Pedro - 4º Dto
A distância de trezentos e cinquenta e
cinco quilómetros da capital tornou-se confortável para mim. Longe de todo o
ruído, boatos, imprensa e holofotes que me tinham rodeado durante o último ano.
Aquela pacata cidade portuária com uma população na ordem dos vinte e cinco mil
habitantes, tornou-se o refúgio ideal para prosseguir o meu trabalho e delinear
de forma sustentada a minha vingança contra a mulher que me levara do céu ao
inferno de um dia para o outro. Mas para que entendam melhor alguns
acontecimentos da minha vida, será conveniente fazer uma breve viagem ao meu
passado.
Possivelmente, eu fui um dos mais bem sucedidos
argumentistas deste país. Facto notável para uma profissão que se reveste de
elevado grau de precaridade e anonimato. Durante vários anos, escrevi e fui
autor de diversas telenovelas que obtiveram sucesso de audiências, consolidando
o meu nome no panorama audiovisual nacional. Anos mais tarde, um pouco cansado
deste formato televisivo e com a crescente popularização das plataformas de streaming,
decidi aventurar-me na escrita de uma série televisiva que, por golpe do
destino, gradualmente se tornou um enorme sucesso a nível nacional e
internacional. Repentinamente, tornei-me o foco da atenção mediática com O
Rastilho, uma série policial que retratava as máfias e o submundo da noite
da capital que teve três temporadas que prenderam a atenção de milhares de
telespectadores a nível global. Jamais se imaginara que um produto audiovisual
de produção nacional obtivesse um sucesso desta envergadura. Repentinamente, a
minha vida alterou-se de forma radical. Ganhei muito dinheiro, passei a ser
reconhecido na rua, sucediam-se os convites para entrevistas em diversos órgãos
de comunicação social, conheci diversas pessoas influentes do meio e era convidado
para imensas festas. Foi uma época em que diversas mulheres passaram pela minha
cama de forma mais ou menos intensa. Foi
nesse período agitado, que conheci a Filipa Arouca, apresentadora de televisão
sempre envolta numa enorme onda mediática e directora de entretenimento e
ficção do seu canal. Não será exagero dizer que a Senhora Televisão ainda
é uma das figuras mais influentes do país.
A química entre ambos foi quase imediata e
envolvemo-nos num romance secreto e intenso que durou uns fugazes cinco meses.
Eu sentia-me completamente magnetizado por aquela mulher enérgica, inteligente
e de olhar intenso. Um corpo voluptuoso delineado por curvas generosas, cabelos
negros emoldurados num elegante corte Chanel e detentora de um sorriso
enigmático. Apesar da descrição dos nossos encontros que procurávamos manter
longe de olhares alheios, o secretismo não conseguiu perdurar por muito tempo.
Gradualmente, foram circulando rumores na imprensa cor de rosa sobre o nosso
relacionamento que nunca foi claramente assumido por nenhuma das partes. Era
uma situação confortável para ambos.
Subitamente, tudo mudou naquela noite
quente de final de setembro em que decorreu a gala de entrega de prémios do seu
canal. Após o término da cerimónia, um restrito grupo de convidados deslocou-se
para um palacete nos arredores da capital para uma festa privada que se
prolongou até ao nascer do sol. Ainda me recordo dos pormenores dessa noite, apesar
de ambos estarmos sob o efeito de diversas substâncias lícitas e ilícitas. A
dado momento, a Filipa descontrolou-se por completo, motivada por uma inusitada
cena de ciúmes e tentou agredir-me com um copo num recanto do jardim onde não
existiam convidados. Acabou por se atrapalhar nos seus movimentos bruscos, caiu
no chão e na sequência da queda fez um corte num braço com os vidros do copo
que se estilhaçou no chão. Num ataque de fúria desmedida desatou a berrar, o
que fez diversos convidados acorrerem ao local. Eu fiquei absolutamente estático,
com a cabeça envolta numa névoa química que me entorpecia os sentidos, uma
momentânea ausência de raciocínio lógico. Gerou-se uma enorme confusão e muitos
convidados acorreram ao local onde assistiam incrédulos aquele cenário surreal.
A Filipa continuava a berrar e a praguejar na minha direcção e repentinamente
fui atingido com um murro na face por um dos seus amigos que me deixou
completamente atordoado. Nova confusão instalada e acabei por ser transportado
pelos seguranças para fora da propriedade sob os apupos de diversos convidados.
Um absurdo e caricato ponto final de uma relação. Pressenti de imediato que não
havia ponto de retorno para uma situação daquelas.
