@João J. A. Madeira |
Lá fora rebentou a primeira tempestade de
Verão.
Previra-o pelo calor abafado e a humidade
asfixiante que demorara a tarde estranhamente silenciosa. As aves quietas
aguardavam aninhadas entre os ramos densos do castanheiro que ensombrava a
janela aberta do quarto.
Os cadernos amarelecidos pelo tempo e pelo
acondicionamento prolongado entre as paredes recentemente derrubadas pelos
pedreiros responsáveis pela obra, repousavam alinhados na prateleira da estante
sobre a escrivaninha antiga no meu quarto.
Restava-me apenas um daqueles diários.
Sempre gostei de adiar o encerrar de um
livro, prolongar o prazer com a tortura da espera pelas últimas páginas ainda
invioladas.
Assim, velara-o durante toda a primavera
sobre a minha mesa de cabeceira e hoje, uma semana após o solstício, chegara o
momento.
Esperara como toda a natureza lá fora aguardara
pela tormenta.
A luz era escassa agora que o dia deixava a
noite cair. As velas alumiavam cada uma das divisões da casa alongando os seus
recantos vazios.
Senti as rugas da capa fina sob as pontas dos
meus dedos trémulos e abrindo-a, li na página nua o nome… Ilda.
Ilda
Estou
deitada, inerte, nesta cama de campanha. Abro os olhos e foco o candeeiro que
se vai abanando muito lentamente ao sabor do vento que entra pela janela
entreaberta.
Chamo-me
Ilda e estou agora na posse deste corpo estropiado por uma doença desconhecida.
Rio-me sem emitir qualquer som nem movimento e a mulher sentada na cadeira ao
meu lado, não se apercebe que estou aqui onde todos os outros já estiveram antes
de mim. O corpo imóvel é que me possui e acorrenta.
Conhece-os,
aos outros, um por um, em cada uma das suas fraquezas e dos seus devaneios.
Sinto-os quando ocupam o corpo que também é meu. Sei que me desprezam e me
consideram uma serviçal bronca e mal encarada e eu deixo-os fazê-lo porque no fundo
sei que sou a única que os domina, mesmo quando, por vezes, as suas presenças me
coabitam.
Eu, Ilda,
sempre habitei este corpo, desde o primeiro sopro. Somente depois, muito depois,
foram chegando os outros: sem passado nem futuro.
Na minha memória
que tudo revive – tenho mais que tempo agora para dedilhar esses fragmentos –
lembro a estranheza da minha mãe que assistia à minha metamorfose depois da
leitura de um novo livro. E tinha tantos nas estantes de mogno da biblioteca do
meu pai. Ainda apenas lia aqueles que me eram designados e que estavam nas prateleiras
mais baixas. Hoje era aventureira como o Peter Pan a defrontar o Capitão Gancho
e ontem havia sido laboriosa e devota à família como a irmã mais nova da Jane das
Mulherzinhas. Em mim entravam e saíam entidades inofensivas sem deixar qualquer
rasto.
Com a
ousadia da adolescência subi nas prateleiras e na perversidade das personagens.
Demoravam-se dias, semanas inteiras e, do nada, eu ardia em febres
inexplicáveis.
E depois
eles chegaram, espíritos livres, desencarnados e nunca mais estive só.
Esquizofrenia,
rotularam-me no hospital central e as tentativas de cura tiveram inicio.
Lembro o
sabor e o cheiro da mordaça que me colocavam nos dentes antes de cada sessão de
choques elétricos. E depois o repouso conturbado da inconsciência.
Isso foi
antes, antes de aprender a domar e a calar as vozes.
Deram-me
como curada e sei que o meu nome faz parte de algum estudo que valida a electrocução
assistida como terapia. Foi nessa altura que Dinis me abandonou.
Mas os
outros continuaram a habitar simuladamente em mim. Não sei o que sou: acordo,
por vezes, acorrentada e lembro a visita do Gabriel ou da Cláudia, ou da
Amélia…
Quando isso
acontece, o meu corpo obedece-lhes e eu levanto-me desta cama. É irónico pensar
que eu, a mais dominante, não consiga mexer um único nervo ou músculo.
Assisto
assim paralisada ao desfilar de todos os meus espíritos, cada um com um grau de
loucura maior que o outro.
Quando,
cansada, adormeço, as vozes, a minha e a dos outros, gritam e falam e blasfemam.
A mulher sentada tem mais um caderno na mão. Vejo, através do reflexo dos
espelhos do toucador e do guarda-fatos, que escreveu o meu nome na primeira folha
pardacenta. Sobre o tampo da mesa de apoio repousam também outros cadernos.
Ouvi a mulher falar com o Sebastião. Disse-lhe que era psiquiatra, mas sei que
mente. A Helena reconheceria uma sua colega e não me parece que o tenha sentido
assim.
Aos pés da
cama, está pendurado um ficheiro clínico. Não vejo daqui o meu nome, Ilda ou
qualquer dos outros. A muito custo identifico as letras: L A U R A.
Deixei o caderno cair entre as minhas mãos.
Devagar a lembrança do que fora e do que sou,
ganhou vida ao fim de muitos anos de recalcamentos e de anos de hipnose. Eu, Laura
já não estou só e todas as minhas vozes lutam por sair de mim ou a mim
possuir-me. A luta interior provoca-me dores lancinantes nas mãos fechadas, nas
costas arqueadas e na minha cabeça que ameaça explodir. Pressinto os passos
pesados do vencedor.
Um último aviso, fujam!
“Sou eu, o Vicente e vou matar! ”
Rosa
Santos
Aqui deixo meus cumprimentos e votos de um Feliz domingo de Páscoa a ti e aos teus! Muito amor, luz e saúde! Grande abraço! Laerte.
ResponderEliminarespero que tenhas uma boa pascoa
ResponderEliminarRêtro Vintage Maggie | Facebook | Instagram
Boa semana
ResponderEliminarTenha uma semana abençoada.Bjs.
ResponderEliminarEsta saga está misteriosíssima.
ResponderEliminarBoa semana!
Abraço.
Deveras interessantes! Gosto de seguir.
ResponderEliminarBJ
Bom dia, é misterioso, se conseguir seguir, (penso que sim) vou desfazer a curiosidade.
ResponderEliminarAG
Um bonito conto. Gostei de ler.
ResponderEliminarDepois de um tempinho ausente cá estou de volta.
Uma boa noite e uma excelente semana!