessante e inteligente foi apenas o primeiro passo de uma cumplicidade sem limites e sem tempo. Das conversas íntimas pela noite dentro até aos passeios românticos na quinta das lágrimas foi um instante. As cenas de sexo desenfreado testemunhadas pelas pedras rubras da fonte dos amores, as tentativas vãs de disfarce perante os transeuntes, as fantasias onde o limite era a dor, foram uma espiral de emoções que deixou como marca a confiança de uma intimidade, gravada na sala dos poetas do penedo da saudade.
Antes da partida de Eduardo para mais uma missão, despediam-se, sob a melancolia do sol mortazino de um final de tarde, quando Eva se lembrou de gravar aquelas últimas palavras.
“Apenas um instante, é o que nos separa”.
Eduardo voltou-se devagar. Girando sobre o seu próprio corpo, encarou Eva
-… um instante que já passou.




Capítulo XII
Casimiro Teixeira

Ninguém sabe ao certo como eu vivia. - Afirmava Madalena - Ninguém faz a mais pálida ideia. A cor aquosa dos meus olhos não pertence a ninguém, nem nunca pertenceu. Na verdade, ninguém poderá saber jamais, com a precisão de um ourives, o exacto calibre e densidade de luz com que estes olhos se referem numa unidade de medida. É tudo uma treta infinita! Uma treta absurda e perpetuada por quem mais se interessa pela forma côncava e dura das minhas mamas ou pelo buraco sedoso e húmido, da parte de trás da minha coxa, do que por mim propriamente. Sou carne, e a carne não tem olhos. É, portanto, com um refrescante sentimento de satisfação exausta, que experimento a sensação de ser útil e tão desprotegida ao mesmo tempo.
- Podes foder-me amanhã, em vez de ser hoje? – Pergunto-lhes. – É que hoje sinto-me demasiado vulnerável cá dentro, tenho o corpo apenas, e mais nada percebes? – De facto nunca ninguém me respondeu quando assim lhes remetia a questão. Ficavam silenciosos por momentos, e fodiam-me na mesma.
Essa pergunta não tem de facto nenhuma resposta concreta. Como se eu existisse para ser fodida, ponto final. Sem perguntas desnecessárias à prática fugaz do coito ocasional que eles tanto procuravam.
Sim. Poderia afirmar aqui e agora que, em algum lugar esquecido do tempo inteiro da minha vida, eu me vendi, para conseguir coisas. Coisas, e não emoções, nunca emoções. Fui uma puta! Poderia afirma-lo aqui e agora, e isto seria provavelmente verdade. Eles deram-me boas somas de dinheiro, todos eles me deram, de uma ou outra forma. E depois do sexo, a vida já não me parecia assim tão cara, como me parecera antes. Na realidade, eu nem tenho casa própria, nem carro próprio, nem um emprego, nem uma vida minha sequer, mas os meus olhos, os meus olhos voltavam a ser feitos de algas, por breves instantes, nesse entretanto entre a pergunta inútil e a resposta que nunca chegava. Os meus olhos ainda eram meus nesse curto interlúdio, apesar de nem já habitarem neste corpo. Sim, eu fui uma puta, mas, isso acabou agora.
Era o mínimo. A vida é mais uma questão de despesa do que de ganho. É preciso saber com quanto se quer viver. Aprendi a viver como que num desespero sorridente. Sem saída, mas uma vida ainda assim, que exercia sem cessar um domínio que eu sabia ser útil. O essencial: não nos perdermos para sempre, e não perder, nunca, aquilo que, de nós, dorme no mundo. Eu andava cansada de tudo. Dormia mal havia cinco noites e a minha paciência para os sussurros bacocos que ecoavam soltos pelos corredores da firma, era mais do que pouca. Eva sabia de tudo. Sabia que eu fodia em intervalos regulares com o seu marido, que eu fodia-o para conseguir...para conseguir o quê? – Já nem sei. Só queria que ela entendesse.
