Bessa, 8º dto.
- … E o que é o prédio
onde vim cair? Um cofre anacrónico que guarda uma dúzia de preciosas pessoas irrepetíveis
em iminente risco de vida gentrificada? Uma estante, sendo aceite que cada
pessoa é um livro e estes estão para aqui empilhados em completo desgoverno e ordenação?
Um depósito?! Onde vamos por esta malta toda - perguntaram “eles” -, sem eira
nem beira e futuro incerto?
- Onde está o sal?
- Quando venho de fora e
olho o molosso teutónico que me guarda. Ó da guarda... Paro. Contemplo. E como
a coisa não tem nada de belo além da imponência granítica e umas quantas
janelas iluminadas que lhe dão alguma graça e colorido, penso num velho corpo moribundo,
com órgãos caducos, veias endurecidas, pulsar irregular. Não é bem contemplar.
É mais, considerar a coisa distópica na cidade. Só se contempla o belo, o restante
constata-se.
- E para beber?... O que
há para beber?...
- Quando escurece tudo
está calmo e ninguém a circular, meto a chave na porta, o trinco eléctrico dá-me
as boas-vindas com um estampido alarmante, a mola amortecedora estala em dilacerantes
espasmos de pavor, e sigo às escuras de dedo em riste até ao botão do elevador,
que passa a piscar. Será de alegria? Este elevador é para submarinistas que
sabem que a superfície pode ser uma miragem quando se fecha a escotilha. Carrego
no oitavo. Fecha a porta e somos vários todos eu. Viajo deglutido no esófago e
se morrer vou na companhia habitual.
- Onde deixaste a fuba e
o óleo de palma? Procuro, procuro, e.
- Chato! E chego ao patamar.
Nunca me cruzo com ninguém. Nem aqui, onde os vizinhos da frente são tão
circulantes e omnipresentes. Nada… galinha gorda, recomendou a Fernanda…
- Fecha a porta que sai o
quente…
- Quiabos, folha de
mandioca, gindungo… não é fácil… a vida está pela hora da morte. Os tomates que
são dos nossos, e a cebola que é espanhola, são mais em conta, mas o resto…, e
a salsa, a salsa também é nossa, diz no pacote, assim como o alho. A cozinha! Ah!
Pois-é. Se o elevador é o esófago, a cozinha é a mandíbula e a porta da rua lá
em baixo a outra ponta do tubo digestivo.
- Onde estará aquela
panela alta com testo de vidro?...
- As linhas eléctricas, cabos
nervosos chamados neurónios; os canos fluentes, afluentes, e deferentes, do processo
biliar e outros vitais líquidos; as pessoas como órgãos necessários ao
funcionamento geral, mas mal; a estrutura secular como o todo muscular... é um
ser vivo e o que está para lá da porta da rua não interessa a ninguém.
– E a cadela?
- Passou a ladrar sempre
quando que me sente no elevador…
– E a panela
- Não sei o que se passa
hoje, não se ouve ninguém. Nem os tresloucados da frente dão sinal de vida.
Tresloucados… tresloucado sou eu que estou agonizado, eles são vida! E de mim,
saudades. Cá está!
- E que tal se saíssemos
logo à noite?
- Era. Pois era. O depósito
está vazio e só recebo para a semana. Está ali arrumadinha e muito escondidinha
à espera da noitezinha.
- Mexer um pouquinho…
vamos lá provar… bom, sal q.b.
- Habituamo-nos a tudo. Até
a sermos invisíveis. Ver quem passa sem mexer a cortina; ficar a saber os
movimentos ondulatórios dos vizinhos, os pendulares também; com quem andam e
com quem vão; quem vive sozinho ou acompanhado. Famílias não há. Para estes
prédios só vêm os fim-de-carreira, embora passem a vida a disfarçar. Podia-me
tornar num criminoso em série que ninguém dava por isso. Mas era uma sangreira…
é melhor não…
- Ficou-te de quando eras
polícia. Menos a sangreira, claro está. Agora, deixar refugar…
- Estava a brincar. Talvez
façam o mesmo comigo quando saio. Quem sabe? Talvez não ande assim tão
incógnito como penso e pode até trazer-me problemas. Há para aí vizinhos que
são capazes de espiar por passatempo e até, farão isso?!, anotar a matrícula, hora
de saída e de chegada. Os condóminos têm tendência a fazer coisas estranhas e
às escondidas… nunca fiando… nunca deixo contactos.
- Hora de meter a galinha!
Mexer um pouquinho envolvendo… lume médio… aguardar…
- Vou abrir uma garrafa daquelas.
Esta noite em particular não são noites em geral e se tenho de ficar aqui preso,
tenho direito a pomada melhorada.
- Onde está ela?… onde
está ela?… e a fuba, faz-se, ou é melhor não?
- Não. Fuba não, que vai
sobrar muita. Tenho ali um arrozinho branco que acompanha bem.
- A cadela! Olha!, Olha!...
