Fotografia original © José Manuel Barbosa Montagem © Luísa Vaz Tavares |
E
agora, que João saíra exasperado, Sofia estava ali, dona absoluta de si e das
suas decisões, sem nenhuma intervenção dele para a dissuadir da sua intenção de
descortinar, de uma vez por todas, a verdade-mistério escondida naquela mala-
sacrário. Sentia-se no limiar de um pórtico susceptível, ou de amainar as suas
inquietações, ou de a lançar num precipício sem retorno. Mas, onde aquele
ímpeto quase agressivo para arrancar a carta a João, apanhado em flagrante com
a ‘verdade’ nas mãos? Um misto de medo e de ousadia travava-lhe o gesto de a
abrir. Tanto havia já sondado nas entranhas daquela mala e, vistas bem as
coisas, ainda lá se perdiam tantas pontas soltas. Este jogo de João deixava-a intrigada.
Seria uma provocação, para a levar ao paroxismo das suas inquietações mais
íntimas? Ou não seria ‘jogo’ e fora, simplesmente, apanhado em flagrante? E as
interrogações acumulavam-se. Por que razão traria o marido aquela carta
consigo? Por que razão quereria subtraí-la aos seus olhares? E que estranhas
alusões a consequências trágicas de morte decorrentes desta leitura? Teria ele
ousado devassar esta missiva antes de ela a conhecer? E por que razão não a
teria, ela própria, encontrado no meio dos diários e das fotos? Ai, como esta
catadupa desordenada de questões silenciosas estava a fazer-lhe mal! Apercebeu-se
de que as pernas lhe tremiam e a saliva secava-lhe as paredes da boca. Se
tivesse de falar não o conseguiria. Pensou sair para beber um pouco de água,
mas receou cruzar-se com João e mostrar-se-lhe assim meio desvairada. Dar-lhe
de bandeja esta fraqueza seria uma humilhação. Pensou no acto tresloucado da
mãe ao lançar-se no abismo das águas. E se João, ao vê-la naquele estado,
descobrisse nos seus olhos, na sua agitação, laivos da depressão da mãe? Permaneceu,
então, ali, exercitando a respiração e afagando o envelope amachucado e amarelecido.
Não queria danificá-lo, tal o nervosismo que lhe desajeitava os gestos.
Sentou-se. As palavras do marido vinham-lhe em ressonâncias de uma sinceridade
de que já se tinha esquecido nos últimos anos. Pensou, também, que tudo isto
teria, talvez, a vantagem de a aproximar mais dele. Ou talvez não. Uma mala,
uma incógnita a esfrangalhar-lhe os nervos. Uma mala, aprisionando, há anos,
uma qualquer revelação, quem sabe prestes a roer-lhes a esperança de um novo entendimento.
O que saberia João que ela ainda não conhecia? Ele lera a carta, de certeza que
a lera. E não devia devassar as suas entranhas antes dela. Afinal, João estava
do seu lado, visando atenuar-lhe o desconcerto, ou estava sub-repticiamente a
atiçar o caos emocional que lhe daria volta à vida? Quereria ele pôr um ponto
final neste desaire, porque ainda a amava e desejava normalizar a relação de
ambos? Ele não quereria perder Sofia. Ela sentia que seria isso.
Paradoxalmente, o seu amor por ele parecia reacender-se neste clima conturbado,
brasas cobertas de cinza, mas escondendo a faúlha necessária para lhes devolver
a chama. Estes pensamentos acalmavam-na e excitavam-na. Olhou-se ao espelho.
Esboçou um sorriso. Puxou os cabelos para trás e achou-se ainda bonita, apesar
de não se ter maquilhado, como fazia no auge do enamoramento por João. Sentiu saudade
daquele abraço forte e quente do momento em que ele lhe anunciou que queria
casar com ela. Estava, afinal, tudo tão presente na sua memória! Ah, mas havia
a carta, ali, na sua mão suada, à espera de ser desvirginada. Desvirginada? Mas
se João já a lera? Retirou o verbo. Bem, tinha de avançar. João, talvez no
jardim, começaria a ficar impaciente. “Tem mesmo de ser, Sofia. Não vaciles,
agora! É a Hora” - diz para si, parafraseando o poema da Mensagem, de Pessoa.
Encostou-se à janela e a aventura começou. Devagar, mas traída pela respiração
irreverente, foi agredindo, com a ajuda de um canivete, a cola quase
inexistente – o envelope já teria sido aberto e voltado a ser colado, iria
jurar -, e eis, finalmente, o recheio, exposto na sua nudez mais impura. Não,
não era assim, havia ainda um outro envelope, esse já recomposto sem tanto cuidado.
Nele estava escrito: “Para a minha querida filha. Para abrir depois da minha
morte”. Reparou na caligrafia. Tão diferente da dos dias de hoje: escultural,
com as consoantes elegantemente desenhadas e um todo harmonioso como se fosse
uma pauta de música. Respirou fundo, limpou as gotas de suor que lhe borbulhavam
na fronte, ganhou coragem e espreitou, como quem espreita para a abertura de um
poço: não havia carta alguma; apenas uma fotografia e uma data. Manuseou-a uma
e outra vez. Não estava a reconhecer ninguém. E que data seria aquela? Pensou,
de imediato, que talvez o marido tivesse surripiado o texto esclarecedor da
imagem e da data. E agora? “João! João!” – Grita.
Albertina Fernandes
O suspense continua... será que João surripiou mesmo o texto que explicaria o que se vê naquela foto ou será que Sofia terá de a entender por outros meios?
ResponderEliminarUm capítulo que vem confirmar o desde o início se adivinhava: esta é uma história complexa, tal como é a mente humana. Parabéns, Albertina!
Muito bom, complexa mesmo esta história.
ResponderEliminarParabéns Albertina