17/11/17

Em Busca da Verdade - Capítulo IV

Fotografia © Teresa Madeira 

Trocaram um “Boa noite” seguido do já habitual silêncio.
 “Que caderno é esse?” pergunta João, após alguns instantes.
Sofia não lhe responde e vira costas, levando o caderno consigo. Tropeça nos próprios pés como tropeçam os seus pensamentos. Não tinha tempo a perder com um casamento que já nada tinha para dar. Tinha uma parte de si nas mãos. Peças de um puzzle que durante anos se esconderam em segredos, mentiras e lágrimas que ela teimava em querer entender. Não ia desistir, não agora! Estava farta de mentiras. Toda a sua vida era uma mentira, a família, o casamento. Era por si própria que fazia isto, apenas e só por si. Depois de anos dedicados aos outros, chegara a sua vez.
Sentia nestas cartas o poder de um espelho, que finalmente lhe devolveria a imagem correta e nitidamente focada. O completar de espaços em branco numa história já escrita e a certeza de um resto de livro com princípio, meio e fim. Era tempo de ser egoísta. Tinha finalmente à disposição as respostas e nelas depositava a resolução de toda a sua vida, inclusivamente o casamento com este homem que um dia encontrara, mas não mais reconhecia.

À sua frente, a mala.
Maldita mala! Era obstinada esta mulher. Sempre fora assim! Toda a vida saltitando entre pequenas obsessões. Ora lia desenfreadamente um livro, ora ouvia repetidamente o mesmo disco, ora pintava, ora cosia, ora… Maldita mala! Só a ele não aparecia mala nenhuma!
Os dias iam passando como peças de tetris mal encaixadas que se acumulam até ao limite. Deambulava durante horas na certeza de não querer voltar para casa, mas sabendo também que a nenhum outro lugar pertencia. Que mania esta de eternamente procurarmos saber onde pertencemos, de onde vimos, quem somos? A inquietude de uma constante busca de significados ou de estes lhe serem exigidos. Seria tudo tão simples se a vida pudesse ser vivida tranquilamente na rotina do acomodado, que na monotonia é feliz. Porque teria de ser assim tão negativo, não ter ambições, não saber o que se quer? Não seria a escolha de dominar cada um dos seus dias um acto de extrema inteligência? Não. A toda a hora os inquietos sonhadores lhe atribuíam sonhos que não tinha, preocupações que não eram suas e ambições que nunca sentira. Estava farto. Deveria, certamente, agradecer ao seu excelentíssimo sogro Miguel a proeza de ter criado uma filha inquieta, que exige a seu lado um homem quase tão capaz como o seu pai!
Tantas perguntas assombravam João e nenhuma resposta tinha. Nunca tivera. Como poderia ter agora? Sabia que não era feliz e desconhecia o que era preciso para o ser.
Estaria doente? Acabaria como a sua sogra dando à costa de uma qualquer praia?
Instantaneamente imaginou-se em frente ao mar…
A brisa a acarinhar-lhe os cabelos e as pequenas ondas a refrescarem-lhe os já arrefecidos pés. O sol, ao longe, a pôr-se, fugindo envergonhado do que ali estaria prestes a acontecer.
Fotografia © Teresa Madeira 
Lentamente, vê-se a iniciar a caminhada mergulhando os pés e todo o corpo na água gelada. Sente prazer no frio que lhe trava a respiração porque é no castigo e na dor que se revê. Imagina-se a ser levado pelas águas que sem demora o embrulham em ondas poderosas e que contra as rochas o irão chicotear. Por instantes, flashes da sua vida começam a desfilar como se de um filme se tratasse. Flashes de um casamento que já foi feliz, de jantares onde gargalhadas e sorrisos saciavam o coração, fazendo esquecer a comida na mesa. Começa a ser enrolado pelas ondas, engolindo água…
“Não! Não quero morrer assim! Mais depressa espetaria com um tiro!”
Que raio se teria passado na cabeça de Gabriela para acabar com a vida desta maneira? Seria afinal esta obsessão de Sofia aceitável?
Sofia…
A eloquência do sonho atordoara-o do motivo principal que o levara até ali… Sofia.
E uma raiva daquelas que nos rasgam o estômago, como quem rompe caixas mal embrulhadas em fita-cola. Um calor daqueles que nos sai pelos olhos e volta a entrar pelas narinas até ao estômago já rasgado. Um arrepiar de pelo, como gato ameaçado no seu território, nos seus direitos, nas suas necessidades! A revolta do desinteresse, da indiferença que ele não suportava mais, cresceu de tal forma que tomou conta dele.
Olhou para a mala…. Maldita mala! Quanto tempo demoraria ler aquilo tudo? Quanto tempo teria ele de esperar por um pouco de atenção? Como podia algo que não existia até então, num repente passar a ser o centro das suas vidas? Como poderia a morte sobrepor-se à vida?
A mala ilustrava agora, para João, o epicentro de todos os seus problemas. A raiva instalou-se, a raiva cresceu e a raiva ganhou. Furioso abriu-a, tirou uma carta, meteu-a no bolso do casaco e saiu porta fora…

Teresa Madeira

6 comentários:

  1. Escrita bem construída a par de um seguimento da história que nos deixa com vontade de quero mais. Gostei especialmente de ter um pouco da visão das coisas por parte do marido de Sofia.
    Parabéns, Teresa!

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  2. Toda história tem forçosamente dois lados. Agora nossa curiosidade volta-se para o sentir do João. Atiça-nos a sede por continuar a desvendar o desenrolar deste enredo. Parabéns, Teresa! A contar os dias para o próximo passo!

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  3. Boa, Teresa! Nova ponta para agarrarmos... Parabéns

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  4. O quer dizer que ainda não tenha sido dito.
    Parabéns! Já todos o disseram.
    Que «escreve muito bem». Claro que sim…
    Temo ser repetitivo, mas: - Parabéns! Escreves muito bem!
    .
    E, sobre a “maldita mala” (às vezes tenho cada uma…) lembrei-me da “maldita cocaína”.
    Desculpa Teresa mas, toda aquela ansiedade e. Pronto. Não se fala mais nisto.

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  5. Afinal, os receios eram infundados. Podia não ter escrito mais que uma tese de fim de curso. Agora consagrou-se escritora de mão-cheia. Corre-lhe nas veias... será herança genética? ;) Grande desafio João Madeira.

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  6. É claro que gostei e muito, o conto continua vivo e cheio de mistério como convém a um bom conto
    Parabéns Teresa Madeira

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