Capítulo
I
Pedro
Miguel Ferreira
Apartamento
501 do Potengi Flat
Vasco olhou pela enésima vez para o
relógio, pousado em cima da mesa de cabeceira. Passavam poucos minutos das três
da manhã. Deitada a seu lado, Patrícia dormia profundamente, ocultando o seu
corpo nu com o lençol. Os longos cabelos negros espalhavam-se na almofada
formando uma bizarra figura de aspecto quase geométrico. O silêncio do quarto
era apenas interrompido pelo suave zumbido do ar condicionado. Vingança era a
única coisa que ecoava, de forma ruidosa, na mente de Vasco.
Incapaz de adormecer, levantou-se
vagarosamente para não fazer barulho e aproximou-se da janela do quarto. Uma
forte luz de néon, anunciando uma tal Drogaria Globo no piso térreo
do hotel, feriu-lhe a visão habituada à penumbra do aposento. A cidade estava
deserta àquela hora, como que esmagada pelo forte calor que ainda se fazia
sentir mesmo de madrugada. Apenas as luzes intermitentes dos semáforos
conferiam um toque de vitalidade ao cenário desolador. Na linha do horizonte,
ele conseguiu avistar os cumes das enormes dunas que cercavam a área urbana.
Aquelas enormes massas de areia ficavam prateadas sob a luz do luar e
transmitiam uma estranha sensação de claustrofobia. Podia-se facilmente
imaginar que as dunas poderiam engolir a cidade e todos os seus habitantes a
qualquer momento. Vasco pegou no maço de tabaco, acendeu um cigarro e aspirou
profundamente. Tentou ordenar, mentalmente, a sequência de acontecimentos dos
últimos dias.
Duarte, o seu irmão mais novo, residente
no Brasil há quatro anos, tinha desaparecido em circunstâncias misteriosas. O
seu jipe foi encontrado abandonado, nas imediações do forte dos Reis Magos. Um
mês e meio de investigação policial não resultou em nenhuma solução para o caso
e as autoridades diplomáticas tinham sido inoperantes até à data. Não tinha
sido encontrado nenhum corpo nem havia registo de pedido de resgate. Três
semanas após o desaparecimento do irmão, Vasco solicitou uma licença sem
vencimento no trabalho, abandonou a pacatez da sua casa em Colares e viajou
rumo a Natal, com a esperança de rastrear o paradeiro de Duarte e acalmar a
angústia de toda a sua família. Rapidamente Vasco apercebeu-se que tinha
mergulhado num labirinto, com imensas bifurcações que não conduziam a lado nenhum.
As forças policiais não pareciam muito empenhadas na investigação. Para eles,
tornava-se evidente que o desaparecimento do português estava relacionado com
os habituais casos de estrangeiros residentes, que muitas vezes se viam
envolvidos em problemas relacionados com drogas, turismo sexual ou
branqueamento de capitais. A imprensa local alinhava pelo mesmo diapasão,
lançando uma vaga de insinuações de teor xenófobo, sobre a recente vaga de
estrangeiros que se tinham instalado no nordeste brasileiro durante os últimos
anos. Ainda para mais, o seu irmão Duarte era sócio-gerente do Dom Café, uma
conhecida casa nocturna da cidade, frequentada sobretudo pelos filhos das
elites locais, facto que aumentava ainda mais o número de boatos em seu redor.
O sócio do seu irmão era Giuseppe, um italiano natural de Lecce. Um homem de
cerca de quarenta anos e com um vago aspecto de hooligan. Era alto, tinha
o cabelo rapado e ostentava umas quantas tatuagens nos braços. Sobre a cintura
pendia-lhe uma pequena barriga que dava os seus primeiros sinais de flacidez. O
queixo quadrado e uns olhos verdes e felinos, encaixavam-se num rosto
bronzeado, conferindo um toque de agressividade ao seu perfil. Inicialmente
tinha sido apontado como um potencial suspeito, mas não tinha sido possível
reunir provas suficientes contra ele. Vasco já tinha tido oportunidade de
conversar com ele por duas vezes. Ficou com a ideia de que era um sujeito
evasivo, que irradiava uma certa aura de maldade, tentando claramente ocultar
factos relacionados com o estilo de vida que Duarte tinha no Brasil e que
poderiam estar na base do seu desaparecimento.
Patrícia Dantas, uma jornalista de um
canal de televisão regional, parecia ser, até então, a única pessoa disposta a
ajudá-lo naquela busca frenética. Poucos dias após a chegada de Vasco a Natal,
ela tinha ido procurá-lo no hotel, naquele tórrido início de Fevereiro. Ele
tinha feito questão de que a sua estadia não passasse despercebida. Seria forma
de atrair maior atenção para o caso, encetar contactos com a comunicação
social, pressionar as autoridades competentes e abrir a possibilidade de obter
informações de outras fontes. Também ela parecia impressionada com a lentidão
da investigação policial em relação a um caso de contornos tão estranhos.
Acabaram por se envolver de forma muito rápida e quase selvagem, após alguns
dias em que se dedicaram a estudar o caso numa relação de bastante proximidade.
A beleza, dinamismo e inteligência de Patrícia tinham seduzido Vasco de modo
avassalador. No entanto, aquela noite tinha sido crucial para confirmar as
suspeitas de Vasco em relação ao italiano. E uma das variáveis do enigma tinha
surgido de forma surpreendente e dolorosa.
Vasco saiu da janela e avançou
cautelosamente para o guarda-roupa. Procurou o revólver que tinha comprado
clandestinamente no problemático bairro de Nazaré, localizado na zona oeste da
cidade, para sua protecção e que ele tinha escondido no meio das suas roupas.
Com a arma na mão, foi-se aproximando da cama enquanto relembrava os
acontecimentos da noite anterior. Durante o jantar, num restaurante na Av.
Afonso Pena, Vasco teve a estranha sensação de estar a ser vigiado.
Um Ford Fiesta branco, com vidros escurecidos, tinha passado três
vezes em frente do restaurante. Patrícia, que o acompanhava, parecia
particularmente inquieta e estava pouco faladora. Após a refeição, ela
retirou-se para a casa de banho e deixou o seu telemóvel em cima da mesa, após
ter atendido um breve telefonema de uma colega da redacção. Erro infantil. Dois
minutos depois, ele escutou o sinal sonoro de recepção de uma mensagem escrita.
Vasco não resistiu à curiosidade e ao sentimento de desconfiança que o
consumia. Com as mãos suadas pelo nervosismo, pegou no telefone e leu o
conteúdo da mensagem.
- Já conseguiu descobrir quais as pistas
que esse idiota anda seguindo?
Sentiu uma ligeira tontura ao descobrir
que Giuseppe era o remetente da mensagem. Instintivamente, apagou a mensagem.
Quando ela regressou para a mesa, ele preferiu não lhe dizer nada e optou por
sair dali o mais rapidamente possível. Iria sentir-se mais seguro no hotel e
necessitava de ganhar tempo para pensar sobre tudo aquilo. Porém, no regresso,
ele sentiu falta de coragem para pedir explicações a Patrícia. Sentia um nó na
garganta. Precisava de agir com frieza e delinear uma estratégia muito bem
calculada.
Com o corpo a tremer, Vasco, subiu para
cima da cama e encostou o cano da arma na nuca de Patrícia. A ansiedade e o
desespero tinham tomado conta do seu raciocínio. Agora, ela iria ter muita
coisa para lhe explicar.
Capítulo
II
Carolina
Lemos
- Vasco?!? – Que estás a fazer?
Larga-me, gritou Patrícia assustada, ao acordar com o toque frio da arma na sua
nuca.
- Vá, minha querida, agora é tempo de
explicares direitinho mas direitinho mesmo, qual é o teu papel nesta história!
Não vim cá para fazer papel de palhaço nem para ser enganado por uma catraia
como tu! – Disse vermelho de cólera Vasco, cuspindo as palavras bem perto do
ouvido de Patrícia.
Maldito dia em que Duarte tinha tido a
ideia de se mudar para o Brasil, pensava Vasco enquanto sacudia a cabeça de
Patrícia numa fúria desenfreada. Mas Duarte sempre fora assim. Aventureiro,
rebelde e um pouco inconsequente. E curioso, sempre tinha sido Vasco a safá-lo
de todos os problemas que Duarte arranjava.
E novamente, Vasco tinha vindo tentar
salvar o irmão…Se não fosse tarde demais já…
- Fala minha cabra, fala de uma vez.
Diz-me lá como é que o Giuseppe te paga para lhe dares informações sobre as
minhas investigações – vociferou Vasco.
- Não sei de que falas – titubeou
Patrícia, debatendo-se contra as mãos pesadas de Vasco. Como podes acusar-me de
uma coisa destas, se tudo o que tenho feito é para te ajudar? Eu não dou
informações nenhumas ao Giuseppe, pelo contrário… Eu tenho conseguido
informações valiosas para te ajudar!
- Sim, sim, não penses que me continuas
a enganar. Eu vi a mensagem no teu telemóvel – e dito isto, Vasco encostou com
mais força a arma, já carregada, agora bem perto do crânio de Patrícia.
- Não é nada disso. Deixa-me explicar
por favor. Eu também quero descobrir o paradeiro do Duarte. Muito mais do que
tu podes pensar. Eu estou fazer jogo duplo com o Giuseppe. Eu não te estou a
enganar, juro. Juro pela saúde da tua sobrinha Eliana! – Respondeu já a chorar
Patrícia.
Ao ouvir isto, Vasco largou-a em cima da
cama e virou-a para cima, olhos nos olhos.
- O que é que disseste? Sobrinha? O que
é que estás a inventar agora, não penses que te safas assim! – Vociferou
novamente Vasco.
- É verdade, a minha filha é tua
sobrinha, filha do teu irmão. Tem dois anos e adora o pai. Acima de tudo é por
ela que o quero encontrar, porque sei que ele ainda está vivo. Eu sei! –
Soluçou Patrícia.
Vasco saiu de cima dela e começou a
andar aos círculos no quarto. Uma filha! Duarte tinha uma filha e ninguém
sabia. Nem a mãe deles, que Duarte tanto adorava. Mas a verdade é que Duarte
pouco falava da vida dele no Brasil e as notícias que dava não eram assim tão
frequentes, enviava bastantes encomendas com presentes para a mãe e para as
suas irmãs, e por vezes, para o próprio Vasco, mas nunca dizia muito nos
telefonemas e emails que trocavam.
Seria possível Patrícia estar a falar a
sério? Seria mesmo verdade?
- Explica lá essa história de uma vez
mas acho bem que estejas a dizer a verdade, não estou com paciência nem tempo
para mais mentiras. Se sei que me estás a enganar, eu juro que te enfio uma
bala no meio dessa testa linda – gritou Vasco empunhando a arma bem na direcção
da cara de Patrícia.
- Por favor, pousa essa arma. Eu estou
do teu lado, acredita. Ou melhor do lado do Duarte, pai da minha filha. Vá,
senta-te aqui e eu conto-te tudo. – Suplicou Patrícia.
E Patrícia começou a contar como tinha
conhecido Duarte numa festa há três anos e que tinha ficado logo encantada por
aquele sotaque tão portuguesinho, como ela dizia. Rapidamente tinham-se
envolvido e tinham chegado mesmo a viver juntos. Patrícia nunca aprovara a
ambição de Duarte e a vontade dele em ganhar mais e mais dinheiro. Nunca tinha
achado bem a ligação dele com Giuseppe mas Duarte tinha-se tornado cego a
conselhos mais racionais. A avidez de dinheiro e poder tornaram-no mais frio,
mas não apagaram a sensibilidade que Duarte trazia consigo. Quando se separaram
e um mês mais tarde Patrícia descobriu que estava grávida, Duarte fez questão
de a apoiar em tudo e de acompanhar a sua gravidez o mais perto possível.
- Vasco, havias de ver o olhar doce do
teu irmão quando ele pegou na Eliana pela primeira vez. Parecia um anjo
deliciado com aquele bebé nos braços.
Vasco sorriu ao lembrar-se desse olhar
tão característico do irmão, um olhar a que ninguém conseguia ficar
indiferente.
- Não voltamos a ficar juntos –
continuou Patrícia – mas ficamos sempre perto um do outro. O Duarte estava
sempre com a filha e continuamos amigos. Conversávamos muito mas as conversas
sobre o andamento dos negócios começaram a ser cada vez mais escassas. Sempre
que eu perguntava como iam as coisas, Duarte desconversava. Comecei a ficar
cada vez mais preocupada mas não havia nada que eu pudesse fazer. Com o
desaparecimento de Duarte, um pedaço da minha vida ruiu… E eu não quero que a
minha filha cresça sem pai. Isso não pode acontecer – e dito isto, Patrícia
começou a chorar intensamente.
Vasco estava muito confuso. Aquela que
ele pensava ser uma cúmplice de Giuseppe afinal era mãe da sua sobrinha.