Naquela manhã deplorável trouxe o Eduardo comigo para o Porto. Era o meu único bálsamo de humanidade. O meu derradeiro bastião. Fingia chantageá-lo com birras e ele vinha comigo. Fingia ignorar os seus pedidos e ele vinha. Vinha como um cachorrinho bem amestrado. – Pois. Eu bem sei. Ainda me resta muita maldade entranhada cá dentro, uns restos que ficaram cá dentro, sem eu saber. Ando a aprender lentamente a limpar-me por dentro. O Eduardo ajuda-me nesta purga e eu, em troca, ajudo-o a sacudir-se de toda aquela loucura. Não devia ter cedido àquele porco do Rogério. Pulha! Grande pulha de merda. Enfim, agora já está. Será uma lição que o Alexandre não irá esquecer tão cedo. O primeiro golpe está dado, a partir de agora será quase impossível parar este processo. “audaces fortuna adiuvat” diz-me o Eduardo.
– A sorte favorece os audazes! Espero que sim. Pedi-lhe que não me massacrasse com as suas atrozes lições de piano, mas ele não me quis dar ouvidos e o pior é que tem razão. O Eduardo tem sempre razão.
Minha querida Madalena. O teu íntimo tem a sua grandeza e como tu encantas por demais. Gostas do que é desimportante, como os insectos ou o pó da memória das coisas. Gostas também das gentes desimportantes, as despessoas, como lhes chamas. Sonhas com a conquista de uma vida mais simples. Entanto, no escritório, ouves as descrições de corredores enormes, de carros grandes, de férias intermináveis, de vidas sem fim, esvazias esse olhar daquilo que te rodeia, imaginas estas paredes caiadas, e enche-las com o brilho que consegues trazer dos seus sonhos. Minha querida irmã. Agora, ao lembrar-me de ti, tenho uma espécie de sorriso brando, parecido com o sorriso que tu própria trazes nesses momentos.
A minha irmã mora no alto de uma Praça, na continuação jusante do corredor de prédios impossíveis de serem habitados por despessoas, mas daqui, consegue ver uma boa parte da cidade, os campos ao longe, o mar mais distante, contudo, a menor distância que não consegue ver sem ajuda, chega apenas até ao seu próprio coração, poucas dezenas de centímetros mais abaixo. Em algum momento do passado, Madalena foi uma menina, filha única e delicada, estimada pelos pais; mas, quando a conheci, já era uma mulher feita de uma dureza de carnes e de dores, que homem algum conseguirá perfurar. Ela precisa de mim.
Há um lugar aqui na sua casa, uma espécie de câmara clara - a câmara do tempo – é assim que ela lhe chama, mobilada com vagos móveis, onde ela está sempre mesmo quando nem está em casa, e onde tem, precocemente, um rosto de uma qualquer heroína de novo-romance, destituída de qualquer significado como de presença. Nesta sala é um fantasma que já nem corpo possui para ser reflectido no espelho colocado à sua frente. Recordo-me que Madalena montou este nicho no fim do apartamento, porque sentiu necessidade de se refletir em espelhos, para ter a certeza de que não estava dissolvida num nada. - Minha pobre irmã! - Não sabes que és tudo para mim? Trouxeste-me de volta da loucura e não o esquecerei, nunca.
Numa parede adjacente, encostado ao canto, encontra-se um piano que eu faço questão de tocar sempre que aqui venho. Raramente o faço e este instrumento tornou-se o meu Santo Graal. Todos me julgam louco ainda, só porque eu me atrevo a apontar o dedo a alguns que se dizem sãos. Mas não sou louco por isso. Sou louco porque tinha de o ser já. Não serão mais loucos os que se resignam a acharem-se sãos? – Não sei. Sei sim, que aquele seu piano nunca me julga, mesmo quando eu lhe envieso as notas perfeitas. A minha irmã também não, eu sei que não. Nunca mais.
