@Paco Garzón |
Hoje o dia tem sido extenuante. Tanto para resolver nesta
nova situação! No entanto, é um pouco como se tivesse feito uma transfusão e me
sentisse renovada. Toda esta azáfama impede-me de pensar e de voltar a cair em
estados dos quais quero distância e esquecimento.
Lá fora o vento começou a soprar com intensidade e não sei
porquê, pela primeira vez desde que comecei a ler os cadernos, senti um
calafrio e o cheiro a algo funesto e sombrio. Hoje abri o caderno do Vicente e
no meio descobri várias madeixas de cabelo de cores diferentes, cuidadosamente
coladas numa folha manchada em tons de ferrugem. Tremi, mas a curiosidade foi
mais forte. Lentamente embrenhei-me numa escrita que pouco a pouco me foi
deixando sufocada.
Vicente
Todos me subestimam. Que
bom! Ninguém percebe o ridículo em que caem, todos convencidos da sua
sapiência, não passando de meras moscas que atraio para a minha teia. Os meus
olhos são janelas imperscrutáveis e só mostro mesmo o que quero. Sou um ator
formidável e por muito que tentem, tudo o que conseguem é a ideia que criam na
mente, sem fazerem a menor ideia de quem realmente sou. A pior é sem dúvida a
Dra. Helena. Pergunto-me como é possível ter aquela profissão e deixar-se
ludibriar completamente por mim. E quem diz por mim, diz por certo por outras
pessoas.
Hoje no seu gabinete
tentou escalpelizar-me com muita conversa e diversas técnicas que reconheci.
Conheço-as bem e cheguei a utilizá-las com algumas das minhas vítimas.
Atualmente nem necessito de tal. A personagem que criei faz todo o trabalho sem
que tenha de me incomodar muito.
Mas vamos por partes. Sou
um serial-killer com muito orgulho. Bem, não sei se é orgulho, mas é certamente
a plena consciência de quem sou, do que sou e sempre serei.
Tive uma infância normal,
nunca fui maltratado, era um aluno médio e fugi a todos os estereótipos. Tenho
grande apreço pelos animais, mas os seres humanos parecem-me uma espécie
execrável pela qual não nutro qualquer simpatia. Escusado será dizer que não me
considero fazendo parte dela.
Quando vim para aqui
pensava fazer um interregno na minha já longa lista de vítimas. Sentia que
precisava de repousar a mente, de arquitetar novas formas de surpreender as
criaturas incautas que se cruzam no meu caminho. Mas ultimamente sinto que
preciso de fazer aquilo em que sou mestre. Já se passou algum tempo e tudo se
conjuga para que eu possa ser plenamente quem sou.
Não mato por raiva, ou
vingança, nem sequer por crueldade. Matar é uma arte que requer preparação,
método e raciocínio. A paixão tolda a geometria das ações e leva a erros
crassos. Não se chega à minha idade em liberdade e sem nada temer, sem planear
antes de agir. E eu sou sem dúvida fã da planificação. Nada é ao acaso e por
impulso. Seria terrível ter de depender de emoções abruptas e estar sujeito a
paixões descontroladas. Tudo no meu universo é feito de linhas retas e
propósitos definidos.
O meu casamento com a
Beatriz faz naturalmente parte dos planos. A certa altura precisei de alguém
que me fizesse passar por um déspota idiota, mas frouxo. Nem a Beatriz o
percebe. Dança como uma marioneta nas minhas mãos. Julga que temos um acordo,
sou o macho na sala e ela é-o no quarto. Pura ilusão! É assim que quero que
seja para melhor tecer a minha teia. A minha aranha interna quer escolher a
próxima vítima sem que esta se aperceba. Por enquanto a minha mulher faz falta.
Depois será descartável. Meto-lhe nojo e não suporto tantas emoções espelhadas
num rosto.
Tenho analisado cada um
dos personagens que gravitam à minha volta. Alguns interessantes, mas todos sem
a centelha necessária para se compararem a mim. Olho-os e disseco-os. As
ninfomaníacas, os homossexuais, os egocentristas, os tímidos e explorados.
Todos, de um ou outro modo, despejados aqui na busca de uma possível cura para
o que os atormenta ou interfere com a vida de alguém.
No outro dia consegui
trocar umas palavras com a Amélia. Ora aí estaria uma bela parceira de crime se
não fosse uma apaixonada! Vai por certo conseguir matar alguém de um modo
trapalhão e ser apanhada, isto por muito que ela pense que tem tudo sob
controle. Não tem. As emoções vão fazê-la errar e toda a beleza do ato será
destruída. Mas foi bom poder conversar com ela e saber das suas intenções mesmo
que camufladas. Sentir-lhe os impulsos assassinos debaixo da frágil aparência,
trouxe-me um pouco de êxtase e deixou-me prevenido. A paixão com que reage
tornou fácil a abordagem que lhe fiz e acabou por dizer mais do que queria.
Muito jovem para enganar um mestre.
Nenhum dos outros me
desperta qualquer interesse. Não falo de amor ou de ódio. Nunca senti nada
disso e agradeço que assim seja. De contrário, como poderia praticar a minha
arte com a precisão matemática como o faço? Mas é curioso ver os jogos que
praticam todos enredados em malhas apertadas sem se conseguirem libertar. O
problema que vejo é que neste momento não me convém sair deste lugar. Logo,
preciso escolher alguém dos que me rodeiam para exercer a minha arte.