- Leva-me já a ver a miúda. E é bom que
ela exista mesmo, senão iremos voltar aqui para continuarmos a nossa
conversinha. E dá-me o teu telemóvel, não confio em ti…ainda… - ordenou Vasco.
Vestiram-se rapidamente e saíram do
apartamento. Patrícia avisou que tinham de ter cuidado. O Ford Fiesta iria
estar à espreita para os seguir. Assim tinham sido as ordens de Giuseppe.
- Ah, afinal sabes muito bem quais são
as ordens desse filho da mãe? - Disse Vasco apertando-lhe o braço.
- Tem calma, disse Patrícia. Agora vais
ver a tua sobrinha e depois de finalmente acreditares que não te estou a
mentir, conto-te o resto!
Patrícia agarrou pelo braço de Vasco e
levou-o pela porta dos fundos onde poderiam apanhar um táxi. Não podiam sair no
carro de nenhum deles, pois assim iam segui-los e a última coisa que Patrícia
queria era que descobrissem que tinha uma filha e onde moravam.
Pouco tempo depois, o táxi seguia pela
avenida fora, seguindo as direcções que Patrícia ia dando.
Capítulo
III
José
Bessa
Entretanto,
no outro lado do Mundo, numa pesquisa frenética de sala de operações,
analisavam-se ficheiros, links, ‘spams’,
imagens e tudo quando pudesse ser útil para encontrar a password dos ficheiros encriptados. A expectativa pairava ansiosa
naquele sótão da Rua dos Contrabandistas nº 10 da Freguesia dos Prazeres, em
Lisboa. O Colaço, debruçado sobre a bancada e quase entrado pelo monitor
adentro, varria os ficheiros batendo sem piedade as PgUp e PgDn com uma
agressividade de militar.
Rara
oportunidade esta busca online no
laptop dela, era de aproveitar e, embora a seis mil quilómetros de distância,
era ali, na ponta do dedo transpirado que podia estar a magia de entrar no
mundo da investigação jornalística e das suas fontes ocultas.
A
chuva crepitava na vidraça com uma fúria cadenciada de rajada, enquanto ele
empurrava nervosamente as armações dos óculos grossos contra a testa enrugada e
batia as teclas. Estava a ficar sem cigarros, precisava descer aqueles noventa
e cinco degraus até à loja da esquina, o cubículo adensava-se de fumo e a noite
aproximava-se temerosa. Nada… tinha um dead
line e, nada… não tinha encontrado a password que abria os apontamentos da
Patrícia e Giuseppe não aceitaria mais falhas. Talvez com scroll lock utilizando o
seu aplicativo velhinho que destrancava os jogos todos. Foda-se! Já não tenho
idade para estas merdas!
Estava
um velho o Colaço, um caco, tinha sido um bom técnico de comunicações da
Marinha; morava mesmo ali, na Rua da Correnteza de Baixo e estava “destacado”
no Tribunal Marítimo de Lisboa numa eterna comissão de serviço imposta. Imposta
porque presa às suas capacidades incomuns de detectar letras e algarismos fora
do lugar e deles ler coisas importantes. Presa, porque o Colaço, não existia,
como pessoa. Eternamente.
Medalhado
por relevantes serviços à Pátria várias vezes, tinha passado à disponibilidade
como Sargento-Mor e, por falta de solicitação e utilidade, dedicara-se à
informática e, daí a um ramo mais específico da informática, a pirataria, e
daí, levou com dois balázios, esteve quase morto, foi preso ainda nos cuidados
intensivos do São Francisco Xavier, julgado na enfermaria, pensava ele, e
remetido para o Hospital da Marinha em absoluto sigilo. Fora dado como morto.
O
Correio da Manhã anunciara em parangonas que “Um sargento da Armada,
ex-operador cripto no Ultramar, agora colaborante dum grupo de terroristas
internacionais fora apanhado e morto esta manhã na posse de material
informático comprometedor” o Diário de Notícias informava que “um sargento da
Marinha Portuguesa baleado ontem no Restelo desaparecera misteriosamente dos
cuidados intensivos do Hospital São Francisco Xavier, não se sabendo como, nem
o seu paradeiro”, nas televisões, após as aberturas estridentes sobre o último
jogo Sporting-Benfica onde se presumia o favorecimento deste por um trio de
arbitragem onde o quarto árbitro - bem, não interessa - “Faleceu esta manhã o
S-Mor Joaquim Colaço de Albuquerque, herói do Ultramar condecorado no último 10
de Junho com a Medalha de Serviços Distintos grau bronze, em resultado de
ferimentos provocados por dois tiros desfechados à queima-roupa por dois
indivíduos e…” - enfim, não se sabia nada…
De
modo que, ‘O Colaço’, como era conhecido na Unidade, morrera.
Daniel
Albuquerque estacionara com todo o cuidado o seu jaguar XF na curva do Mónaco
e, presciente, ligou o número do seu irmão de leite. Atenderia sim, tinha a
certeza…
Conduzira
desde Sintra com um mau pressentimento, mas enfim, o Dantas queria o jantar
naquele dia e, porque não? Não podia dizer que não a quem tanto tinha ajudado o
Vasco e, principalmente o Duarte, o seu predilecto. Mas o Dantas, desde que se
ligara aquela malta do SIEDM tinha ficado estranho, menos comunicativo, menos
cordial, menos afectivo até; um dia disparara-lhe com esta desfaçatez, “Daniel,
eu sou pago para ser curioso, mas não me faças perguntas! Ouviste?”, não se
faz; tantos favores lhe devia e…
-
Está? Joaquim?
-
Quem fala!?
-
Ó pá! É o Daniel!... Há quantos anos!... Que é feito? Não de vejo desde que
morreste…
-
Hã… Olá Daniel. Como soubeste este número?
-
Ó pá, eu sou pago para ser curioso, mas não me faças perguntas, eh eh eh…
tomamos uma bica ou estás ocupado?
-
Pois… Olha… Estou a acabar um trabalho e… Não sei. Talvez depois…
-
Ó pá, ainda andas metido naquela coisa… Como é?... Esteganografia?
-
Hum… quem te diz essas coisas? Isso é tudo mentira…
-
Isso é o que te parece! Ouve só isto; vou-te ler “Solicitado amiúde para
trabalhos específicos, uma vez que não tem equipamento, junta-se habitualmente
a um grupo de rapazolas que se dedicam às cópias de filmes e jogos mesmo na rua
ao lado da sua casa e perto do seu emprego cárcere”…
-
Daniel…
-
E mais; diz quem sabe que o teu último entretém para “umas determinadas
pessoas” é exactamente aquilo, como é? Es-te-ga-no-gra-fia… mas que raio é isso
Quim?
-
Daniel…
-
Diz lá!
-
Como vão os meninos?..
-
Olha Quim, também é para os ajudar, não te incomodaria por coisa pouca. Vou aí
ter contigo agora e não me demoro. Está em casa?
-
Estou a chegar, mas agora estou ocupadíssimo com um trabalho que…
-
OK, daqui a quinze minutos estou aí e até te levo aquela fotografia que tanto
me pediste e…
-
Daniel…
-
Até já!
Daniel
e Joaquim nunca se tinham dado bem. Da mesma exacta idade, criados juntos na
quinta de Colares até completarem a escola primária, foram separados cada qual
para o seu mundo aos nove anos. Filho de patroa não vive com filho de criada;
para mais bastardo. Deram-lhe o nome (a terminação, como lhe chama Colaço),
cumpriram o dever mas, humilhações não. O catraio foi para Lisboa viver com a
avó e a empregada, enquanto manteve o viço, ficou.
Encontraram-se
no serviço militar, já colocados em Luanda. Joaquim na Marinha, como operador
de comunicações, Daniel na Força Aérea, como controlador de tráfego aéreo.
Foram falando em ondas curtas durantes as comissões, mas, de feitios antípodas
encaravam-se com um amor-ódio alimentado pela exuberância dum e a competência
do outro.
Já
na Metrópole, em jeito de “angústia para o jantar” encontravam-se com alguma
periodicidade fingindo afectos e argumentando as suas vidas. Joaquim
mantivera-se solteiro, Daniel casara com a Beatriz, “a flor de Sá da Bandeira”,
e tinham dois filhos que gostavam muito do tio Colaço.
Joaquim
nunca perdoara ao Daniel ter-lhe roubado o amor da sua vida, e tinha sido ela,
e só ela, que o mantivera vivo quando fora baleado. Só ela.
-
Olá Joaquim! Está escuro aqui pá, quando mudas de casa? Sempre a mesma cave!
Estás fino? Pega lá a foto. Já nem te lembras de ti assim hã?… em que ano foi?
-
Olá Daniel… nem sei bem… só sei que me dá ecos de África. Então que te traz por
cá?
-
Olha, um amigo, bem, não te posso dizer quem é, tem um cliente que se esqueceu
duma password e… bem, vê lá se
descobres alguma relação com essas letras que o tipo está mesmo enrascado. És
capaz, ou não?
-
Não sei Daniel… isso não funciona assim, sabes, temos que ter uma relação,
saber alguma coisa sobre o que motiva a pessoa, quem é e com quem se relaciona,
algum hobby, sabes…
-
Ó; lá está tu! Não compliques, aponta aí, “CHIAWITSWEL”.
-
Daniel…
-
Escreve lá essa porra homem. Posso dizer-te que a pessoa conhece Angola como
nós e tem negócios no Namibe.
-
Em Sá da Bandeira?
-
Sim pá, na terra da Beatriz. Vá; quando chegares a uma conclusão apita. Mas não
demores hã? Olha que parece ser um caso de vida ou de morte! Precisas de alguma
coisa?
-
Não… Vou tentar… Talvez com a Cifra de César ou com a Tabela de Vigenère… Não
sei, um Quebra Cifras, talvez…
-
Amanhã telefono-te. Talvez possamos beber uma bica. Resolve isso! Ouviste?
Capítulo IV
Teresa Madeira
Enquanto isso, num qualquer ponto de uma
qualquer cidade, a cara junto ao chão, o respirar pesado e sujo como quem bebe
poeira há uns bons dias, anunciava o abrir das persianas daqueles olhos ainda
tão nublados. A cabeça, essa, latejava fazendo com que cada som parecesse o
ribombar de cinquenta tambores, enquanto, dentro dela, lá longe, ecoava a
memória turva do que fora e até de qual seria o seu nome próprio. Lembrava-se
apenas de uma figura imponente embora de mau aspeto, barriguda,
estranha. Uma coisa era certa, tinha de sair daquela posição e tentar
perceber que mundo novo era este que se lhe apresentava perante os olhos. Pouco
a pouco foi sentindo o corpo, primeiro as mãos mesmo ali “à beira de semear”, a
seguir os pés e oh! Não é que estavam mesmo metidos numa argola? Mas que raio
era aquilo? Por momentos pensou logo numa algema, o que daria mais sentido ao
vazio de identidade que nele habitava e aumentava a cada nuvem que afastava dos
olhos. Mas rapidamente se apercebeu que nada tinha a ver com uma argola, pois
se nem circular era! Tratava-se de facto de uma sarjeta, uma simples sarjeta
daquelas bem recheadas das frustrações dos que por ali passam e para lá cospem,
dos mal educados finórios que para lá lixo atiram e da incompetência dos que
nunca as limpam. Finalmente levantou-se e pela primeira vez conseguiu
vislumbrar o sítio onde estava e as borboletas no estômago começaram a dançar.
Não reconhecia nada de nada. Pior, não se via vivalma, apenas um gato que dele
se aproximou roçando o dorso nas suas pernas como quem pede uma identidade também.
E então teve-a: nomeou-o Jêta como homenagem à sarjeta que iniciou este novo
percurso da sua vida, para ele o primeiro. Lado a lado com Jêta, caminhou sem
saber por e para onde, mas tinha de fazer algo. Estava cheio de fome e
instintivamente olhou para o Jêta, mas foda-se….nem o raças do gato tinha bom
aspeto! E algo lhe dizia que ainda havia de lhe ser útil… Ao longe viu um
vulto, e uma esperança o inundou por dentro. Quanto mais se aproximava, mais
certezas tinha de poder encontrar respostas junto daquele indivíduo, pois que
era barrigudo, mal vestido e com um aspeto asqueroso lá isso era. Quem sabe não
seria alguém que o conhecia?
Mas que raio…este eu não conheço! Donde
é que apareceu? Não tem ar de ser de cá e muito menos de gostar de gatos. Que voltas
terá acontecido na vida deste fulano para chegar a este ponto? E o homem com o
gato continuavam a andar e vinham na sua direção, já o tinha visto e
transparecia claramente uma ânsia de a ele chegar.
- Desculpe… diga-me por favor….quem sou
eu?
Este gajo está a brincar comigo, já
consegui mamar um copito hoje mas… Mando-o à merda ou aproveito para passar um
bocado o tempo?
- Oh amigo eu mal sei o que fui ontem e
o que serei amanhã, quanto mais quem você é… Como é que se chama?