O seu piano é todo preto, menos a conta certa de teclas brancas necessárias, e, ao centro as letras Steinway & Sons que sobressaem a dourado. Ainda nessa mesma parede, ao lado do piano, fica um móvel alto que, à primeira vista, parece ser de mogno, mas que, depois de observado com maior atenção, se conclui ser de nogueira muito escura. O móvel tem um tampo de mármore rosa, tingido de laivos brancos, que o divide em parte de baixo e parte de cima. Na parte de baixo: três gavetas e três portas, na parte de cima: duas prateleiras onde Madalena dispôs os mais importantes objectos da sua vida inteira: o seu diploma, emoldurado numa dúbia talha de oiro raspado, a boneca de trapos que a mãe lhe coseu de prenda aos cinco anos, um pisa-papéis mirabolante de cores, o retábulo de todos os santos possíveis a adorarem o menino, esculpido a golpes determinados de cinzel e formão pelo seu pai numa só peça inteiriça de carvalho, um par de óculos de fundo verde e baço, uma partitura do "Pedro e o Lobo" Opus 67 do Prokofiev, e uma moldura espaventosa que albergava uma fotografia de si mesma amarrada firme num abraço desprendido ao Dr. Andrade Magalhães, o pai da minha Eva.
Quando vi esta fotografia, foi quando juntei todos os pontos esparsos desta tragédia de merda que se chama a nossa vida.
Os raios violentíssimos dos últimos dias de Agosto, filtrados pelas cortinas de algodão espesso enchiam a divisão de uma luz martirizante que encruecia os olhos e a alma. Sentei-me em frente ao piano, endireitei as costas e toquei o Opus 67 do Prokofiev, o seu preferido. Senti que, em cada nota maravilhosa que eu acertava, se dissolviam todos os pequenos ódios insignificantes que nos afastaram estes longos anos. - Minha pobre e querida irmã, como eu te quero tanto.
Recordo-me também vagamente da presença do nosso pai, um patético saco testicular de ténues tentações, que não resistiu à vulgaridade e traiu a tua mãe, o triste miserável. Detesto todos aqueles que alguma vez te fizeram brotar uma só lágrima desses teus olhos maravilhosos. Por isso detesto também o teu falso segundo pai, aquele falso filho-da-puta do Dr. Andrade Magalhães, que se tornou pai de nós todos, ainda que verdadeiro, só o tenha sido para a Eva. Ela contou-me tudo Madalena, sabias? Tudo. Como em cada ano da sua infância, o foi descobrindo, e em como o florir das raparigas que lhe passavam pelos braços só tinham uma estação. No ano seguinte, eram substituídas por outros rostos de flores que, na estação anterior ainda eram meras garotas. E depois, por um mero acaso, eu fodi-lhe a filha verdadeira e ele, cabrão vingativo, seduziu-te a ti. É esta linha sanguínea de prazer que nos une agora. É nesta linha que reside toda a tragédia desta pequena história.
E para este homem, de cuja vil semente germinou a única mulher que a minha louca pila arrombou, para este homem que as contemplava, não passavam todas de vagas anuais cujo peso e esplendor se derramava efémero sobre a sua cama. – Como tu também foste, minha pobre, pobre irmã! Minha infeliz, ingénua irmã, desgraçadamente devassada pelo próprio homem que pôs neste mundo quem tu mais odeias! Pobre, pobre irmã.
Sabes, ainda ontem, ou terá sido há mais tempo? Já nem importa. Feito escritor, apresentei um romance meu, o primeiro, numa espécie de livraria, onde se oferece café, numa pequena rua da minha querida Coimbra. Sabes qual é? Sentado num banco de pé alto, para uma dúzia de mulheres com mais de sessenta anos, li excertos que nunca antes havia lido alto e, como se falasse apenas do romance, falei das ruas desta terra onde nasci e das pessoas com quem vivi. Falei de ti Madalena, a mulheres de cabelo pintado, com blusas em tons pastel, à dona da livraria, a um par de curiosos que entraram ao abrigo do frio e pelo cheiro acolhedor dos livros. Enquanto falava, sentia que me olhavam com um sorriso adormecido, como se estivessem congeladas noutro pensamento. A excepção era uma mulher de pescoço esticado para a frente, fato de treino cor de rosa, e um colar que destoava e que gritava alto não ser de fancaria, que sorria quando eu olhava na sua direcção. Era cedo, três e tal da tarde, disso lembro-me bem. Lá fora, havia um sol tímido e um tempo parado, uma estrada sem movimento, a avenida principal. Antes de terminar, li um excerto sobre sexo. Do único sexo que conheci. As velhas gostaram. Várias mulheres compraram o romance, dezasseis euros, e pediram-me para escrever o nome. A mulher do fato de treino cor de rosa esperou pelo fim. Estendeu-me o livro de maneira diferente, conhecia-me bem, e eu a ela.