Apesar de não ter sido apresentada nenhuma
queixa formal contra a minha pessoa que poderia me ter originado enormes
problemas judiciais, rapidamente me vi sob a mira da imprensa nos dias que se
seguiram, facto que não me surpreendeu visto estarem vários elementos da
comunicação social presentes na festa. Os rumores que circulavam sobre o acontecimento
eram grotescos. Violência física e até mesmo tentativa de agressão sexual à
toda poderosa Filipa Arouca que se manteve em absoluto silêncio em relação ao
sucedido naquela noite e bloqueou todos os meus contactos. O mistério pairava
no ar. Meias verdades e muitas mentiras. Rapidamente, a imprensa tratou de
vasculhar todos os meus antecedentes familiares, amigos próximos e procuravam
incessantemente por mulheres com quem já me tinha relacionado numa clara
tentativa de denegrir a minha imagem. A dado momento, tornou-se por demais
evidente que a Filipa estava a fazer um meticuloso trabalho de bastidores de
forma a sabotar o meu trabalho e arruinar a minha carreira. Na época, eu estava
prestes a iniciar a escrita da quarta temporada de dez episódios do Rastilho
que foi cancelada do dia para a noite pela produtora que se recusou a dar uma
justificação plausível para o cancelamento de uma série televisiva que até à
data tinha sido um enorme sucesso. Gradualmente todas as portas se iam fechando
e começavam a ser raras as pessoas do meio se dignavam a atender os meus
telefonemas. Eram as vicissitudes de viver num país pequeno onde todas as
pessoas ligadas ao meio audiovisual se conheciam para o bem e para o mal. A
rede de influências entre canais televisivos, imprensa escrita e produtoras era
avassaladora. Eu tinha-me tornado um personagem de um filme de contornos
surrealistas. Enquanto isso, a Filipa Arouca continuava a brilhar no pequeno
ecrã. Ainda persisti neste tormento durante alguns meses, mas antes que viesse
a mergulhar no desespero total ou numa depressão profunda, tomei a decisão de
abandonar a capital, tornar-me invisível para o circo mediático que tinha
invadido o meu quotidiano e refugiar-me algures para me reorganizar e
raciocinar com clareza.
Vendi o meu apartamento localizado numa
zona histórica da capital com todo o seu recheio, à excepção da minha extensa
colecção de discos de vinil e também me desfiz do meu automóvel topo de gama,
medidas desesperadas que me destroçaram por dentro. No entanto, eu necessitava
de reunir o máximo dinheiro possível para um futuro que estava repleto de
incertezas. Num raro lapso de sorte durante esse período, li uma pequena
notícia sobre um imponente e misterioso prédio numa pequena cidade no litoral
norte, cujos apartamentos seriam alugados com rendas de baixo valor. Entrei
rapidamente em contacto com a empresa que estava a dinamizar este projecto e
assegurei o aluguer do 4º andar direito do prédio onde iria tentar reconstruir
a minha vida. E numa tarde do início de novembro meti-me a bordo de um jipe
antigo que comprei no entretanto, na companhia da Tróia, a minha pachorrenta
cadela, que se tinha tornado a minha única companhia e viajei para longe da
capital onde tinha nascido e crescido, mas que se transformara num território
hostil.
A minha nova morada foi uma agradável
surpresa. O apartamento era amplo, constituído por três quartos, uma sala com
uma lareira enorme, uma cozinha luminosa, duas casas de banho e tinha uma leve
atmosfera de grandiosidade decadente que me cativou de imediato. Eu adquiri uma
série de electrodomésticos e mobiliário usado, mas ainda assim consegui tornar
a minha casa extremamente confortável. Existia essa clara necessidade uma vez
que eu passava longas horas em casa, ainda evitando o contacto com o exterior.
Após vários contactos com algumas produtoras estrangeiras, tinha conseguido
despertar a atenção de uma delas com uma sinopse para uma nova série que me
estava a absorver por completo.
Era um projecto inicial de doze episódios
em que iria misturar os géneros documentário e ficção de forma autobiográfica,
onde tencionava retratar a perseguição e sabotagem de que tinha sido alvo por
capricho da Filipa Arouca. Estava verdadeiramente empenhado nesta minha
empreitada e prossegui com os meus habituais horários de escrita nocturnos que
eram uma das minhas marcas registadas. Começava a escrever por volta das dez e
meia ou onze da noite de forma quase ininterrupta até às quatro ou cinco da
madrugada. Eu adorava o silêncio da noite e parecia que as ideias fluíam de
forma espontânea do meu cérebro para o teclado do computador portátil durante
aquele período. Eu sabia que tinha nas minhas mãos um produto explosivo que
iria deixar muitas pessoas incomodadas e isso só me deixava ainda mais
entusiasmado. A produtora tinha-me concedido um prazo de três meses para
apresentar o dossier completo desta série ambiciosa e arrojada.