- Sei lá!
- De onde é?
- Lá sei!
Tá bonita a festa, já há algum tempo que
não me aparecia um caramelo destes. Vamos lá então ver o que sai daqui,
cheira-me que vou ter mais uma história interessante para contar àqueles que me
querem ouvir.
- Olhe, sente-se mas é aqui comigo que
acho que tenho para aqui um kiwi algures que posso partilhar consigo.
Enquanto nos instalamos, olho para
aquela criatura de olhar vago e cada vez mais a curiosidade me assalta. Já vi
de tudo, mas…sem nome e sem terra? Nunca… Será Deus?.. palerma… ainda tens esperanças
que ele exista….. Se assim fosse com toda a certeza não estaria aqui a passar o
tempo com o Mr. “Sem Nome” que ainda por cima tem um gato que cheira pior do
que nós os dois juntos! Deus… pff… deus.
- Ora diga-me lá… então você não sabe o
seu nome?
- Eu não sei nada… não sei quem sou nem
como vim aqui parar… - respondeu com os olhos vidrados desta vez não de nuvens
mas de uma morrinha prestes a cair…
- Então se pudesse escolher um nome para
si qual seria?
Eh lá! Já lhe arranquei um sorriso! Pelo
menos já não se vai pôr para aqui a chorar como os últimos, era o que me
faltava!
- Olhe… nome não sei… mas pode-me tratar
por chêta.
- Chêta???
- Então, o gato chamei-o de Jêta, eu não
tenho chêta… oh Jêta arranja chêta!!
E juntos, durante um bom bocado riram às
gargalhadas como só aquele que se reduz a zeros é capaz de rir. Respostas não
iriam haver…isso já ambos tinham percebido. Mas a incógnita partilhada sempre é
melhor que a incógnita solitária de caminhar ao lado de um gato com um nome
estúpido. Estúpido, é como quem diz… - pensou – deixa-me estar
calado… que eu ainda nem descobri o meu…
Capítulo
V
Fernanda
Cadilha
Foi escasso o êxtase do momento de
aparente alegria e divertimento. Um profundo e transtornante silêncio veio
sentar-se entre ambos, instalando-se para ficar. Um e outro procuravam quebrar
o súbito emudecimento, mas nada que parecesse oportuno lhes ocorria. O
mal-estar densificava-se, tornando o silêncio ainda mais carregado.
Incomodado, sem saber o que dizer, ou o
que fazer, Chêta (nomeemo-lo assim, por enquanto) observava o enfezado
gato, mais ávido de carinho do que de alimentos. Acariciou-o levemente,
temeroso de poder magoá-lo, tão magro ele estava, deixando transparecer, ainda
que por ínfimos momentos, uma inconfundível doçura no olhar que não passou
despercebida.
- Estou a ver que gosta de gatos -
murmurou o outro, numa tentativa de abertura ao diálogo.
E continuou, sem esperar resposta.
- Chamo-me Marcelo. Nasci aqui no
Brasil, em Natal, mas já vivo em Canguaretama há vinte anos.
- Canguaretama???!!!! -
Questionou Chêta num misto de espanto e preocupação, pois nada lhe
fluía ao ouvir aquele nome.
- Sim, Canguaretama. É onde eu vivo,
onde nós estamos... – Respondeu, algo irritado. - Não vai agora dizer-me também
que não sabe onde se encontra!
- Não, não sei. Não sei onde estou, não
sei quem sou, não sei como aqui vim parar - disse, o olhar vago e distante como
se quisesse vislumbrar algo que o pudesse esclarecer.
A angústia apoderava-se dele, agora que
começava a tomar consciência do absurdo da situação. Passou os dedos lentos nos
cabelos e levou-os atrás, numa tentativa de libertação de ideias. Sentia-se
vazio, completamente vazio de memórias. Não tinha qualquer dúvida e muito menos
qualquer certeza. Era “ninguém”, apenas um corpo e carne em busca de respostas,
junto de um desconhecido, e conforto, num gato enfezado.
- Disse que era de onde, Marcelo? -
Perguntou, num sutil esforço em manter a conversa.
- Sou brasileiro, filho de pai português
e mãe brasileira. Nasci em Natal e vim para Canguaretama em busca de melhores
oportunidades de vida. É uma longa história, se me quiser ouvir.
Mas já Chêta não ouvira as últimas
palavras. Natal, Natal. Porque lhe era aquele nome tão familiar? Natal, Natal…
e um turbilhão de ideias, nomes, rostos, locais, acontecimentos irromperam a
uma velocidade louca na sua mente. É claro, Natal, a cidade pela qual ele tinha
trocado Colares… o seu irmão mais velho, Vasco, a mãe e a sua tristeza ao vê-lo
partir… o Dom Café e Giuseppe, ostentando as suas tatuagens… Duarte, chamava-se
Duarte… Patrícia, nos seus longos cabelos negros, transbordando sensualidade
nos gestos, no andar, na voz quente que de imediato o seduzira… e Eliana. Como
pudera ele ter esquecido Eliana?
E os olhos adocicaram-se perante a
imagem afetuosa da menina.
Alheio a tais pensamentos, o gato
aproximou-se dele, no seu roçar do dorso, e contemplou-o com um olhar pesaroso,
mendigando a carícia esquecida e abandonada. Duarte estremeceu ao corte do
pensamento e, num gesto rápido e brusco, levantou-se, aturdido e confuso,
causando espanto no companheiro que continuava a sua história, persuadido do
interesse que esta estava a suscitar no hipotético ouvinte.
- Então, homem, que lhe aconteceu. Não
me diga que além de esquecido também sofre de tiques nervosos! - Disse num tom
jocoso e aparentemente amigável.
Duarte olhou-o indiferente e distante.
Não era momento para brincadeiras. Muito menos vindas de um estranho. Olhou-o
de alto a baixo, como se o quisesse radiografar.
Parou à imagem da barriga que se evidenciava.
E estremeceu novamente. Afigurava-se-lhe a figura imponente, de mau aspeto,
barriguda e estranha que lhe surgira ao primeiro pensamento do acordar de um
não sei o quê. Continuava sem perceber como viera ali parar e aquele homem
parecia-lhe, agora, alguém suspeito e perigoso.
- Ó homem, mas que raio lhe aconteceu? -
Insistia Marcelo, irritado com o seu silêncio.
Duarte forçou a imaginação, tentando
encontrar uma resposta que não levantasse suspeitas.
Capítulo
VI
Pedro
Marques
Duarte, o irmão do Vasco e ainda há
muito pouco tempo no Brasil e desaparecido agora, deixou o último rasto no jipe
abandonado na praia. Daí para a frente, mais nenhum lastro da sua passagem;
mais nenhum indício da sua presença. O jipe, abandonado na praia, era o único sinal
de si. Num desaparecimento que poderia ter sido por afogamento, mas cujo corpo
por de mais procurado, jamais foi encontrado. Procurado dias e dias por barco,
avião, helicóptero ou outro meio de busca, nem rastos do Duarte. Devorado por
animais marinhos o seu corpo?... Raptado?... Assassinado?...
Este Duarte era uma pessoa reservada.
Parca de conversa com amigos. Quase um misantropo. Muito invertido e perdido
nos seus pensamentos em contínuas meditações. Um jovem, de certo modo,
desligado das apetências da vida e muito mergulhado na leitura das ciências
genealógicas. De modo especial, na pesquisa dos seus antepassados mais remotos
cuja recolha de elementos das gerações dos dois últimos séculos ele já tinha. E
por isso foi até ao Brasil E por isso o Brasil deixou. De forma enigmática.
Misteriosa… A genealogia era, de certo modo, uma obsessão que o distraía do
todo que o rodeava. Nem irmãos; nem família; nem estabilidade
profissional…Nada! E por isso, ele era uma espécie de andrajoso andarilho de
biblioteca para biblioteca ou de “sítio” para “sítio” na net. Na busca de
agulha em palheiro. E isto porquê?... Porque descobrira que o pai do início da
sua geração também era Português com descendentes espalhados na diáspora dos
quatro cantos do mundo. Descobriu, na poeira das pesquisas, que era oriundo das
serranias de Montemuro, numa aldeia perdida nas fragas rochosas das terras do
demo. Este seu antepassado era pastor de gado caprino e descobriu que havia
muitas aventuras que dele se contavam de lutas com lobos. De que sempre saíra
vitorioso. Mas com muitas cicatrizes. Que para ele eram condecorações que
nenhum preço ou outro feito pagaria.
Fascinado pelo viver de isolamento nas
serranias inóspitas, este seu primeiro ascendente criou no seu imaginário
cenários empolgantes mesmo na frugalidade de um viver assim. Esquecido horas a
fio na net, depois de encontrado o rasto deste seu progenitor de há séculos
perdido no seio das montanhas, ele encontrou também o arquivo do seguinte
episódio escrito pelo punho desse seu antepassado, com bico de pena de asa de
pato e tinta do sangue das suas veias…
“(…). Era numa noite de Dezembro sem
luar. E eu caminhava para casa pela serra do S. Macário e tive de atravessar o
portal do inferno. Quando me apercebi, vinha a ser seguido por dois lobos. Os
lobos não atacam logo. Os lobos apenas acompanham o homem… até ao momento em
que o homem fraqueje, se desequilibre e caia desamparado. Em relação ao homem,
o lobo sabe esperar pelo momento certo. No seu primeiro sinal de fraqueza… E eu
estarrecido de medo e a pensar: vai ser aqui que eu vou escorregar!... E vou
morrer esfarrapado pelos dentes dos lobos!.. Mas não! Mesmo em noite sem lua,
eu fui caminhando… E perto de mim, os lobos também… E eles e eu passámos o
Portal do Inferno… Até que apareceu uma luz de um outro pastor com o gado de
regresso aos currais e bem protegido por matilhas de cães. A partir daí, os
lobos deixaram-me. Ficaram para trás. Um susto, na minha vida!(…)”
Aqui, nem sequer houve luta. Escreveu
ele. Mas em outros casos anteriores e depois deste, essas lutas eram
corpo-a-corpo, sentindo ele na sua garganta o roçar dos dentes das feras que
acabavam por se ir embora sempre que ouviam cada vez mais próximo, o latir
frenético dos cães. Mas não saía dessas lutas sem rasgos profundos na sua
carne. Depois, também estava escrito numa espécie de diário que esse seu
antepassado, de nome Pedro, com a ajuda de outros pastores e protecção dos
cães, dos lobos se vingava construindo os fojos para os quais atraía as feras.
Os fojos eram covas circulares, fundas, numa espécie de poço largo e ladeadas
por vários muros em forma de anéis intervalados por corredores. No fundo dos
diversos patamares, este Pedro colocava carne de rês morta e cujo cheiro a
sangue os atraía. E os lobos, saltando de muro em muro iam descendo até ao
fundo na busca do alimento. Então o Pedro, que os espiava, aparecia, munido de
cajado e de um bom punhal. Os lobos, vendo-se descobertos e encurralados
tentavam galgar esses anéis de muros para se escaparem. Porém, sem êxito porque
se os muros eram fáceis de saltar para baixo, impossíveis de subir por causa da
sua altura. E também pelo punho deste Pedro, também escrita por tinta de
sangue, histórias de uma serpente gigante que assaltava os moradores pela
calada da noite… No lugar da Serpe…
Estas histórias de luta entre os homens
e as feras entusiasmaram tanto o Duarte que ele, deixando o Brasil, ao arrepio
de todas as formalidades de emigração e de comunicação aos familiares e da sua
própria identidade e segurança, viajou clandestino nos vãos de um dos navios
para Portugal. Todavia, com saudades e até um sentimento de ternura inesperado
pela Patrícia… Gostava de a ver outra vez… Mas decidiu romper com passado e
aventurar-se num futuro que só a Deus pertence…
E como um foragido aventureiro e
iludindo todo o seu percurso de vigilância, por mar e por terra, chegou às
inóspitas e duras terras do demo e embrenhou-se na serra. E como um
marginal de quem ao princípio todos desconfiavam, ele foi ganhando a confiança
dos pastores da aldeia. E em pouco tempo, também já era vezeiro dos rebanhos. E
consigo, além do farnel e do cajado e da companhia fiel dos cães, o que é que
ele levava consigo?... Um IPOD touch
de quarta geração, andando assim a par de tudo quanto se passava no mundo. E ao
ver, pela net, as notícias das buscas da sua pessoa pelos cantos mais
inesperados do Brasil, ria-se. Apenas lhe deixando saudades a Patrícia… E
assim, enquanto vigiava as cabras nos tempos da Primavera ao Outono, sentava-se
num dos muitos penedos entre a urze e o mato e deliciava-se a ouvir o sussurrar
da brisa pelas arestas dos penhascos da serra enquanto seguia com os olhos o
planar descontraído e vagaroso da águia de asas abertas, sob o azul do céu…
Se este Duarte já era misantropo e amigo
da solidão, num ambiente destes de silêncio; de paz; de quietude, ele passou a
viver uma vida de eremita. E a deixar ouvir os seus pensamentos. Que guardava
numa espécie de outro diário… E no registo do seu IPOD, entre outros, estava
este…
“No barulho; no meio do nervosismo; na
confusão, muito dificilmente nos encontramos connosco próprios O encontro
connosco mesmos, com a nossa interioridade, é no silêncio que acontece; no
isolamento; num desligamento, momentâneo ou temporal, do mundo em que nos
encontramos no nosso quotidiano.