Este ambiente é propício
aos meus desejos. Escolhi-o criteriosamente. Tudo casa maravilhosamente comigo.
Não com aquilo que aparento, mas comigo, com quem realmente sou, um esteta
dedicado àquilo que verdadeiramente importa. O pessoal é esquivo, de olhos
baixos, reduzidos a um mutismo imposto, que me agrada. A Ilda, a única
portuguesa, parece tosca e violenta, mas é por isso facilmente manobrável. De
resto, movo-me ao sabor dos humores flutuantes dos meus colegas de
internamento. Estudei-os cuidadosamente e neste momento dificilmente algum me
poderá surpreender.
Hoje estou a escrever no
jardim. Há um banco meio escondido no meio das buganvílias e a leve brisa que
corre agita as mechas de cabelo que guardo no meio do caderno. Foram
cuidadosamente coladas para não se desprenderem e gosto de lhes tocar ao de
leve. Foi há pouco tempo que comecei a colecionar estes pequenos troféus e
ainda não sei porquê. Embora isto não me preocupe, não deixa de ser um desvio
ao meu comportamento. Talvez pudesse falar disto com a Dra. Helena, mas pelo
que vi dela, dificilmente conseguiria guardar segredo profissional. Da última
vez, deixei uma pequena mancha de sangue na página, que, entretanto, se tornou
num degradé de vermelhos, rosados e magenta. Faz-me lembrar uma pintura
abstrata e tornou-se interessante o mistério de a decifrar.
A Anabela passou agora e
fez-me fechar abruptamente o caderno. Esta chegou há pouco e já percebi que
adora meter o nariz em tudo. Passa a vida de roda dos outros, numa intromissão
que chega a ser despudorada. Não se insinua, mas esgaravata como um animal na
busca de alimento. A sua curiosidade não me assusta, mas enxoto-a como se fosse
uma mosca aborrecida. Não tenho paciência para a sua verborreia que em nada me
é útil.
Preciso de me preparar
para logo. Não posso deixar de dançar com a Beatriz a música que só eu oiço. Na
realidade trata-se de algo que vou compondo. Tal como noutras coisas, sou
versado em música e o alinhamento das notas numa partitura que a minha cabeça
retém, é uma espécie de mapa que utilizo quando começo a pensar na próxima
vítima.
É quinta-feira e falta
pouco para ter a sinfonia completa.
As últimas notas foram
escritas a evitar respirar o perfume da Beatriz no final da dança. O final será
naturalmente tocado num pizzicato Bartók.
Domingo
Margarida Piloto Garcia
Belo texto, bom fim de semana!
ResponderEliminarObrigada Simple Girl. Ótimo fds.
ResponderEliminarGostei e apreciei este belo texto!
ResponderEliminarBom fim de semana.
Bjs
Obrigada Amélia. Continue a seguir-nos.
ResponderEliminarUma escrita poderosa e brilhante, que lembra a escrita dos escritores escandinavos de romances policiais, que eu tanto gosto.
ResponderEliminarAinda uma pergunta:
EliminarA Ilda é a única portuguesa, que nacionalidade têm os outros personagens. Todos eles têm nomes bem portugueses.
Ematejoca obrigada pelas palavras. A Ilda é a única portuguesa do pessoal. De resto e tirando a Dra. Helena, as outras falam espanhol. Não esquecer o que foi escrito antes quando respondiam " no puedo hablar" " no entiendo", etc. Já os personagens principais são realmente portugueses.
ResponderEliminarNão comecei a ler esta história desde o início, daí não ter lido "no puedo hablar" ou "no entendo". Muitíssimo obrigada pela a explicação.
EliminarEstou a acompanhar e gosto, aproveito para desejar um bom fim-de-semana.
ResponderEliminarAndarilhar
Dedais de Francisco e Idalisa
Livros-Autografados
Bom fim de semana e continue a ler-nos.
ResponderEliminarParabéns ☺ Mamã,está muito bom o teu conto e há tantos casos de pessoas que são como essas personagens. Continua a escrever mais contos.
ResponderEliminar❤
ResponderEliminarVocês deixam-me a cabeça à roda.
ResponderEliminarBoa semana
Às vezes cabeça à roda é bom. Boa semana Pedro Coimbra
ResponderEliminarCada capítulo melhor que o outro! É raro ver tantos excelentes escritores reunidos! Boa semana, amigos.
ResponderEliminarMuito bom :)
ResponderEliminarCada vez gosto mais de ler as peripécias desta história cuja densidade se vai avolumando!
ResponderEliminarParabéns.
Boa semana.
Obrigada O Árabe. Somos todos diferentes e essa diversidade torna tudo mais interessante.
ResponderEliminarAna Bessa continue a ler-nos. Boa semana.
ResponderEliminarObrigada Lua Azul.
ResponderEliminarGostei muito do conto!
ResponderEliminarBjxxx
Ontem é só Memória | Facebook | Instagram
Boa semana Ontem é só Memória e obrigada.
ResponderEliminarVicente, um personagem que desde o início deixava vislumbrar um certo mistério e que agora se revela. Para mim, de forma surpreendente e brilhante. Gostei muito, Margarida!
ResponderEliminarPonto, isto aqui tem muitos pontos!
ResponderEliminarDá boas leituras.
Abraço.
Obrigada Luísa. É um prazer participar nestas nossas estórias. Cada capítulo é um desafio e eu gosto disso.
ResponderEliminarObrigada Agostinho. Continue a ler -nos.
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