Desde a conversa com Chico – o Senhor Tenente,
como era agora pomposamente chamado pelas gentes da terra – que António não parava
de matutar naquele estranho diálogo. Não confiava, não conseguia mesmo acreditar
no lamento de Francisco perante a notícia da morte de Xavier. A informação que
não interessava à PIDE que circulasse, não circulava, é verdade; mas o Chico
nunca deixara de ter família lá na vila. Família próxima com quem mantivera contacto,
António sabia-o.
Deveria cessar por um tempo a distribuição
de propaganda anti regime? Apesar de não entender praticamente nada do que
estava plasmado naqueles folhetos; só aceitara o servicinho por consideração a
Américo. Se o amigo não o podia fazer, fazia-o ele! Este não era como o outro,
que se fez tenente; este nunca renegaria a irmandade. No entanto, isso também
não lhe valeria de nada, no caso de ser apanhado.
Mas havia ainda outra razão, que o estava
a fazer vacilar: o rendimento que aquela atividade lhe proporcionava.
Especialmente agora, que tinha assumido a responsabilidade para com Clarinha e todas
as despesas que consequentemente vieram com esse assumir.
Clarinha que, por sinal, estava radiante
de felicidade. Pela longa planície alentejana, o carro da Doutora Lurdes rolava
pelos quilómetros e quilómetros de estrada que ligavam Lisboa a Aljustrel. Era
um encantamento que não disfarçava. Nunca tinha conhecido tantas coisas novas,
quanto desde que vivia com a Doutora; mas aquela visita à mãe superava tudo. Quando
a Doutora lhe dissera, chorara e rira ao mesmo tempo, entre a alegria e a emoção.
Era Natal, mas tinha estado com a mãe há poucas semanas e sabia que outro encontro
era inconcebível em tão curto espaço de tempo; nem a mãe poderia ir a Lisboa e
muito menos vir ela à terra. Pensou em escrever uma carta, mas certamente chegaria
depois dela, e telefone, um dos poucos que existiam na vila era na casa da
Doutora Manuela e não queria estar a incomodar. Seria uma completa surpresa, o
que até não era mau.
À hora a que chegaram, Adelaide estava a
trabalhar e Clarinha, apesar de ansiosa, muniu-se de todo o seu bom senso e com
a sapiência dos seus experientes anos de vida, proferiu:
– Eu acho que é melhor irmos direto a casa
da Senhora Doutora Manuela. A minha mãe a esta hora está a trabalhar e eu não
quero que o patrão lhe ralhe. Ele fazia isso, quando eu ia lá aos campos ter com
ela.
Lurdes apenas assentiu, mas por dentro sentiu
uma revolta de cortar a respiração. Como é que uma mulher não podia ver a sua filha,
que não via há algum tempo, nem que fosse por breves segundos, só porque estava
a trabalhar? Mas isso eram outras lutas…
Mal tinha descido do carro e já Átila corria
em direção a ela, que de braços abertos o recebia e gritava:
– Ele reconheceu-me… o meu amigo reconheceu-me!
Manuela congratulou-se com a desenvoltura
da menina. Se alguma vez tivesse tido dúvidas em relação à atitude que tomara, naquele
momento todas se dissiparam. Abraçou a amiga, que, entretanto, viera até si e
as duas caminharam ao encontro de Clarinha e Átila; que extasiados com o reencontro
não se largavam.
– Que boa surpresa, Clarinha.
– Senhora Doutora, desculpe! O Átila veio
logo abraçar-me e não fui cumprimentar a Senhora… – a criança que instantes
antes, tão efusiva tinha sido com o cão, voltou à sua postura de menina tímida
e calada.
Manuela tentou pô-la à vontade, com alguma
conversa trivial e bem-disposta. Depois, ela e Lurdes entraram em casa, deixando
a criança e o animal a continuar a brincadeira.
Paredes meias com a propriedade que
Manuela herdara da tia, numa casa apalaçada do mesmo estilo, um rosto sofrido olhava
através de uma vidraça.
– Ó rapariga, o que é que tu tanto espreitas
por essa janela?
– Nada, minha Senhora, nada. – Felícia apressou-se
a virar costas à janela, mas a Senhora já se tinha aproximado e seguia a direção
do olhar da criada.
– É a criança, não é?
– Deve ter vindo passar o Natal. Foi estudar
para Lisboa, a Senhora sabe? – Antonieta sentiu algum rancor na voz de Felícia.
– E isso incomoda-te?
– Não… claro que não! – Tentou disfarçar a
rapariga. – A cachopa é doente…
–… e irmã do teu filho.