Não significa isto uma fuga às
realidades; aos problemas; às dificuldades que diariamente encontramos. A fuga
às realidades não as elimina - antes nos enfraquece. Enfrentá-las, e se
possível vencê-las, é um acto de coragem e de afirmação. E de necessidade
também. Só isso, é já uma vitória sobre nós mesmos e da qual nos vêm energias e
capacidades para enfrentar e vencer outros desafios.
A vida é uma luta constante, onde,
porém, nem sempre a vitória acontece. O fracasso é também natural. Se a queda é
um acidente, o levantar-se é um acto de coragem e de dignidade. Ora, para
pensarmos também nisto, precisamos de repouso; de silêncio; de isolamento; de
interiorização.
Na solidão da montanha, sobre as
escarpadas fragas dos penedos, de onde a água brota abundante e cristalina;
onde a fúria do vento fala uma linguagem áspera e selvagem mas também cheia de
musicalidade; onde a fúria do vento ora verga até ao chão a crista da árvore,
maleável, dócil, meiga; ou quebra a de porte altivo num ranger de estertor e de
ecoar, dolorido, pelas quebradas, orgulhosa e ciosa do seu aprumo; da sua
verticalidade; na solidão da montanha onde, ora a chuva cai forte e me encharca
até aos ossos, ora o sol espreita, brilhante, por entre nuvens pesadas e
carregadas de água; na solidão desta montanha onde sinto os pés colados à terra
e respiro o fluido aromático da vegetação desde o musgo à erva do campo; neste
universo de agressividade e doçura, de sons de vento e silêncios, é onde eu me
sinto mais eu.
A vila, o movimento, o bulício, estão
bem lá ao fundo, ao longe. De onde me chega, brando, apagado, o som do sino.
Entre mim e a vila, esta distância de isolamento e silêncio; de pausa e de
meditação.
Falei, atrás, na docilidade da árvore
que o vento verga até ao chão. Como que num acto de submissão, de humildade.
Como falei na árvore de antes quebrar que torcer, ciosa da sua independência,
da sua verticalidade.
Será assim? Não estará nesta o símbolo
do orgulho insubmisso e naquela o da despersonalização, da cobardia, da falta
de coragem? Talvez estas dúvidas se pusessem, se fôssemos nós a árvore agitada
pelo vento.
Todavia, estas árvores são elementos da
Natureza e reagem naturalmente em gestos inúteis e perdidos.
Árvores, portanto, com a sua individualidade própria nem positiva nem negativa:
de uma submissão e altivez que só existe no nosso imaginário.
Regressemos à minha identificação.
Neste ermo, onde o sol espreita,
brilhante, por entre pesadas nuvens a rebentar de água; neste ermo, onda a água
desce, cantante, da penedia; neste ermo onde o vento ora arranca harpejos da
folhagem da árvore, ora gritos enigmáticos, é onde eu me sinto mais eu.
A minha interioridade é esta expressão
da Natureza onde o belo e o medo se encontram e se plasmam formando uma
realidade nova: de paz e inquietude, onde há gritos e há cânticos; onde há
fúria e mansidão; violência e docilidade. Estes contrastes no ritmo de uma
tensão constante…”.
Este Duarte, é isto o que está a ler nos
textos guardados no seu IPOD enquanto os cães, a ladrar, lhe dão sinal de que
há lobo por perto… E cada vez mais perto, também, o sítio onde morou o
progenitor que procura da sua geração.
Enquanto, do outro lado de lá do
Atlântico, já se estava num inferno de diligências de burocracias
indispensáveis para a oficialização por morte do seu desaparecimento por
afogamento identificado num outro cadáver que deu à costa e como sendo o seu, o
Duarte monologou um “morri. Vão enterrar-me”… Mas não se abala nem fica
apavorado e até desafia o futuro: “Veremos, agora, daqui em diante o que irá acontecer!..
Todavia, de tanto amar, agora, esta vida quase nómada de pastor da serra, este
episódio da sua morte esquece para contemplar e se deliciar no paraíso de tanta
liberdade e tanta paz…
Capítulo
VII
Estela
Fonseca
Duarte não tem um lado obscuro. Duarte é
obscuro! Com os outros! Calcula e ensaia gestos e passos e contabiliza atitudes
de acordo com o seu benefício. Na sua quase mística realidade pastorícia ele
sabe-se a si mesmo como sendo um homem gélido de personalidade cínica. Para si!
Desde criança que se sabe dissimulador e
com facilidade leva a água ao seu moinho. Os seus enormes olhos negros puxavam
facilmente as lágrimas fazendo ceder o raspanete mais bravo ou o castigo mais
penoso. Fácil levar a mãe e as irmãs mais velhas. Menino de mimo e beicinho,
Duarte imediatamente esquecia o pranto depois da vontade feita. Vasco, o seu
irmão, não tinha a sua candura. Destemido e frontal representava,
simultaneamente, um rival e uma admiração invejável a seguir. No entanto Duarte
não tinha um lado direito e um lado esquerdo, uma razão e uma emoção. Duarte
foi e é um traço contínuo de quereres obstinados. Sem barreiras, sem
sentimentos ou arrependimentos. Esta sua forma escura de ser esbarrou com
Patrícia. Não fazia parte dos seus planos ser pai. Nem amar. Nem prender-se.
Patrícia foi diferente das outras mulheres pelo tempo de duração na cama. Mas
como em todos os peões que vão passando na sua vida, Duarte soube mais uma vez
jogar a seu favor. Claro que acompanhou a gravidez de Patrícia. Claro que olhou
Eliane com os mesmos olhos que costumavam adocicar a mãe e as irmãs. E claro
que foi com o mesmo gelo que deixou as duas!
Entre balidos e cheiro a hortelã, Duarte
puxou de um cigarro. Chegava de introspeção e regresso a um passado que só
assentava bem numa serra sem dono. Cinicamente imaginou o que se passaria do
outro lado do oceano. Com toda a certeza Patrícia já se teria mudado para a
casa da irmã e levado consigo a pequena Eliana. Duarte não podia esperar mais.
O tempo tem custos. Aliás, o tempo é o seu maior custo e com toda a certeza
Giuseppe já tinha ordenado a nova mercadoria.
Puxou de um último trago de nicotina e
ligou o telemóvel que trouxe consigo de reserva. Bateria intacta e número
desconhecido. Duarte está de volta. Do outro lado atende uma voz rude com
sotaque siciliano e se fosse possível de visualizar, um rosto arredondado
idêntico a uma pizza mozzarella! É Giuseppe. Ouve-se um «ciao
amico» estridente e quase submisso!
Duarte sorri e pergunta com voz rouca:
- Quando parto para Palermo? Já tens a
mercadoria?
Giuseppe engasga-se e não sabe bem como
responder. Balbucia vocábulos incompreensíveis, de entre eles, Duarte apenas
percebe a noticia com que não estava a contar. No seu trajeto tão linear, o
irmão Vasco estava à sua procura no Brasil, como pedra no sapato que tem que
descalçar!
Capítulo
VIII
Hélder
Magalhães
Assim que o avião aterrou na pista do
aeroporto internacional Augusto Severo, Duarte expirou longamente, como se o
corpo aliviasse toda a árdua carga acarretada ao longo dos últimos meses.
Agora, ali, na capital do Rio Grande do Norte, esperava que a sua vida tomasse
um novo curso, feito de águas de um azul cristalino.
Volvido o primeiro mês, passado entre o
extenso e dourado areal da praia e os lençóis do quarto de hotel e as noites de
loucura interminável, não necessariamente por esta ordem, Duarte procurou um part-time, algo que o absorvesse durante
algumas horas, antes que caísse em um qualquer pântano, uma vez que já começava
a sentir-se caminhar sobre areias movediças.
O Dom Café abriu-lhe as portas, como
servente às mesas, entre as dezanove e a hora do fecho, mas ao fim de dois
meses, a astúcia e a discrição de Duarte aos olhos de Giuseppe, o proprietário,
resultaram em uma proposta de sociedade. Daí em diante, Duarte passaria a gerir
o movimento do Dom Café, libertando Giuseppe para outros negócios um tanto ou
quanto ocultos.
Num ápice, o Dom Café passou a clube
noturno de referência, tanto na cidade, como no estado, sendo frequentado por
uma elite do mundo dos negócios e profissões liberais. Pela primeira vez na
vida, Duarte sentia-se ao leme do seu destino, orgulhoso, ainda que comedido
pela recente ascensão, e respeitado no seio daquela comunidade.
A estabilidade profissional e emocional
despertou em Duarte as primeiras sensações e impressões de paz e afeto a um
lugar e, em particular, às suas gentes. Esta novidade de pertença levou-o a
procurar uma casa, que pudesse chamá-la sua. Rapidamente, tropeçou naquela.
Talvez fosse o porte elegante e tropical da planta plantada na lateral direita
da fachada, que mais tarde descobriu ser uma mamoneira, que o fez apaixonar-se
à primeira vista. Mudou-se na manhã seguinte.
Anoitecia e chovia e o cheiro a terra
elanguescia e envolvia os corpos em uma voluptuosa humidade, quando Duarte
sentiu a incandescência da voz dela adentrar-se-lhe na boca de um martini seco.
Ao fim de uns minutos, soube ser uma jornalista, ainda que sob a maquilhagem de
acompanhante de luxo, uma vez que investigava uns rostos ocultos da máfia que,
supostamente, frequentavam o Dom Café.
A sensualidade envolta naquele mistério
arrebatou Duarte numa paixão desenfreada, daquelas que se sabe à partida apenas
resultarem num abismo, mas à qual não resistiu aventurar-se. Somente soube o
nome dela no relâmpago do estou grávida – Patrícia Dantas.
Agora, depois de mais de dois anos
alucinantes, em que se envolveu como intermediário nos negócios obscuros de
Giuseppe com a máfia, a fim de desbloquear qualquer tipo de informação para a
Patrícia, e o medo pela segurança da sua filha, Duarte decidiu colocar um ponto
final em toda aquela trama. Todo o seu fascínio pela mamoneira, fez com que
descobrisse que, além do seu principal produto, o óleo de rícino, a sua semente
é tóxica, devido à presença da ricina. Aquelas pequenas doses mortais, infiltradas
nos cubanos, seriam decisivas no próximo encontro.
Capítulo
IX
Fátima
Veloso
- Depois da próxima rotunda, vire à
direita - indicou Patrícia, num tom de voz que oscilava entre um nervosismo
miudinho irritante, e uma ansiedade e medo inexplicáveis. – É … uma rua
deserta, estreita … e íngreme … de sentido único! – Gaguejou.
Estavam finalmente prestes a sair da
longa avenida que lhes parecia interminável. As dunas, ao fundo, cresciam
grotescas à medida que o táxi onde seguiam, se aproximava do ponto de viragem.
Pareciam querer barrar-lhes o caminho e aprisioná-los nos abismos das suas
gargantas sem fundo.
- Que raiva! – Murmurava Vasco,
impaciente, entre dentes. - Apanhamos os vermelhos todos! Nem de propósito!
Patrícia, inquieta, olhava regularmente
o trânsito à sua volta, na tentativa de descobrir algum carro suspeito, pois a
hipótese de estarem a ser seguidos, não estava totalmente posta de parte. O
facto de terem saído pelas traseiras nada garantia que não pudessem ter sido
vistos e que, por isso, estivessem em segurança.
E depois se alguém os perseguia,
descobriria, por fim, a existência da filha que, ao que lhe parecia, ainda
ninguém suspeitava, dado que Patrícia, meses antes, tinha tudo planeado para o
momento em que o seu estado de grávida não desse mais para ser ocultado.
Assim, sob o pretexto de cuidar da mãe
em estado crítico de uma doença incurável, pediu licença sem vencimento por
tempo indeterminado e ausentou-se da cidade, para não mais ser vista até à
altura certa de entrar de novo em cena.
Até àquele momento, Patrícia pensava que
não dispunha de informações suficientemente relevantes sobre Duarte que
fizessem dela um alvo a perseguir ou a abater. Até essa altura, Patrícia achava
que Duarte ainda não se tinha envolvido a sério em negócios tortuosos e
obscuros. No seu inocente entender, o espírito ambicioso, aventureiro e
inconsequente de Duarte começava apenas a dar os primeiros passos, agora que se
libertara dela, grávida.