- Eva! Foi só um instante. Meu Deus, um fugaz instante! E agora estás aqui. Não vieste quando me disseste, mas sempre vieste afinal.
- Sim, estou aqui. Foi um instante, mas um instante que deu fruto meu querido. Estou grávida, Eduardo.
- A sério? Tens a certeza? Isso é maravilhoso!
- Pois é.
- Mas, tens mesmo a certeza?
- Tenho, Eduardo, não sejas cansativo.
- Mas...estás aqui, agora, a dizer-me isso. E nós... nós... Já se passaram tantos anos. Não posso...Tenho de te perguntar. O filho é meu?
- Pois de quem haveria de ser, minha louca cavalgadura? Estás a insinuar que te meti os cornos alguma vez? Tu és o amor da minha vida.
- Merda Eva! Podes-me chamar-me de louco se quiseres, mas não me tomes por estúpido por favor. É uma pergunta mais que pertinente, não achas? Já se passaram anos e anos. É biologicamente impossível. Além do mais, tu és casada certo? O teu marido chama-se Alexandre não é verdade?
- Ora, ora meu querido. Esse boneco do Alexandre nunca deixou nenhum bichinho no meu útero. Ele usa camisinha sempre, tanto comigo, como com todas as outras com quem fode. Usa camisinha com a tua irmã, eu imagino, para não deixar um rasto permanente que lhe estrague os projectos políticos. Não o negues. Eu sei que ele e a...esqueçamos isso agora. Eduardo, esta criança tem de ser tua meu querido, mesmo que nem tenhas sido tu a gerá-la, tem de ser tua. Se alguma vez me amaste não me recuses isto, por favor.
O piano agora, parece até tocar sozinho, e nenhuma nota é mais ou menos falha que a anterior. Pareces tão feliz ai sentada a ouvir-me, e eu, eu nem me atrevo a perturbar-te o sorriso com estas notícias minha irmã. Como te poderei dizer que irei ser pai de uma criança que, sem saberes tu já odeias?




Capítulo XIII
Carolina Lemos

Madalena precisou de espairecer um pouco, continuava a sentir uma lama interior que lhe toldava as entranhas. Lembrou-se de ir para a Foz um pouco, passear à beira-mar, enquanto deixava Eduardo a descansar um pouco mais. Eduardo tinha tido uma noite muito agitada, tendo Madalena que ir abaná-lo várias vezes e aconchegá-lo, devido aos delírios constantes que habitavam a noite de Eduardo. Ainda por cima ouviu várias vezes Eduardo repetir aquele nome…Aquele nome que desde criança ouvia como a espada que comandava o seu destino… Eva! Eva! Eva!
Estava um dia de chuva e vento forte, aquele vento agreste que trespassa a alma sem piedade. Exactamente o que Madalena precisava para expiar toda aquela água suja que sentia dentro de si. Sabia que não tinha tido muitas escolhas na vida, sempre se sentiu levada por um fio qual marioneta na mão de todos os homens que a usaram, sim, sentia-se usada. Mas será que não teria havido um dia em que podia ter escolhido outro caminho?
Sentia-se usada até pelo palerma do Alexandre, que se servia dela para se sentir mais macho, mais viril. Podia ter sido diferente. Podia ter sido uma linda história de amor, porque Madalena podia amá-lo, como podia ter amado outro homem qualquer, desde que ele a olhasse fundo nos seus olhos cor de algas e tivesse visto o mar infinito debaixo da cobertura ondulante das algas ao sabor da corrente errante. Sim, uma errante, era assim que se sentia. Porra de vida. Ia ser sempre assim?
Depois de Alexandre iria encontrar outro homem para outro jogo de quem usa mais quem? Sim, porque Alexandre era já um xeque-mate à vista, depois de ter entregue todo o material a Rogério.
Ai o dinheiro, a bela sedução do dinheiro. Mas será no que no fundo aceitou todo aquele negócio com Rogério só por dinheiro? Ou também para mostrar a Alexandre que ele não era o homem mais poderoso do mundo como ele gostava de sentir que era, tanto na cama, como nas reuniões políticas onde se sentia o deus do poder?