Levantava-me pela hora de almoço, tomava o
meu banho e fazia uma refeição ligeira. Durante a tarde gostava de ouvir os
meus discos, via alguns filmes e séries de forma a acompanhar o que se ia
fazendo e vinha passear a minha cadela Tróia no jardim defronte do prédio. Com
uma certa regularidade, pegava na minha fiel companheira e ia de jipe até à
praia das proximidades para exercitar as pernas no areal ou ficava um par de
horas na esplanada do Bar da Moreia, local acolhedor com uma vista
formidável sobre a praia e as majestosas dunas que a rodeavam.
Porém, várias vezes em que me deslocava à
praia, aos restaurantes da zona portuária ou ao supermercado, tinha a clara
sensação de ser perseguido à distância. Em diversas ocasiões, notei a presença
de uma carrinha Mercedes-Benz de cor preta que me parecia vigiar os meus
movimentos. Mais grave ainda era ter quase a certeza de que se tratava de um
dos meus vizinhos, embora nunca tivesse avistado este automóvel na área de
estacionamento do prédio. Quase que poderia jurar que era o gajo de barbas que
morava no 8º Dto, mas não o conseguiria assegurar por completo. Aliás, eu ainda
tinha dedicado pouca atenção à vizinhança. Inclusive eu tinha faltado
propositadamente a uma reunião de condóminos que se tinha realizado no início
do ano. Tinha ainda algum receio de ser reconhecido pelas pessoas após a
horrenda novela mediática que me tinha oposto à Filipa Arouca. Os meus horários
eram pouco convencionais, quase todos eles deveriam trabalhar fora e raramente
me cruzava com alguém na entrada ou no elevador do prédio. Havia a moradora do
6º Dto, com quem me cruzara diversas vezes e que eu parecia conhecer de algum
lado embora sem saber definir em concreto de onde. O sentimento deveria ser
recíproco porque parecia detectar uma mistura de malícia e cumplicidade no seu
olhar. No entanto, apenas nos cumprimentávamos de forma tímida, muito abreviada,
com um leve murmúrio e um simples acenar de cabeça. O meu vizinho do lado
aparentava ser um tipo simpático e muito sorridente sempre que nos cruzávamos
no patamar do nosso piso. A minha vizinha de baixo, a Luísa, tinha um bom gosto
musical. Muitas vezes, antes do jantar, ouvia o som da sua música que ecoava
pelas janelas abertas da sua sala, facto que só por si me causava uma certa
simpatia pela sua pessoa. No entanto, neste momento eu não estava muito
interessado em aprofundar os meus laços de vizinhança, não obstante, alguma
curiosidade que todos aqueles personagens me suscitavam. Por agora, preferia
viver na minha bolha, evitando olhares alheios e aproveitando o bom momento da
minha criatividade.
***
Domingo, 20 de Novembro, 21:45h
Olho para o telefone pousado em cima da
mesa de centro da sala junto à lareira que crepitava.
No ecrã surge uma mensagem escrita de um
número privado que diz: Estou a vigiar-te.
Sinto uma ligeira pontada no peito e ao
invés de ignorar, redijo: Onde estou eu?
Durante
o tempo que a resposta demora a chegar, vou à cozinha servir-me de um copo de
brandy. Já de volta à sala estendo a mão para o telefone e fico hirto.
Estás em casa.
Afasto o telefone do rosto e olho pela
janela.
E a seguir, escrevo: Eu não estou em
casa.
Um minuto depois a luz do telefone cintila
a prevenir que tenho uma resposta.
Posso ver-te. Estás na sala, vestido com
um roupão.
Volto a olhar pela janela e dou comigo a
recuar para a parede. Apago as luzes e aproximo-me lentamente da janela e, por
baixo das folhas oscilantes de uma árvore, a carrinha Mercedes-Benz
preta, encontra-se estacionada no cimo da rua que dava acesso ao prédio. O
condutor acende um cigarro num gesto ensaiado, mas a luminosidade provocada
pelo isqueiro não me permite descortinar os contornos do seu rosto.
Pedro Miguel Ferreira
Um texto com a alma de argumentista. Boa prosa. Um bom início de enredo.
ResponderEliminarParabéns, caro Pedro Miguel Ferreira.
Está lançado o “mote": talvez tenha de pôr as barbas de molho.
Muito bom! Parabéns.
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