Isto era o que pensava Patrícia, mas
depressa Duarte deu-lhe a saber que as suas vidas corriam perigo, dada a sua
envolvência com traficantes, lavagens de dinheiro e outras paradas ilícitas,
por isso, Patrícia teria mesmo de sair da cidade, antes que fosse tarde demais.
Ele, por sua vez, arranjaria o lugar certo para ela se ausentar, com a promessa
de que no dia do nascimento da bebé, ele tentaria estar presente e sempre que
pudesse, pois amava-as.
Assim a separação de ambos, apesar de
dramática, acabou por ser vista como natural e os seus planos também à primeira
vista pareciam ter resultado… até ao dia em que Duarte desapareceu e Patrícia
se vê atirada para as malhas de uma imensa teia de perigos que desconhece,
culminando com o aparecimento de Vasco.
Patrícia sentia-se vulnerável e frágil
ao pensar em tudo isto. De repente, parecia que o mundo lhe tinha caído todo em
cima. Envolvida num jogo duplo com Giuseppe, na tentativa de recolher o máximo
de informação para descobrir o seu amor, acabava forçosamente por se envolver
com o seu cunhado Vasco e por se ver ameaçada de morte por ambas as partes.
Chegados ao fim da rua estreita, viraram
novamente à direita, passaram por cima de uma ponte, contornaram pequenas
rotundas e percorreram ruas que se entrecruzavam, num verdadeiro labirinto que
confundiu Vasco de tal forma que este voltou agarrar o braço de Patrícia,
ameaçando-a de que se o estava a enganar ou a confundir, não sairia dali viva.
Finalmente, o táxi parou, por ordem de
Patrícia, num bairro amistoso, de varandas floridas e portinholas de madeiras
de um castanho-escuro que contrastava harmoniosamente com a brancura das
fachadas das casas, todas elas duplex.
No parque em frente, Eliana brincava com
outras crianças, na companhia de Celine, irmã de Patrícia.
Enquanto Patrícia apontava com o dedo a
sobrinha que Vasco tanto ansiava conhecer, o telemóvel dela dá sinal de
mensagem escrita.
Era Giuseppe.
Capítulo
X
Margarida
Piloto Garcia
Quase
13h quando Giuseppe vê o relógio pela terceira vez. Puxa um cigarro e observa
as espirais de fumo a dissiparem-se no ar quente e quase sufocante do dia.
Salvatore já devia ter chegado e o atraso do braço direito desperta-lhe
suspeitas e receios.
Pensa
em dar uma volta na Piazza del Duomo, ao abrigo de alguma arcada que corte o
calor que àquela hora se faz sentir em Lecce. Sente-se cada vez mais apreensivo
e com a mente a fazer cálculos desordenados e caóticos. O telefonema de Duarte
dita-lhe raivas e sufocos.
Não
foi para se agastar que se meteu com o português! Duarte pareceu-lhe ter uma
dose de loucura necessária ao empreendimento e ao mesmo tempo uma certa
perigosidade no trato, algo nebuloso e negro que lhe agradava. Tudo correra bem
até certa altura e não fora Duarte ter-se metido com Patrícia e Giuseppe ainda
acreditava que os negócios iriam de vento em popa.
Mas
agora, a polícia brasileira estava bem encaminhada nas investigações e começava
a ser difícil gerir os empreendimentos de Natal.
Por
outro lado, a Interpol estendera os braços até às suas operações,
preocupada sobretudo com o tráfico de armas. Gerir tudo não era fácil e o facto
de ter de confiar noutros gerava-lhe azias.
O
suor pinga-lhe da testa e sente cada vez mais a arma que traz consigo. Está
quente e pressiona-lhe o corpo como se de um aviso se tratasse. Dentro de si
tudo se agita enquanto a mente se debate com os inúmeros problemas das suas
operações. São grandes os negócios no Brasil e o tráfico de mulheres é um maná.
Pensa no entanto, que é absolutamente
necessário coordenar o da droga e Duarte estava a ser
importante nessa área antes das embrulhadas amorosas onde se tinha metido.
Não
que Giuseppe não prezasse a família, ou não fosse ele italiano. Mas os
conceitos familiares do português eram diferentes e menos arcaicos do que o
seu. Negócios eram negócios e não permitiam falhas. As mulheres faziam apenas
parte da diversão e nunca deviam ser um empecilho. Caramba! Aquele português de
olhar velado e triste parecia um íman a chamá-las, isso já ele tinha visto há
muito.
Enquanto
se entretém a desfilar raivas avista ao longe Salvatore. O siciliano é baixo e
magro de face afiada. Tem em si o porte de uma faca cortante, que o tom moreno
e o olhar escuro e fugidio ainda acentuam mais.
Não
trocam palavras, apenas olhares e desconfianças. Giuseppe está furioso e
agastado com a demora. Caminha apressadamente para a Trattoria di Nonna Tetti,
a poucos passos da Piazza.
Agora
não quer ouvir as desculpas e os motivos que Salvatore irá invocar. Apenas lhe
apetece sentar numa mesa e banquetear-se com um prato de orecchiette com
legumes, ao mesmo tempo que degusta um belo vinho Salice
Salentino. Primeiro necessita satisfazer prazeres básicos e
essenciais, dos quais só a cozinha de Puglia sabe o segredo. Tem tempo, agora
que o outro chegou, para falar dos assuntos que lhe moem a mente e as
entranhas.
Sentado
à mesa, pega no telemóvel e marca o número de Duarte enquanto Salvatore o
observa com a agudeza e a acuidade de uma ave de rapina.
Duarte
olhava tranquilamente as pessoas que lhe cruzavam o caminho enquanto aspirava
em golfadas os cheiros à sua volta.
Tinha
um nariz de perdigueiro ganho nas observações feitas na serra, onde todo o mato
tinha em si ervas e flores a despertar-lhe o sentido. Tinha feito bom uso dele
quando aconselhava o chef do Dom
Café. Aquele não lhe levava a mal a intromissão na nobre arte de cozinhar e até
agradecia o dom do patrão.
Misturado
no ar envolvente, Duarte aspirava um outro perfume que tinha guardado em si: o
de Patrícia.
Não
queria recordar todos os pormenores do seu envolvimento nem as dúvidas que o
assolavam. Tudo se complicara com aquela relação. Primeiro fora uma paixão
galopante, noites quentes e esfaimadas, um andar na corda bamba pelos perigos
a que se sujeitava com aquela duplicidade. Por um lado o negócio com
Giuseppe, por outro a relação com Patrícia. Patrícia investigadora, Patrícia jornalista
e agora Patrícia mãe da sua filha, a meter o nariz em toda aquela
escuridão.
Não
sabia o que fazer. Pior, não sabia o que queria fazer, nem o que sacrificaria.
Os negócios com Giuseppe eram por demais recompensadores, além de desafiantes.
Sair deles nunca seria fácil e com o mafioso não se podia brincar. Em
contrapartida estavam os sentimentos, embora não necessariamente por Patrícia.
Com ela tudo fora intenso mas esporádico. As noites de cio tinham sido
arquejantes e fogosas mas ele não tinha sentido por ela aquele amor que se
lembrava de ver entre os seus pais. O corpo não lhe
pedia fidelidades nem suspirava por uma só
mulher.
O
problema era Eliana. Aquela filha que pouco conhecia tinha conseguido
esgueirar-se para dentro dele, reclamando de Duarte um afecto que só tinha par
no que sentia pela mãe. Detestava sentir-se dominado por sentimentos de
carência e de ternura. Eram como algemas a roer-lhe a sua tão solitária e
egoística liberdade.
Fecha
os olhos, aspirando mais forte o ar poeirento do dia. Sente-se como uma mosca
no meio de uma teia à espera de ser devorada.
O
telemóvel toca e ele sobressalta-se num estremecimento que o rouba à
paz do ar quente que o envolve. Olha o número e o semblante escurece enquanto
os lábios se descerram e parecem murmurar esconjuros: é Giuseppe.
Cabelos
ao vento ela cruza a zona verde que a leva até à sua casa no bairro Vila Rosa
em Goiânia. O cheiro das mangueiras entra-lhe pelas narinas e explode-lhe na
boca, odorífero e pungente.
Lentamente,
numa recusa tácita de fugir ao sonho, Cristiana reabre os olhos
quase cerrados das lágrimas soluçadas nas últimas noites. Olha em volta e
encerra-se mais numa posição fetal. Aconchega mais os trapos reluzentes do lamé
dourado que mal a cobrem. Por entre os rasgões, a carne morena denuncia os
golpes que embora ligeiros sangram um pouco. Um salto partido jaz no meio do
cubículo para onde a atiraram. Os cabelos emaranhados envolvem-na e são a única
sensação de conforto que lhe resta. O sonho dói agora que acordou. Como pode um
sonho trazer tanta felicidade e depois ferir tão cruelmente?
Já
arquitectara mil maneiras de se evadir mas acabava sempre ali, moída de
pancada. Pouco lhe importava! Esperava um dia não despertar dos golpes para não
sentir mais o corpo vendido e promiscuamente usado. Mas
depois, pensa que não se pode permitir o luxo de não acordar mais.
Tem de seguir em frente com o que lhe resta e esperar um milagre. Febrilmente
reza em silêncio porque não perdeu a fé e é ela que apesar de tudo ainda a
aconchega nuns braços que se assemelham aos da mãe.
Tudo
agora lhe parece distante e de contornos nebulosos.
Aquela
noite com Lauro tinha transformado a sua vida num enorme pesadelo. Mal se
lembrava, de tão drogada, como tinha cruzado o Atlântico e desaguado
ali, naquele antro em Sevilha. La Latina era agora a sua casa e o
seu corpo não passava de um enxovalho diário de sevícias de todo o tipo.
Naiara
governava o negócio com mão de ferro e era impossível sobreviver naquela
engrenagem sem uma absoluta submissão, que Cristiana não tinha. A sua origem
basca dava-lhe um porte arrogante que casava às mil maravilhas com a sua
ascendência árabe… era inteligente e desprovida de sentimentos, que não aqueles
que lhe trouxessem proveito. La Latina facturava bem com as mulheres apanhadas
no tráfico, e o consumo de droga no estabelecimento florescia. Que mais
podia pedir, ela que comera o pão que o diabo amassou por estradas de Espanha?
Mas
queria mais e os lábios rubros e carnudos denotavam a ambição desmedida.
Precisava subir na organização e para isso tinha os sentidos bem despertos.
Sabia, pelo que ia conseguindo ouvir, que o patrão de tudo se chamava Giuseppe
e já uma vez tinha visto um seu sócio, um português a que alguém chamara
Duarte. Chegara a trocar olhares com ele e tinha em si a ideia de que seria por
ali que satisfaria as suas ambições.
E
era pensando em teias de sedução que Naiara estendia o corpo num espreguiçar
guloso e felino. As linhas de coca snifadas tinham deixado um traço indelével
no pequeno espelho. Precisava preparar-se. Nessa noite recebia a visita de
alguém conotado com uma investigação. Tinha necessidade de estar em plena e
sedutora forma para perceber o que Colaço sabia.
Capítulo XI
Casimiro
Teixeira
É
a desordem natural das coisas. Durante os anos em que morou na casa familiar,
Duarte viu o pai a alinhar cartas na mesinha de jogo, num compartimento onde o
ar estagnava nos reposteiros. Cego para tudo que não fosse o cão, o baralho e o
filho mais velho, Vasco.
Nunca
se esquecera das faias que tossiam ao vento do outro lado daquela janela
escura, ou do cheiro da loção do seu cabelo, nas costas da cadeira.
No
mês em que assorearam o rio, afastou-se definitivamente daquele lugar de
memórias esquecidas de si. Três dias depois, o pai morria, estendido na mesa do
jogo em cima de uma paciência inacabada. É a estranheza natural das emoções.
Vasco
atirou a cancela do portão da rua, que saltou nos gonzos e só à noite, quando o
choro das mulheres se desatou numa valsa de piano é que se lembrou do cão.
O
bicho recusou a alimentar-se, e pouco tardou até que Vasco passeasse uma trela
sem nada, detendo-se a cada passo como se transportasse um animal verdadeiro.
Só
depois é que se lembrou do esquecimento do irmão.
Na
manhã seguinte, sem vento, que reluzia de um Sol inclemente, depois de uma
noite a despejar os intestinos, aos arrancos, tonto de vómitos, numa casa de
banho arcaica com uma infantaria de formigas a marchar nos azulejos, é que se
deu conta de tudo.
- Senhor
– questionava-lhe uma voz pequena nas suas costas, - senhor – continuava esta -
tio? – Tocou-lhe ao de leve no cotovelo. – Está bem?
Ao
seu lado estava uma menina vestida à marinheiro, como um macaco de realejo. Os
seus olhos eram de órbitas azuis alemãs, mas fora isso, a garota, apertada na
sua farda de carnaval era toda ela um dueto perfeito com a memória que ele
tinha do irmão.
- Não
incomodes o tio, que ele se está sentindo mal?
- Onde
é que eu estou?
- Está
tudo bem. – Assegura-lhe Patrícia. – Estamos na casa da minha irmã.