Madalena pensava nisto tudo enquanto caminhava por aquele passeio, bem perto da borda, separando-a do abismo do mar apenas o equilíbrio ténue que Madalena ainda tinha dentro de si. O vento continuava a soprar, qual tornado sem fim, bem forte, bem cortante, qual assassino de emoções.
Na outra ponta da cidade, Alexandre conduzia furiosamente pelas ruas do Porto. Sentia-se numa roleta, sem saber a qual número ia parar. Até há poucos dias, sentia que tinha o mundo nas mãos, que era só uma questão de tempo para ter tudo o que queria. Eva, Madalena, o poder político, que belo triunvirato de adrenalina que lhe corria nas veias e no sémen, num jorrar de conquistas sucessivas, tal como um general romano em campanha.
O carro derrapava nas curvas. Alexandre nem olhava para o lado, atravessando um e outro sinal vermelho sem contemplação. Aquele email. Aquele maldito email que tinha visto ao acordar, no seu telemóvel, junto de Daniela, a secretária do stand de automóveis, que sempre cobiçara e com quem tinha mantido um flirt que o excitava. Tinha-a encontrado por acaso ao pé de um bar onde tinha ido relaxar um pouco depois de mais uma reunião intensa e com alguma crispação no ar por parte dos seus opositores e para pensar um pouco no que fazer com o seu casamento e com Madalena que não tinha dado mais sinais de vida. E tinha sido mais uma noite em que Alexandre se sentira o dominador…até acordar com aquele email. Aquele maldito email. Como é que Madalena tinha sido capaz?
Alexandre sabia que era uma questão de horas até aquele email começar a surtir os seus efeitos. Aquele maldito email. Tinha visto os destinatários para quem tinha sido enviado o email e sabia que o seu mundo estava preso apenas pelo passar dos minutos e horas…Bastava o ponteiro do relógio mover-se um pouco mais e o terramoto que Alexandre nunca previra iria originar um tsunami de proporções gigantescas. Aquele maldito email.
Madalena! Como tinhas sido tu capaz de tamanha façanha? De tamanha traição! Traição, ignóbil palavra que Alexandre tinha adicionado no vocabulário do casamento perfeito. Perfeito até aquele dia, em que se tinha atirado para o emaranhado dos olhos cor de algas de Madalena. Cor de algas…que curioso, nunca tinha percebido qual era a cor verdadeira dos olhos daquela mulher que o consumira num desejo sem fim.
E só ali, em pleno excesso de velocidade, sem ouvir as buzinas dos outros carros, é que tinha percebido que aquele brilho era de um verde-alga, passando pelo vermelho-paixão que tingia algumas algas também. Alexandre sentia agora que se tinha deixado cair num redemoinho de acontecimentos, do qual dificilmente sairia sem grandes consequências. Traição, traição…era a palavra que Alexandre repetia incessantemente enquanto carregava no acelerador um pouco mais. Eva, como te pude trair assim?
Eva, Eva…serás tu a minha única salvação? Será que me irás conseguir perdoar, será que conseguiremos recuperar algo do que deixei afogar na luxúria?
Onde estás tu Eva? Estarás ferida de morte, ou conseguirei de alguma maneira trazer-te até mim de novo e juntos faremos desaparecer as cinzas que este incêndio deixou?
E o carro continuava a rolar sem destino pelas ruas molhadas de uma manhã fria mas ao mesmo tempo escaldante na vida de Alexandre.
Oh Eva! Oh Madalena…! Oohhhh…. e Alexandre tentou agarrar o volante com força e reduzir a velocidade de modo a evitar o choque com aquele camião que tinha aparecido de repente vindo daquela rua que Alexandre nem sabia que existia. Mas o carro rodopiou no piso molhado pela chuva castigadora que parecia ser a mão de um deus a lavar os pecados dos que caíram nas malhas das redes da tentação.
E o carro topo de gama, último modelo da marca preferida de Alexandre, no seu azul-escuro a lembrar o mar profundo, rodopiou mais um pouco, sem controle, capotou e embateu a uma velocidade estonteante numa árvore, que deixou cair os seus ramos, por cima daquele carro, feito jazigo de um destino sem freio. Da fronte de Alexandre escorria um fio de sangue, assim como dos seus lábios e dos seus órgãos internos feitos emaranhado depois de tal impacto. Ainda saia fumo do motor quando o INEM chegou. Estará vivo? Perguntavam os transeuntes curiosos. Não me parece, diziam os mais pessimistas. Já viste como o carro ficou? Este já não se safa! Devia vir bêbado, mais um!- diziam outros.