Felícia engasgou-se. Abriu a boca para
negar, mas a voz saiu-lhe num ténue fio:
– A Senhora sabe?
Antonieta agarrou suavemente a mão da criada,
por quem sempre tinha nutrido carinho, e encaminhou-a para o sofá; onde ambas
se sentaram.
– Como tu sabes, há pouco mais de um ano
que moro de forma permanente cá na terra – a voz da mulher mais velha era de
aconchego – mas sempre vim cá com bastante frequência e os boatos correm.
– As pessoas são ruins… – o choro compulsivo,
que lhe despoletou da alma, não a deixou continuar.
– As pessoas tendem a julgar aquilo que não
entendem.
– Mas a Senhora não, a Senhora não me julgou
e deu-me trabalho. – Entre soluços, Felícia apertava as mãos da patroa com as suas.
– Não me julgues assim tão virtuosa, a princípio
não acreditei. Os boatos muitas vezes não passam disso mesmo, de boatos. E
também não achei que uma moça bonita como tu se fosse entregar a alguém como o
António…, mas os afetos não se regem pela razão, não é?
– É. E o que é que a fez ter a certeza?
– A certeza deste-ma tu agora. Mas…
Antonieta dirigiu-se ao móvel na outra
ponta da sala, abriu uma gaveta de onde tirou um envelope e juntou-se novamente
a Felícia. De dentro do envelope, tirou uma fotografia a preto e branco, que entregou
à mulher mais nova, sem dizer nada.
– O meu menino!
Na fotografia via-se um garoto com um
homem, que lhe afagava a cabeça enquanto lhe dava um saco de rebuçados.
– Sabes que o meu marido gosta de andar
por aí a tirar fotografias. É um passatempo, desde que se reformou. Há dias, encontrei
isso no estúdio de revelação dele.
Não percebeu se a rapariga tinha ouvido ou
não o que lhe dissera, viu-a levantar-se de rompante e o rosto, que instantes
antes estava lavado em lágrimas, ardia agora num vermelho-rubro.
– A Senhora sabe que ele perfilhou a
gaiata?
– Sim, parece que foi a Doutora que o coagiu.
– A Doutora, a Doutora… e ao meu dá rebuçados!
– Lágrimas raivosas escorriam pelo rosto de Felícia,
com a força de uma leoa que tudo fará para proteger a sua cria.
– Mas tu queres que ele também perfilhe o
teu?
– Claro que quero! Ou a Senhora acha que o
meu menino merece ser mais um filho de pai incógnito? Mais um daqueles que os
outros gaiatos põem no grupo dos que os pais não quiseram saber.
– E já lhe disseste? Já falaste com ele?
– Falar eu falei, mas não fez caso nenhum.
Sabe qual foi a resposta dele? Do pai do meu filho? Voltou as costas e abalou!
Sem uma palavra sequer…
Antonieta queria acalmar a rapariga, mas
não sabia como; nunca a tinha visto assim, no entanto sabia que ela tinha
razão.
– Mas ele não perde pela demora. Já estou
a tratar disso… – Felícia deixou que as palavras se soltassem, num desabafo incontido.
– Contrataste um advogado. Vê lá, se precisares…
Felícia soltou uma gargalhada histérica.
– Um advogado, minha Senhora? E eu lá
tenho dinheiro para isso. É o Chico, o meu Chico vai tratar do assunto.
– Qual Chico?
– O Chico, o Tenente Francisco.
– Ah, aquele filho da Josefa do Tio Chico Pires,
que foi para o Porto e seguiu a carreira militar.
– Esse mesmo, o Chico. Ele gosta de mim e
vai ajudar-me. Até porque eles os dois têm umas pendências antigas.
– Mas vocês andam de namoro?
– Ainda é segredo… sabe, ele é casado, mas
já me prometeu que vai deixar a mulher.
– Ai rapariga, não me deixas nada descansada com isso.
Luísa
Vaz Tavares
Ler a expressão "filho de pai incógnito" ainda hoje me dá vómitos.
ResponderEliminarBjs, boa semana
Verdade, uma realidade muito triste e ainda tão recente nos livros da nossa história. Obrigada pelo comentário.
EliminarBoa semana. Bjs
Gostei, Luísa. Uma escrita bonita, clara, com um bom desenvolvimento da história. Parabéns!
ResponderEliminarQuanto ao António… bem, o António vai ficando secundário face à envolvência que criou. E isso é bom…
Gostei muito Luisa. Está a ficar um conto que surpreende a cada folha que se lhe acrescenta. Sinto muito orgulho por ter participado mas, na realidade, sinto-o mais como um desafio numa fase em que precisava de dar uma volta à minha vida. Parabéns!
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