- O
Giuseppe...
- Não
faz ideia onde estamos – interrompeu-o – A Eliana está a salvo.
- Não
sei o que se passa comigo. Tenho de…
-
Vasco.
- Deve
ter sido desta comida, não estou habituado…
- Vasco
tenho uma coisa muito importante para te dizer.
Pôs-se
de pé e fez Eliana levantar-se também.
- Ouviste
o que te disse – insistia a mulher – o Giuseppe contou-me algo que precisas de
saber.
Vasco
bufou de raiva.
-
Tenho de apanhar esse filho da puta, dê por onde der.
- Eliana
vai para a sala brincar com a tia. Vai querida. – Ordenou-lhe a mãe
- Sobre
o Duarte?
- Sim.
Sobre o Duarte.
- O
quê? O quê? Desembucha de uma vez mulher.
Incapaz
de se suster, voltou a desabar, apoiando-se com o braço no rebordo da sanita.
- Maldita
comida. Tu envenenaste-me foi o que foi...
-
Cala-te de uma vez e ouve-me – gritou Patrícia. – O Duarte está bem. Está aqui
no Brasil, em sítio incerto, mas bem, entendes? Ninguém o raptou nem lhe fez
mal nenhum. Ele apenas quis desaparecer.
Não
fazia muito sentido. Parecia que só ganhava esperança quando já não havia mais
a que se agarrar. Tentou relembrar o passado para perceber porque estava ali. O
Duarte fazia-lhe sempre aquilo. A catástrofe interior eram sempre os remorsos
que sentia, por ter sido ele o preferido. Um dia, tinha ele dezanove anos, e o
irmão doze, assistiu ao quase descalabro da harmonia familiar. O cão
desaparecera misteriosamente. Voltou a aparecer, três semanas depois, magro,
pêlo sumido de cor e um olhar sumido de medo intenso. A primeira vez que Duarte
se tentou aproximar do cão, percebeu logo. Tinha sido ele quem o levara para
longe, escondendo-o numa garagem abandonada, quase a dez quilómetros de onde
viviam. Depois, nessa mesma noite, sentou-se para jantar, observou com atenção
o desespero do pai, e chorou como se a dor fosse dele.
Não
matou o pobre animal, pois não havia ponta de maldade em Duarte, apenas
mergulhou numa realidade fantástica que passou a ocupar um compartimento de
reserva na sua cabeça, e que substituía por completo a do mundo dos vivos. E
nunca se soube o exacto instante da ocorrência deste fenómeno.
- Nunca
tinha contado isto a ninguém. – Diz. – Sempre me senti responsável por tudo o
que ele fazia. Eu é que tinha de arcar as culpas. Tinha de ser.
-
Porquê.
- Ora
porquê. Por causa do nosso pai, claro. O Duarte metia-se em todo o tipo de
sarilhos para lhe chamar a atenção, mas nunca lhe ligava nenhuma. Nem a ele nem
às meninas, só tinha olhos para mim, e para o raio do cão. Um dia, acabou por
desistir e foi-se embora. A culpa foi minha. Eu sei que foi. Deveria ter estado
mais atento.
-
Tenho muito medo Vasco. – Inferiu ela, tremendo.
- Então,
eu estou aqui agora. Eu protejo-te, a ti e à menina. É isso que eu faço. Vou
limpando as merdas que ele faz.
Ela
soçobrou em lágrimas, abraçando-o com força. Tudo acontecera quase de repente.
Os motivos podiam ser mais profundos, mas estaria ele disposto a se dar ao
trabalho de os procurar?
- Não
quis dar a entender...
- É
uma merda sim! – Concluiu. – Apaixonei-me pelo homem errado.
- Não
digas isso. O Duarte é tão boa pessoa. Um pouco confuso talvez, mas bom no que
importa.
- Estás
tão cego quanto o vosso pai Vasco. A única coisa boa que o Duarte me deu foi
ela. A Eliana. E agora, por causa dele, posso perdê-la.
- Não
faz sentido nenhum o que me estás a dizer.
- Eu
sei da história toda. Sei naquilo que ele anda metido, e sei também porquê que
o Giuseppe me procura.
- Não
percebo.
-
O teu irmão perdeu-se em coisas que tu nem fazes ideia. Coisas muito graves.
“CHIAWITSWEL”. Isto diz-te alguma coisa?
- Não,
nada. Isso para mim é chinês.
- Não
é chinês não, mas, de um modo geral, é tão idiótico que, a forma como o vim a
descobrir, me enche ainda mais de medo. Alguns tolos não fazem um mal por aí
além, mas, se detêm poder e chegam a ser felizes em demasia podem tornar-se
perigosos.
- Continuo
sem perceber nada. Diz-me tudo.
- Não
estou bem certa, mas creio que isto é um código, uma palavra-passe para
desvendar a rede de negócios obscuros em que o Duarte se envolveu. Convêm que
percebas uma coisa. O único tolo aqui é ele mesmo. Por pensar que podia se
envolver com o Giuseppe e sair por cima. Anda um investigador independente a
calcorrear esta mesma pista. Um português chamado Colaço, que trabalha para a
Interpol, e que está muito perto de desvendar tudo.
- E
o Duarte?
- Lamento
Vasco, mas pouco me importa o destino do Duarte neste momento. A minha
preocupação é com a Eliana. O Giuseppe anda desesperado para a encontrar porque
sabe que, se a tiver em seu poder, pode chantagear o Duarte para este assumir
todas as culpas. A situação é muito, muito grave. Amanhã mesmo, podemos estar
ambos mortos, o Duarte até, e a menina posta numa situação impossível.
Capítulo XII
Elisabete
Gonçalves
— Então como? Não fugimos pelas
traseiras de tua casa, de táxi, tal qual filme policial para que eles não
descobrissem a existência da Eliana? E agora dizes que andam à procura dela?!
— Digo. Durante a noite, enquanto
dormitavas ou sofrias os tormentos da intoxicação alimentar que te assola - e
por acaso é bem feito para aprenderes a não ser teimoso - recebi notícias das
minhas fontes, além de um contacto do Giuseppe. O Giuseppe diz que o Duarte
ligou a pedir ponto de situação de um negócio pendente, mas a chamada caiu
antes de lhe dizer onde estava, por isso resolveu telefonar a perguntar-me se
estava com ele, dado não ter tido notícias minhas desde ontem. Mas retomando…
Não te tinha dito que não devias ter bebido água da torneira? Não estás
habituado à nossa dieta, pelo que não podes chegar e pensar que estás em casa!
Deves habituar o organismo lentamente, de modo a não haver uma ruptura total e dar
origem a um episódio destes! Toma um Imodium
para recuperares e te ajudar a dobrar o cabo das tormentas.
— Obrigado – disse enquanto tomava o
comprimido. Mas por que dizes então que a Eliana corre perigo?
— Isso é outra história. Já lá vamos,
mas por enquanto importa saber que foram lá a casa procurar-me, por isso já
sabem que saí. Como não foi pela porta da frente, já estarão de sobreaviso
quanto à minha fidelidade…
— Ele disse-te que foram lá?
— Menos Vasco, muito menos! Isto não é
uma parceria, será, quando muito, uma cooperação transitória! Se fosse uma
sociedade eu teria 80% e tu 20%, percebes? As minhas fontes continuarão a
sê-lo, até porque ainda não sei até que ponto confio em ti.
— Tudo bem por mim, desde que eu detenha
a golden share, como acontece com o estado no caso de algumas empresas! Se for
minha a última palavra e a opção de veto, estou plenamente de acordo. Não te
esqueças que o Duarte é meu irmão, conheço-o desde sempre, não tive apenas um
caso passageiro que por acaso se tornou sério por ter engravidado… É família, e
o sangue é mais espesso do que a água…
— Sim, mas … para já une-nos um
objectivo comum, que é o de localizar o Duarte e saber se está mesmo bem, nada
mais. Não irás saber mais do que o necessário à prossecução do nosso objectivo
pois ainda não estou completamente convencida disso ser proveitoso… Não vale a
pena avançarmos se isto não estiver plenamente definido e aceite. A propósito,
a tua arma está na gaveta, fechada à chave. Nesta casa mora a minha filha e não
vou permitir que a segurança dela seja posta em causa.
— Curiosa observação dado que ainda há
pouco dizias que ela corre perigo… Sabes que as armas servem também para
defesa, não são só para ataque, certo?
— Certo, mas com ela à solta por aí não
quero que possa inadvertidamente magoar-se por ter uma arma ao seu alcance.
Crianças e armas são dois assuntos que não combinam.
— Respeito, apesar de não pretender
fazer nada que a colocasse em perigo. Afinal é a minha única sobrinha! Como
descobriram a existência dela?
— Foi o tal Colaço, da Interpol.
Averiguou o teu irmão e descobriu a certidão de nascimento dela. Competente,
pelos vistos!
— Mas o Colaço trabalha para o Giuseppe,
ou está a tentar desvendar os crimes dele?
— Está na pista dele, mas, como acontece
em todas as organizações, tem elementos infiltrados. Estes, por sua vez, para
se manterem nas boas graças e sem levantar suspeitas têm, volta e meia, que
sacar de alguns trunfos… Eis senão que a Eliana se transformou no Ás de Ouros!
Escuso de dizer de que naipe era o trunfo…
— Bolas… Tu és um dos agentes
infiltrados?
— Eu sou jornalista de um canal local…
Dificilmente me poderia infiltrar na organização… Mas sim, foi disfarçada de
acompanhante de luxo que me meti nesta embrulhada, certa vez, enquanto seguia
uma história que envolvia o Dom Café.
— E…? Continua, gostava de saber mais.
— E conheci o Duarte - não te vou contar
a história das abelhinhas e das flores - fiquei grávida e daí a uns tempos
apareceu a Eliana. No início da gravidez já tinha percebido até que ponto os
negócios do teu irmão e do sócio eram obscuros, bem como o que poderia correr
mal, por isso confrontei o Duarte e decidimos que eu sairia de cena e só
regressaria depois do nascimento da bebé.
— Ele esteve presente?
— No nascimento? Sim. Olhou-a com adoração,
mas se queres que te diga não tenho a certeza se confio nele…
— Sábias palavras! Ele é o meu irmão
caçula, amo-o, mas não sei ao certo quem ele é… Em pequeno era traquina como
todas as crianças, mas com o passar do tempo chegou a ter requintes de malvadez…
Por outro lado é meigo, terno…
— Exacto! É precisamente o que sinto!
Umas vezes é tudo o que sempre quis, noutras não sei se não faria melhor se
desaparecesse da vida dele… Como é que parecia não poder estar sequer um dia
sem ver a menina e depois desaparecer por completo, sem nos dizer nada?! Já não
sei se sou eu que estou a fazer um jogo duplo com ele e com o Giuseppe, ou se
são eles que o estão a fazer comigo!
— Eu acredito que no fundo ele seja um
bom rapaz, mas suspeito que possa ter algum distúrbio de personalidade… Quando
ele nasceu a minha mãe ia ter gémeos, mas um dos fetos pereceu. Muitas vezes me
indaguei se ele não ficou com a personalidade de ambos, como se o tivesse
absorvido… Às vezes é extrovertido, animado, carinhoso, outras um autêntico
eremita, frio, calculista… Não desisto dele nem desistirei nunca, sempre o
encobri e atribuí os seus disparates e excessos ao facto do nosso pai não
reconhecer o seu valor da mesma forma que o fazia comigo, mas nos arroubos de
crueldade fiquei sempre indeciso se faria bem… Mas… sabes afinal onde se
encontra?
— Não, apenas sei o que o Giuseppe me
disse, que se resume ao facto de o ter contactado para receber instruções para
a próxima “empreitada”.
— Sério? E em relação à Eliana, qual é a
situação?
— Em relação à Eliana sei que a sua
existência já é do conhecimento do Giuseppe e graças a isso não poderei jamais
voltar a arriscar envolver-me nas operações dele. Não sei por quanto tempo
conseguirei iludi-lo e levá-lo a pensar que tudo permanece igual, mas já não
poderei voltar a ir ter com ele ao Dom Café.
— Vamos ter que agir com cuidado… A tua
fonte não consegue descobrir onde está o Duarte? O tal Colaço já deve saber…
Deve ter triangulado a chamada do Giuseppe se estiver a monitorizá-lo. E por
falar nisso, achas prudente continuarmos aqui? Quem nos garante que o Giuseppe
não está também a rastrear o teu telemóvel para descobrir onde estás e chegar
até à Eliana? Assim podemos estar a colocar a tua irmã e a menina em risco…
— Bem visto! Vamos sair já daqui. Para
já vamos até ao shopping pois preciso de fazer algumas compras, dado que não
poderei ficar aqui nem ir nem para casa.
A caminho do shopping o telemóvel tocou:
— Patrícia?
— Sim. Agora não posso falar, ligo-te
dentro de cinco minutos, ok? Estou a chegar ao shopping.
