Fotografia © Teresa Madeira |
Trocaram um “Boa noite” seguido do já
habitual silêncio.
“Que
caderno é esse?” pergunta João, após alguns instantes.
Sofia não lhe responde e vira costas, levando
o caderno consigo. Tropeça nos próprios pés como tropeçam os seus pensamentos.
Não tinha tempo a perder com um casamento que já nada tinha para dar. Tinha uma
parte de si nas mãos. Peças de um puzzle que durante anos se esconderam em
segredos, mentiras e lágrimas que ela teimava em querer entender. Não ia
desistir, não agora! Estava farta de mentiras. Toda a sua vida era uma mentira,
a família, o casamento. Era por si própria que fazia isto, apenas e só por si.
Depois de anos dedicados aos outros, chegara a sua vez.
Sentia nestas cartas o poder de um espelho,
que finalmente lhe devolveria a imagem correta e nitidamente focada. O
completar de espaços em branco numa história já escrita e a certeza de um resto
de livro com princípio, meio e fim. Era tempo de ser egoísta. Tinha finalmente à
disposição as respostas e nelas depositava a resolução de toda a sua vida,
inclusivamente o casamento com este homem que um dia encontrara, mas não mais
reconhecia.
À sua frente, a mala.
Maldita mala! Era obstinada esta mulher.
Sempre fora assim! Toda a vida saltitando entre pequenas obsessões. Ora lia
desenfreadamente um livro, ora ouvia repetidamente o mesmo disco, ora pintava,
ora cosia, ora… Maldita mala! Só a ele não aparecia mala nenhuma!
Os dias iam passando como peças de tetris mal encaixadas que se acumulam
até ao limite. Deambulava durante horas na certeza de não querer voltar para
casa, mas sabendo também que a nenhum outro lugar pertencia. Que mania esta de
eternamente procurarmos saber onde pertencemos, de onde vimos, quem somos? A
inquietude de uma constante busca de significados ou de estes lhe serem exigidos.
Seria tudo tão simples se a vida pudesse ser vivida tranquilamente na rotina do
acomodado, que na monotonia é feliz. Porque teria de ser assim tão negativo,
não ter ambições, não saber o que se quer? Não seria a escolha de dominar cada
um dos seus dias um acto de extrema inteligência? Não. A toda a hora os inquietos
sonhadores lhe atribuíam sonhos que não tinha, preocupações que não eram suas e
ambições que nunca sentira. Estava farto. Deveria, certamente, agradecer ao seu
excelentíssimo sogro Miguel a proeza de ter criado uma filha inquieta, que
exige a seu lado um homem quase tão capaz como o seu pai!
Tantas perguntas assombravam João e nenhuma
resposta tinha. Nunca tivera. Como poderia ter agora? Sabia que não era feliz e
desconhecia o que era preciso para o ser.
Estaria doente? Acabaria como a sua sogra
dando à costa de uma qualquer praia?
Instantaneamente imaginou-se em frente ao mar…
A brisa a acarinhar-lhe os cabelos e as
pequenas ondas a refrescarem-lhe os já arrefecidos pés. O sol, ao longe, a
pôr-se, fugindo envergonhado do que ali estaria prestes a acontecer.
Lentamente,
vê-se a iniciar a caminhada mergulhando os pés e todo o corpo na água gelada. Sente
prazer no frio que lhe trava a respiração porque é no castigo e na dor que se
revê. Imagina-se a ser levado pelas águas que sem demora o embrulham em ondas
poderosas e que contra as rochas o irão chicotear. Por instantes, flashes da
sua vida começam a desfilar como se de um filme se tratasse. Flashes de um
casamento que já foi feliz, de jantares onde gargalhadas e sorrisos saciavam o
coração, fazendo esquecer a comida na mesa. Começa a ser enrolado pelas ondas,
engolindo água…
Fotografia © Teresa Madeira |
“Não! Não quero morrer assim! Mais depressa espetaria
com um tiro!”
Que raio se teria passado na cabeça de
Gabriela para acabar com a vida desta maneira? Seria afinal esta obsessão de
Sofia aceitável?
Sofia…
A eloquência do sonho atordoara-o do motivo
principal que o levara até ali… Sofia.
E uma raiva daquelas que nos rasgam o
estômago, como quem rompe caixas mal embrulhadas em fita-cola. Um calor
daqueles que nos sai pelos olhos e volta a entrar pelas narinas até ao estômago
já rasgado. Um arrepiar de pelo, como gato ameaçado no seu território, nos seus
direitos, nas suas necessidades! A revolta do desinteresse, da indiferença que
ele não suportava mais, cresceu de tal forma que tomou conta dele.
Olhou para a mala…. Maldita mala! Quanto tempo
demoraria ler aquilo tudo? Quanto tempo teria ele de esperar por um pouco de
atenção? Como podia algo que não existia até então, num repente passar a ser o
centro das suas vidas? Como poderia a morte sobrepor-se à vida?
A mala ilustrava agora, para João, o
epicentro de todos os seus problemas. A raiva instalou-se, a raiva cresceu e a
raiva ganhou. Furioso abriu-a, tirou uma carta, meteu-a no bolso do casaco e
saiu porta fora…
Escrita bem construída a par de um seguimento da história que nos deixa com vontade de quero mais. Gostei especialmente de ter um pouco da visão das coisas por parte do marido de Sofia.
ResponderEliminarParabéns, Teresa!
Toda história tem forçosamente dois lados. Agora nossa curiosidade volta-se para o sentir do João. Atiça-nos a sede por continuar a desvendar o desenrolar deste enredo. Parabéns, Teresa! A contar os dias para o próximo passo!
ResponderEliminarBoa, Teresa! Nova ponta para agarrarmos... Parabéns
ResponderEliminarO quer dizer que ainda não tenha sido dito.
ResponderEliminarParabéns! Já todos o disseram.
Que «escreve muito bem». Claro que sim…
Temo ser repetitivo, mas: - Parabéns! Escreves muito bem!
.
E, sobre a “maldita mala” (às vezes tenho cada uma…) lembrei-me da “maldita cocaína”.
Desculpa Teresa mas, toda aquela ansiedade e. Pronto. Não se fala mais nisto.
Afinal, os receios eram infundados. Podia não ter escrito mais que uma tese de fim de curso. Agora consagrou-se escritora de mão-cheia. Corre-lhe nas veias... será herança genética? ;) Grande desafio João Madeira.
ResponderEliminarÉ claro que gostei e muito, o conto continua vivo e cheio de mistério como convém a um bom conto
ResponderEliminarParabéns Teresa Madeira