Madalena estacou o passo, e virou-se frente para o mar. Fechou os olhos e sentiu nesses olhos cor de algas, o chamamento das marés impetuosas que batiam contra o paredão. Sentiu os seus pés a quererem levantar do chão e os braços a quererem abraçar o mar que continuava a chamá-la para um mergulho de redenção. E a minha vida acaba assim? Envolta em marés? Mas assim acabava tudo e deixava de vez de ser marioneta. Neste último acto da minha vida, seria eu a decidir o meu final. Era tentador este chamamento libertador do mar. E Madalena inclinou-se mais para a frente, sentido a força da gravidade a ganhar a luta com a sua vida…. Nesse instante ouviu-se um grito vindo do outro lado do passeio….
Eduardo acordou sobressaltado. Só se lembrava das palavras de Eva… - Grávida, estou grávida… Seria verdade ou tudo apenas fruto da sua loucura?




Capítulo XIV
Luísa Vaz Tavares

Um impulso chamava-o para um qualquer lugar. Eduardo não sabia para onde ia mas sabia que tinha que ir. Eva, Madalena, as duas gritavam pela sua ajuda, como se fosse, ele, o salvador que tinha a vida de ambas nas mãos. As ruas que desaguavam na foz encontravam-se absolutamente devastadas pela tempestade que as assolara, tinha sido uma noite dos demónios. Talvez por isso, também, o seu sono tivesse sido tão atormentado. Mas a verdade é que a ansiedade continuava, apesar de já estar bem desperto. O bater das ondas latejava-lhe nas têmporas… e Madalena…
- Não!... Madalena, não faças isso!
Madalena sobressaltou-se com o grito. Familiar e a tocar-lhe o coração. Só aquela voz tinha a força para a despegar do apelo das marés. Hesitante, entre o magnetismo do mar e o olhar de Eduardo, que naquele momento reflectia toda a inquietude da cor incerta das algas, cambaleou para os braços do irmão. Querido Eduardo, tão frágil e ao mesmo tempo tão forte, era a sua única tábua de salvação. Não lhe fez perguntas, nem sequer lhe lançou um olhar recriminador, limitou-se a abraça-la e a consumir-lhe as lágrimas. O que sendo tão pouco era tanto. Dos olhares de soslaio, dos silêncios súbitos à sua passagem, estava ela farta. Ninguém… ninguém tinha o direito de julgar os seus actos ou de questionar as suas opções, quando era ela própria que se sentia uma perdida dentro de si mesma. Se podia ter seguido por outros caminhos, claro que podia, mas a vida é feita de escolhas e aquelas tinham sido as suas escolhas. Bem ou mal, a sua vida era o destino do caminho que um dia havia escolhido. Mas, vendo bem, ainda tinha muito caminho para percorrer. E o rumo poderia sempre ser alterado. Era tudo tão mais claro, nos braços de Eduardo.
Indiferentes a tudo o que se passava à volta, os dois deixavam fluir o seu entendimento perfeito, quando o telemóvel de Eduardo saltou numa gritaria desesperada. Era Eva. O que quereria ela àquela hora da manhã? Eduardo percebeu que apesar do alívio por ter encontrado Madalena, a ansiedade que o tinha feito saltar da cama em sobressalto continuava a corroer-lhe os sentidos. Desfez-se do abraço e afastou-se para atender.
- Eva, estás bem?
Do outro lado, a voz de Eva soou aflita. Disléxica e confusa, pronunciava palavras soltas que não davam para Eduardo entender exactamente o que se passava, só percebeu que tinha acontecido algo de grave com Alexandre. Um acidente.
- Eva, diz-me onde estás. Eu vou ter contigo.
Era impossível a Madalena não ouvir a conversa do irmão, ainda para mais que à medida que as palavras surgiam do outro lado da linha a inquietação emergia em todo o seu corpo. Assim, quando Eduardo desligou, a pergunta foi inevitável.