— Ao shopping?
Ricas vidas! Não me arranjas um emprego desses?
— Arranjava, mas acho que não quererias.
Ligo-te já. – E desligou. — Vasco, encontramo-nos dentro de meia hora na praça
da alimentação, ok? Vou fazer compras, coisas de gaja.
— Certo, mas não vou perder-te de vista.
Não tentes nada de ousado, ok?
— Não te aflijas, por enquanto estamos
juntos nisto.
— Olá Tomás, já posso falar. O que
descobriste?
— Acho que estou finalmente prestes a
desvendar algo em grande… Lembras-te daquele conjunto estranho de letras -
CHIAWITSWEL?
— Sim, já ouvi falar. Tem algo a ver com
uma password, certo?
— Certo. Estás bem informada, mas não
tanto quanto eu. Não se trata exactamente de uma password, mas sim de uma mnemónica para tal, e servirá para abrir
um ficheiro encriptado relacionado com os negócios do Giuseppe… Se conseguirmos
decifrá-la, talvez estejas a salvo, além de que daria uma bela história!
Conseguiríamos o furo do ano, já estou a ver os nossos nomes por baixo da
matéria.
— Deus te ouça Tomás! Só quero saber que
a Eliana está salva, e descobrir o que aconteceu ao Duarte… Por falar nisso,
tenho que ir ter com o Vasco, pois combinei com ele em meia hora na praça de
alimentação e já passou pelo menos uma…
— Só queria a tua vida!
— Não queiras… Logo não sei onde vou
ficar, vim às compras porque não posso ir para casa.
— Pois… Tem isso… Até te acolhia, mas aí
ficávamos ambos expostos, além de que não aceito marmanjos lá em casa, e
está-me a querer parecer que levarias o Vasco atrelado a ti!
— Levava pois, mas sobretudo não te
quereria colocar em risco! És o meu único trunfo, neste momento.
— Cuida-te miúda! Qualquer coisa, liga!
— Certo! Beijinhos!
Capítulo
XIII
João
J. A. Madeira
O
local era soturno. Cheirava a fritos, suor e outras coisas em que preferia não
pensar. Não estava ali para isso. Sabia da imponência do seu corpo pela
estatura, a barriga grande ainda que flácida, as tatuagens e a cabeça luzidia.
E, sem olhar ninguém – putas velhas e chulos amantes à força pela falta de
clientes – dirigiu-se ao balcão. As ordens eram claras: perguntar pelos nomes
de Camões e Bocage.
Muitos
se admirariam de o ver ali. Para todos ele era um cabecilha de malfeitores, o
cérebro de uma organização, o maquiavélico agente de um crime pouco concreto
mas planeado. Só ele, Giuseppe, sabia que todos estavam errados e que aquilo
que realmente se desenvolvia nada tinha a ver com o que pensavam. Pior ainda:
que um cérebro tem outros cérebros acima de si. Que lhe pagam e aos quais tem
de obedecer. E por isso ali estava, pronto a enfrentar um barman com cara de poucos amigos, que o fixou duramente quando ele
proferiu tais nomes. Era tão grande como ele e tornava-se, por isso, ridículo
ter de responder àquela senha estúpida:
–
Atirei o pau ao gato – disse o homem por detrás do balcão, ao ouvir os nomes.
–
Mas o gato não morreu – respondeu Giuseppe
–
Como? – Perguntou, agressivo, o homem enquanto dobrava os punhos da camisa
sebosa.
Sentiu-se
tremer, suar, a querer emendar o que dissera, a irritar-se consigo próprio por
tão frágil atitude indigna de si.
–
Desculpe. Espere – quase gritou – Mas o gato caiu no chão e ficou amarelo –
conseguiu dizer sem evitar um suspiro no final.
O
outro saiu do balcão e olhou-o dos pés à cabeça.
–
Porta ao fundo – disse sem dele desviar os olhos – mas toma cuidado. Se sei que
é falso… - e, com a mão, fez o gesto de corte de pescoço.
E
ainda mais escuro que o bar lá fora. Ficou em silêncio até que os olhos,
adaptados à escuridão, conseguiram descortinar duas figuras vestidas de tão
negro como os óculos que lhes escondiam olhares e feições. Sem emitirem um som.
Camões e Bocage? Porquê o silêncio em que só as moscas pareciam ter algo a
dizer? Porque não falavam…
–
Burro! – o berro rasgou o escuro da sala fulminando moscas e quase o atingindo
– Besta! Asno de merda! Foi assim que cumpriste as ordens que recebeste? – Qual
seria aquele? O Camões ou o Bocage? – Onde estão os Duarte’s que te pedimos e
pelos quais te temos andado a pagar? Não entra nessa cabeça carregada de merda
de caracol que não andamos aqui a brincar aos gangsters, aos raptos e aos
dramas familiares? Que o nosso objectivo é a tomada do mundo? Consegues meter
isso nesse cérebro de caganita de coelho?
Os
gritos incomodavam. Quis responder, mostrar que era alguém. Abriu a boca
–
Cala-te! Falarás quando te autorizarmos. Pedimos-te que arranjasses homens com
o nome Duarte e, vais tu, com os teus miolos de refogado, trazes um que, logo
após o primeiro tratamento, fica totó e vai para a rua como um sem-abrigo e
dedica-se a um gato. Um gato vê tu bem, como se isto fosse a Protectora dos
Animais; depois, não contente, trazes-nos um pasmado, um estúpido armado no
Gandhi das contemplações ovelheiras que só lhe faltou meter a flauta de Pã no
olho do cu para ficar mais parvo; como se isso não bastasse arranjas para aí um
enredo com o outro, o que já tem filha para salvar e um irmão à procura dela,
com mais a cunhada que não faz mais que arranjar intrigas ao telemóvel. Pensas
por acaso que isto é a telenovela das nove ou o Big Brother? Isto é o TDTI, cabeça
de burro! A conquista do mundo!
Havia
que mostrar alguma dignidade. Não podiam gritar assim com ele que, para todos
os efeitos, era considerado o grande cérebro do crime organizado e até por
organizar. Estava farto que lhe falassem naquela merda do TDTI sem que lhe
explicassem o que era. Era altura, disse-o, de o fazerem.
Camões
olhou Bocage (ou seria o contrário?) e o outro anuiu.
–
Ok! Explicaremos tudo. Mas a partir de agora ficarás sem desculpas para o
insucesso e, se ele acontecer, sabes o que te espera – fez uma pausa – TDTI
significa “Todos Diferentes Todos Iguais”.
Giuseppe
quase saltou de contentamento. Finalmente algo com que se familiarizava.
–
Ah! Gosto muito. Até tenho uma tatuagem no rabo com o nome deles – exultou.
Os
outros olharam-se
–
Que estás para aí a dizer? Quem são “eles”?
–
Benetton, pá! – Respondeu satisfeito – São eles que usam essa frase.
–
E tens Benetton tatuado no rabo?
–
Numa bochecha. Na outra tenho McDonalds.
Entre
os dois o silêncio impôs-se em duas bocas abertas de onde as moscas foram
desviadas mesmo a tempo.
–
Bem…continuemos. A TDTI é uma organização que pretende tornar todos os homens
iguais fisicamente. Com o mesmo rosto. Por ordens do nosso grande Mestre,
primeiro os Duarte’s, a seguir os Miquelino’s, depois os Inocêncio’s e por aí
fora. Quando todos estiverem iguais passaremos então às mulheres.
–
E qual é o gozo disso? – Perguntou Giuseppe – Eu gosto de uma gaja boa. Se
ficarem todas iguais, vai enjoar.
–
És mesmo burro chapado! Se todos ficarem iguais e aparecer um diferente, esse,
que será o grande Mestre, terá o mundo a seus pés. Depois viremos nós, claro.
Não tão bonitos mas, pelo menos, a destacarem-se. O grande Mestre, que tudo
sabe, entende que basta arranjarmos um com personalidade vincada e que resista
aos tratamentos, para que as modificações sejam feitas e arrastem os outros,
pelo efeito da moda, para o efeito glorificante do TDTI. E nós, seu paspalho
que não foi capaz de o fazer, já encontrámos o homem. Vive em Lisboa, é
jornalista e chama-se Duarte. E é urgente que o capturemos. Junto com um tal
Colaço, está na posse da palavra que pode abortar todo o plano: CHIAWITSWEL
Giuseppe
bateu as botas em sinal do acato das ordens.
–
É fácil apanhá-lo então. Tenho uma equipa a trabalhar lá. Faziam assaltos a
bancos mas agora o que roubam quase não lhes chega para almoçar. Vão gostar de
coisas diferentes.
***
— Duarte! Amor! Não vistas a camisa sem veres o que te comprei!
Uma camisa cor-de-rosa para vestir. Logo hoje,
dia de reunião com o director. Que coisa mais amaricada e pimba com aqueles
arabescos amarelos. Como dizer-lhe isso?
—
Tão linda, querida. És um amor – e pespegou-lhe um beijo sincero nos dedos
cruzados da mão.
O
dia, nitidamente, não começava bem. E a continuação estava ali, naquele
gabinete com uma secretária maior que o chefe.
—
Duarte! É o último aviso. Ou você começa a escrever crónicas de jeito ou
passo-o para a secção de necrologia. Está sempre a responder-me com uma
investigação que tem em mãos mas não pensa no vencimento que todos os meses lhe
é depositado sem trabalho visível da sua parte. Por isso, dou-lhe mais um mês.
E não me apareça com essa camisa.
Que
merda, devia ter metido gasolina. Teria de ir devagar mas aqueles faróis em
cima dele… passa, camelo! Oh, não passa! Há cada saloio nesta cidade. Em
Alcântara virou para as traseiras do Jumbo. Rua estreita e feia. E o carro sem
descolar. Começou a achar estranho. No Calvário, escolheu ruas improváveis…e o
carro perseguidor escolheu-as também. Subiu ao Alto de Sto. Amaro, meteu numa
rua larga mas sem saída. Aí, antes do seu final, o carro ultrapassou-o e
atravessou-se à sua frente. Inevitavelmente, parou. Do carro saíram quatro
matulões. Que não respondesse e fizesse o favor de entrar no carro deles. Mas o
tipo tinha o emblema do Benfica na lapela. E isso irritou-o. E erguendo a perna
tentou acertar-lhe no emblema quando por detrás outro lhe socou as costelas e
ele, que nada permitia por detrás, conseguiu pontapear-lhe os tomates ao mesmo
tempo que os outros dois se acercavam dele pelos lados. Um murro bem assente
nos queixos deitou-os ao chão quando o do Benfica lhe deitou as unhas à camisa
rasgando-a. E, se não fosse pelo clube, pela mulher seria. Atirou-se sobre ele
derrubando-o e partiu-lhe a cara quando os outros já lhe pontapeavam as
costelas. Porra! Aquela merda doía! Com a mão esquerda fê-lo cair enquanto ao
benfiquista, em jeito de homenagem, lhe deu três sopapos que o deixaram ko. Mas sentiu o outro a lançar-se para
ele. Debruçou-se fazendo-o voar e bater com os cornos no alcatrão. Faltava
um. E resolveu dedicar-se à agricultura apertando-lhe os tomates enquanto
lhe perguntava: também és do Benfica? Mas, sem esperar resposta, saltou para o
seu carro, engrenou, subiu passeios e rejubilou por, com a sua idade, ter
despachado quatro marmanjos. Sabia ao que vinham. Doía-lhe o corpo todo mas
sabia que as suas investigações em simultâneo com o Colaço tinham de dar nisto.
Mas ainda era cedo. Até que as averiguações estivessem concluídas, ninguém
poderia saber o que, longe, se congeminava. Nem a mulher.
—
Que fizeste à camisa?
E
agora? Que dizer?
—
Caí ao sair do carro. Quando me tentei equilibrar, o pé resvalou numa pedra e
só eu sei como não me matei.
O
ar de dúvida. O olhar de desconfiança. As palavras que ferem “estiveste com uma
mulher. Isso são rasgos de unhas, a pele tem sangue ainda. Por quem me tomas?
Por quem me trocas?”. A discussão, o choro. A ida para a cama com os corpos
apartados. Até que subitamente, a pergunta:
—
Não estiveste mesmo com ninguém?
E
a resposta verbalizada para lá das costas voltadas.
—
Não. Já te disse o que aconteceu. Caí
—
Prova-mo!
Oh
carne dorida em músculos magoados. Onde a força dos ossos e dos nervos e o
correr simples das veias? E como dizer “não” sem credibilidade? Um último
esforço, um último querer e tudo ficaria bem.
Quando
os corpos saciados se apartaram, a frase redentora:
—
Hoje não te pergunto se gostaste. Nunca te tinha ouvido gemer tanto.
Capítulo XIV
Sónia Ferreira
O céu, carregado de nuvens pretas,
anunciava uma tempestade eléctrica. O calor abafado, que pairava no
ar, fazia escorrer o suor pela testa de Vasco que, impaciente, esperava por
Patrícia.