- Eva está bem?
- Foi Alexandre, ele teve um acidente e Eva está no hospital. Madalena, tu estás bem? Eu vou lá ter com ela.
- Eu também vou.
Era a resposta que Eduardo menos esperava, e não sabia se aquela era uma boa ideia, mas tinha pressa e sabia que se tentasse demover Madalena iria perder bastante tempo e provavelmente não o conseguiria.
Eva esperava-o no átrio do serviço de urgência e sentiu um choque quando viu Madalena, mas naquele momento tudo o que precisava era o conforto dos braços de Eduardo e, sem sequer olhar para a colega, correu a refugiar-se no peito do homem que agora sentia como seu. Alexandre agonizava entre a vida e a morte e ela estava preocupada, claro, mas era de Eduardo que ela precisava. Desde o reencontro, em Coimbra, que tudo se tornara claro no seu espírito e na sua alma. Alexandre tinha sido um grande engano na sua vida. Nunca a respeitara e, talvez, nunca a tivesse amado mesmo. Tudo o que queria era ascender na sua carreira política e promover o próprio ego. Ela, sim, ela tinha-o amado. Ou pelo menos assim o pensava. Tinha sido o único a quem havia permitido que entrasse nas profundezas do seu íntimo. Mas Eduardo tinha entrado sem permissão. Porque não precisava. Eduardo tinha entrada natural em todo o seu ser, Eduardo era a metade que a preenchia na sua total plenitude.
Alguém, na recepção, procurava os acompanhantes do doente Alexandre Coutinho e Madalena, perante o alheamento de Eva, apresentou-se, ela, como familiar. O médico esperava-a para lhe dizer que não havia mais nada a fazer. O coração de Alexandre ainda batia mas iria parar a qualquer momento. E ela pediu para estar com ele uma última vez.
Madalena aproximou-se da cama onde Alexandre soltava os últimos suspiros, tensa e sem saber o que fazer. Agarrou-lhe a mão.
- Porquê Alexandre? Porquê este desfecho tão mais que esperado? Sempre te achaste o dono do mundo e ele largou-te como larga todos os comuns mortais.
A linha recta no monitor cardíaco e o barulho dos alarmes indicou que tinha chegado o fim. Eva e Eduardo esperavam-na, ainda no átrio.
- Sinto muito, Madalena. – As duas encararam-se como que reconhecendo um mútuo engano de que ambas tinham sido vitimas.
No velório, quase só as figuras do partido e mais alguns amigos e inimigos da política. E Eva com Eduardo, e Madalena. Que nem sabia ao certo porque ali estava. Eva tinha mencionado uma eventual suspeita de atentado, e uma investigação que tinha como alvo um tal Rogério Estorninho dos serviços secretos do governo central. Tinha de tirar tudo a limpo, que a última coisa que precisava era ser implicada num crime, àquela altura dos acontecimentos.
Eva aproximou-se e Madalena ofereceu-lhe um sorriso lacónico.
- Tivemos os destinos cruzados logo à nascença, não é Madalena?
- Pois… quem diria que, depois de tudo, tu e o meu irmão seriam almas gémeas. Parece que vamos ser da família, Eva.
- Nós sempre fomos da família, Madalena. Temos o mesmo sangue a correr nas veias.
Madalena sempre havia nutrido uma certa desconfiança relativa à permanência da mãe em Africa mesmo depois de o pai ter regressado a Portugal, mas nunca tinha tido coragem para esmiuçar o assunto. Na verdade, a possibilidade quase certa de ser irmã de Eva não lhe agradava. Aquela sonsa de nariz empinado não podia ter tudo, enquanto ela não tinha nada. Afinal, tinham sido geradas no mesmo útero.
- Como é que sabes?
- Era ainda criança. Ouvi uma conversa entre os meus pais… quer dizer, entre o meu pai e a esposa dele. Ela não podia ter filhos e então concordou em aceitar-me como filha desde que tudo ficasse em segredo.
Madalena, impávida, não mostrava qualquer reacção.
- Porque me estás a dizer isso agora?
- Eu e Eduardo vamos ter um filho…


Fim



          Publicado em Livro:  Acrescenta Um Ponto Ao Conto - Vol I

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