- Finalmente! Pensei que te tinhas
esquivado…
- Disse-te que não demorava… podes
confiar um bocadinho mais em mim, não?! Estou aqui, certo?!
Vasco acabou por ficar aliviado ao
reencontrar Patrícia. A atração física que sentia por ela fazia o coração
borbulhar de felicidade.
- Vasco, não podemos voltar para casa.
Tenho que tirar a Eliana do país. Estou com o pressentimento de que ela corre
perigo… Giuseppe está na mira dela… não posso deixar que a luz dos meus olhos
sofra qualquer tipo de ameaça.
O rosto de Patrícia demonstrava um misto
de amor e pânico em simultâneo.
- Vou telefonar à minha amiga Larissa
para ver se nos pode acolher, pelo menos esta noite.
Enquanto Vasco comia um hambúrguer com
batatas fritas, Patrícia deslocou-se à cabine telefónica para ligar à amiga e,
posteriormente, à sua irmã Celine para que preparasse Eliana que já iriam
buscá-la.
A trovoada disparou, as nuvens pretas e
carregadas de água encheram de imediato as ruas, a circulação de peões e de
veículos transformou-se numa confusão sem fim. O ruído das travagens bruscas
dos carros faziam-nos deslizar sobre o alcatrão intensamente molhado. A
humidade da chuva ao penetrar no solo extremamente quente fazia surgir uma
espécie de nevoeiro, transformando o dia em noite.
- Táxi, táxi! – Gritava, freneticamente,
Patrícia fazendo sinal com o braço para que o primeiro carro que aparecesse
parasse em frente ao shopping.
O táxi levou-os por entre aquela chuva
intensa, onde os carros, em fila, andavam a passo de caracol. Aquelas pingas
grossas que caíam no para-brisas e no tejadilho do carro tornavam aquela tarde
ainda mais pavorosa.
Após o longo tempo que demoraram para
percorrer escassos quilómetros, chegaram a casa. Enquanto Patrícia foi buscar
Eliana, o táxi aguardou uns instantes para os transportar novamente até ao
apartamento da Larissa.
Patrícia fez as apresentações e Larissa,
muito amável, deixou os três muito à vontade. Informou-os que iriam passar a
noite sós, porque a sua profissão de polícia exigia que ela se ausentasse para
desvendar um crime ocorrido na cidade.
A pequena Eliana sentou-se em frente à
televisão na pequena sala para assistir uma série de desenhos animados.
Patrícia e Vasco, na cozinha, tomavam um café e conversavam, em tom baixo,
sobre a eventual saída de Eliana do país.
- A minha filha precisa de sair
imediatamente do país, pressinto que ela corre perigo. Giuseppe e a turma dele
são gente mafiosa e sem escrúpulos… – disse com a voz trémula, repleta de
preocupação.
- Espera… tenho o meu amigo Rui, que
para mim é como se fosse um irmão. Ele tem uma habitação de turismo rural numa
aldeia em Trás-os-Montes, norte de Portugal, que poderia servir como refúgio
para a tua filha. É um sítio muito calmo onde a beleza da natureza se mistura
com a hospitalidade e generosidade daquela gente. Ali, tenho a certeza, que não
correria perigo.
- Parece-me uma boa solução… a minha
irmã Celine, como está desempregada, poderia acompanhá-la, só que… neste
momento não tenho dinheiro para as passagens…
- Quanto a isso, não te preocupes! Eu
trato de tudo… pela minha querida sobrinha faço tudo - afirmou Vasco,
orgulhoso, por proteger a pequena Eliana. Ele começava a sentir por ela um amor
paternal.
Patrícia de olhos postos no seu portátil
e no seu inseparável bloco de notas onde anotava todas aquelas pistas que,
supostamente, serviriam ao desmembramento do enigma de Giuseppe e Duarte,
começou por escrever “CHIAWITSWEL” numa folha branca como se esta fosse a
verdadeira pista para desvendar os negócios sujos de Giuseppe.
As poucas vezes que Duarte a visitava e
sempre que apanhava o telemóvel esquecido na mesa da sala ou no quarto, copiava,
num ápice, as mensagens obscuras para o seu bloco de notas. Era neste pequeno
maço de folhas que ela tentava, de há uns tempos para cá, descobrir alguma
coisa de concreto para incriminar de uma vez por todas Giuseppe e os seus
compinchas. Receava por Duarte, afinal era o pai da filha dela, porém não
poderia continuar a viver naquele clima de insegurança. Fazia jogo duplo com o
dono do Dom Café para sacar toda a informação que a conduzisse a uma pista para
se fazer justiça e viver em paz com Eliana.
A mnemónica “CHIAWITSWEL” poderia ser
uma password, mas também uma sigla qualquer relacionada com o tipo de serviços
sujos que Giuseppe estava habituado a praticar. Talvez fosse um código verbal
para a carga ou descarga de mercadoria ilícita. Este conjunto de letras também
constava numa das mensagens de Duarte, que após o recebimento desta, saiu
rapidamente sem despedidas.
Que raio de mensagem daria aqueles
caracteres? Foi escrevendo várias tentativas na folha, mas não conseguiu chegar
a uma conclusão que a satisfizesse. Desistiu, por instantes, e foi até à janela
da cozinha para espairecer a cabeça. Enquanto observava o céu, que já se
encontrava azul e pacífico e onde o sol voltava a sorrir com os seus raios
luminosos, sentiu-se inspirada para, mais uma vez, voltar a sentar-se em frente
dos papéis que a rodeavam.
Analisou, minuciosamente, todas as
pistas escritas e, após muitas tentativas, compôs esta frase:
C – cocaína
H – hoje
I – importada
A – através
W – Morro do Careca
I – Interpol
T – tem
S – socorrido
W – work (trabalho)
E – encomenda
L – levantar
Elaborou então uma frase: “Através do
Morro do Careca, a Interpol ajuda no trabalho da distribuição e no levantamento
do produto encomendado - cocaína.“ Se o seu raciocínio estivesse correto,
estaria no caminho certo para apanhar uma série de criminosos, inclusive,
agentes da Interpol. Guardou sigilosamente esta frase para mais tarde mostrar à
sua amiga Larissa.
Vasco tinha adormecido, no pequeno sofá
de pele, com a sobrinha ao colo. Patrícia, ao ver tal gesto fraternal,
comoveu-se ao ponto de soltar algumas lágrimas gordas pelo rosto abaixo.
Capítulo
XV
Luísa
Vaz Tavares
Ali o tempo era diferente, tão diferente
da quente e ruidosa Natal. E não se referia apenas ao tempo meteorológico, que
esse já ela sabia e vinha preparada para enfrentar. Uma breve paragem em Lisboa
dera-lhe para comprar agasalhos quentes para si e para a sobrinha Eliane.
No dia anterior a irmã Patrícia
tinha-lhe pedido, com um trago de medo na voz, que acompanhasse a sua filha
para um refúgio numa aldeia do interior norte de Portugal. Não houvera tempo
para explicações, mas Celine amava a sobrinha e jamais recusaria um pedido da
irmã, ainda para mais se a menina corria perigo.
A simpatia da Senhora Alexandrina
cativara-a logo ao primeiro olhar, de imediato tinha percebido que arranjara
ali uma confidente para os desabafos de uma vida atribulada. De estatura
mediana e pele rosada pelos ares do campo, era ela que tomava conta da unidade
de turismo rural, propriedade do amigo de Vasco.
- As pessoas aqui veem para descansar
das correrias do dia-a-dia na cidade, é um lugar calmo e cheio de paz. – Dizia
ela a Celine, enquanto a ajudava a acomodar-se, a ela e à sobrinha. – Este é o
único sítio onde se podem hospedar e por isso sou eu que recebo toda a gente cá
na terra. Aqui há um tempo é que andou por aí um rapaz que não ficou cá na
casa. Andava lá pela serra e só descia cá à aldeia para buscar comida.
Chamava-se Duarte…
- O meu pai também se chama Duarte –
disse Eliane com aquela vivacidade própria das crianças.
Celine ficou pensativa, como se tivesse
sido atingida por um pressentimento. Teria aquele Duarte algo em comum com o
Duarte que Patrícia procurava? O pai de Eliane.
E Lisboa cirandava ao ritmo da brisa
marítima, após o almoço.
- Estou, Colaço? É o Duarte…
- Qual Duarte?
- Como qual Duarte, que conversa é essa…
quantos Duarte’s conheces tu? Sou eu, o Duarte do Jornal.
- Na verdade já lhes perdi a conta, mas
adiante… diz lá, precisas de alguma coisa?
- Isto está a ficar complicado, estás aí
nesse buraco a que chamas escritório?... Estou a ir para aí.
Não tardou a que Duarte estacionasse o
carro junto ao número dez da Rua dos Contrabandistas e galgasse as escadas de
dois em dois degraus até ao sótão. Bateu levemente à porta e entrou sem que
Colaço tivesse tempo de fechar o documento que observava, completamente
embevecido, no ecrã do computador.
- Isto é espectacular… os gajos planeiam
dominar o mundo!
- Estás maluco ou quê? Eu venho aqui
dizer-te que não quero mais saber das tuas investigações, que vou sair disso, e
tu vens-me com essa conversa de gajos que planeiam dominar o mundo.
- Mas é isso mesmo, é a investigação… o
plano é TDTI. E querem começar por ti.
- Mau, agora é que já não me está a
agradar. Ontem levei um enxerto de porrada para me livrar dos tipos do
Giuseppe, cheguei a casa tive que disfarçar para a mulher não perceber e agora
tu com essa história mirabolante dos gajos que me querem apanhar para dominar o
mundo.
- O Giuseppe, o Giuseppe… o Giuseppe é
apenas um pau mandado.
- Como assim? Mas então não é ele o
cabecilha de uma rede de tráfico de droga ou algo mais escabroso que me iria
dar a reportagem da minha vida?
- Qual quê, o gajo é raia miúda como são
os que te quiseram levar ontem.
- Não, eu não disse que me queriam levar
para lado nenhum, os gajos quiseram foi gamar-me a pasta. Provavelmente
pensavam que tinha alguma coisa escrita sobre o negócio, sei lá.
- Não Duarte, os gajos quiseram mesmo
levar-te… na verdade ainda querem.
- Bom, já me estás a por nervoso com
essa conversa. Desembucha lá de uma vez!
- Está bem, tem calma, é isso que tenho
estado a tentar fazer. Senta-te aí que a história é longa.
Duarte puxou uma cadeira para junto da
secretária que sustentava o computador, enquanto colaço vertia duas doses de
whisky em copos descartáveis e começava a contar como tinha chegado até Camões
e Bocage perseguindo Giuseppe.
Não tinha sido a primeira vez que no
encalço de Giuseppe, Colaço tinha ido parar àquele antro no bairro de Triana em
Sevilha e há dois dias tinha chegado bem perto da chave de todo o mistério. Com
a ajuda de Naira, a gerente do La Latina, que seduzira com promessas de luxúria
e glamour, conseguira o disfarce que
lhe permitiu ouvir a conversa entre Giuseppe e aqueles dois que mais pareciam
siameses: o Bocage e o Camões. Mais tarde alguns telefonemas para contactos que
mantinha ainda desde o tempo de Africa e tudo ficou claro. O TDTI era um plano
que visava uniformizar a humanidade e torna-la manipulável por aqueles dois.
Mas agora, graças à sua investigação,
iria ser abortado mesmo no último momento. Antes de a vida humana na terra
ficar em perigo.
- Isso quer dizer que sempre tenho
reportagem? Que vou poder esfrega-la na cara do meu chefe, quando ele ameaçar
transferir-me para a necrologia?
- Isso mesmo, Duarte. Vou tratar dos
pormenores com a Interpol e tens garantido o exclusivo.
- Mas espera lá, não havia também aquela
coisa do tráfico lá no Brasil?
- Havia e há… mas não vou fazer nada,
vou deixar que a Patrícia brilhe. A jornalista que te falei, lembras-te? A
miúda está a safar-se bem, está quase lá. E também já percebi que o meu
sobrinho Duarte não está envolvido.
- Esses putos são o teu calcanhar de
Aquiles…
- Oh pá, se são. Não fossem eles e já me
tinha perdido no mundo… o Daniel pode ser um sacana mas conseguiu construir a
família que eu quis e não consegui.
Uma semana mais tarde numa qualquer
explanada de Lisboa.
-… e então pensaram que me tinha
transformado no Gandhi lusitano?
- Depois de termos descartado a ideia de
teres ido dedicar-te aos gatos, sim. Olha puto, outra destas e aqui o velho tio
Colaço não aguenta.
- Prometo que vou ser um anjinho daqui
para a frente.
- Pois, pois… descruza é os dedos antes
de fazeres a promessa.
Sem comentários:
Enviar um comentário
Esperamos que tenha apreciado a nossa escrita e que volte a visitar-nos. Deixe-nos a sua opinião. Obrigado!