Lá vai ela a descer a rua. Não tomam conta e depois é o diz que disse. E logo num
domingo à noite que não tem ninguém na rua…
- Já vou… já vou… não se
pode abrir uma reserva que chega logo gente à porta.
- Boa noite…
- Boa noite?...
- Nós somos os vizinhos
da frente, Benevides e Euclides, muito prazer. Nós aqui no prédio, quase todos,
a bem dizer, uma vez que já vivemos aqui à doze capítulos, estamos a entrar no décimo
terceiro, não sei se está a ver, “O 13”, pensamos em fazer uma festa num clube
restrito de uma vizinha nossa, ali na outra rua, festa alegre, demorada pela
noite fora, coisa de adultos, não sei se me faço compreender, muita luz,
animação, estamos vivos e activos, não é assim? E por isso, bem escolheram-me a
mim, a nós!, para falar consigo uma vez que, bem, somos os vizinhos da frente
e, não leve a mal, mas, parece que o senhor ainda não conviveu com ninguém,
vive sozinho, isto não é espiar o senhor entenda-me mas, passa nos seus solilóquios
e nem dá por nós, não lhe conhecemos visitas nem familiares, o senhor não leve
a mal mas não precisa de viver assim tão… tendo-nos por perto, não é assim? Por
isso, enfim, todos nós precisamos de companhia, bem, feitios são feitios
entendamo-nos, mas; era isto. Deixe-me então, eu e aminha mulher!, convidá-lo,
bem, os outros vizinhos também, que o convite é de todos, convidá-lo para a “Festa
do Capítulo 13”, foi assim que pensamos chamar-lhe, no próximo sábado; não é o
dia mas há vizinhos que trabalham, sabe como é, e. O senhor aceita o convite?
Desculpe, nem o cumprimentei. Ó Benevides, dá aqui um beijinho ao senhor vizinho?
Senhor vizinho?...
- Ah!... Bessa-José Bessa…
um prazer…
- Ah! Está bem-apanhado.
Como o James, não é? Ah-ah-ah…
- Pois. Pode ser.
***+***
- Quem era?...
- Os da frente. Vieram
convidar para uma festa. Alegre, luminosa, demorada, coisa de adultos. Parece
que foi o que ele disse.
- E vamos?
- Disse-lhe que sim. Mas
primeiro a moamba. A garrafa já respirou?
- Vai buscar os copos
enquanto mexo um pouquinho…
- Mesmo assim não sei se
vá. Sempre posso dar uma desculpa e…
- Vamos sim! Eu aqui não
só narratário, também tenho os meus quereres, a vida acontece lá fora!,
ouviste, lá fora! Estou farto de estar sozinho e de cozinhar sempre para o
mesmo. Aceitaste e foi a tua obrigação. Obrigação? Salvação! Para mais, «passa nos
seus solilóquios e nem dá por nós» ou pensas que não ouvi? Há quanto tempo não consegues
um bom diálogo, hein? Uma conversa. Há quanto tempo não conversas com alguém de
carne e osso, hein? Passas a conviver, deixas de andar para aí a fazer diabruras
para passar o tempo. Pareces um catraio. Não! Vais, e vais mesmo!
- Pronto! Pronto! Também não
precisas de falar assim… vamos então…
- Olha! E sabes que mais?
Sempre vou fazer a fuba. Vais convidar o casal para jantar cá em casa, e assim
a comida já não sobra para quinze dias. Vai, vai, quando chegares eu meto a
mandioca, vou abrir mais uma garrafa.
- Boa noite, outra vez.
Desculpe-me estar a incomodar, e talvez até já seja fora de horas mas, vocês
foram tão simpáticos e, bem, eu estou ali a acabar uma moamba à moda da fazenda,
e, vai ser muito para mim, e ainda tenho pirão para fazer e duas garrafas de uma
reserva especial… se quisessem dar-me o gosto de aceitar o convite para jantar,
e, a minha companhia…
- Eles Vêm?
- Vêm. E vão trazer a
Fernanda que como dona da receita vai dar os retoques finais.
- A Fernanda?! Como
assim, a Fernanda?! Disseste-lhes que a conhecias?!
- Não. Mas disse-lhes ela.
Vai buscar aqueles copos para Porto, os de cristal, ouviste?!, que o vizinho
vai trazer um velhíssimo de particular e a ocasião merece. Quem sabe tudo mude,
e para melhor…
- Estás a pensar no
futuro? Estás com ideias…
- Mas qual futuro! Homessa!
Que é isso de futuro? O futuro é o que está para vir e está sempre a diminuir. Venham
os copos que vou buscar as cadeiras, o importante é o momento e este, quero-o
demorado. Quatro cadeiras numa noite de domingo.
José Bessa
Bessa era o apelido de dois irmãos companheiros de grandes borgas em Coimbra e na Figueira.
ResponderEliminarGente boa.
Muito bom! Quanta imaginação!
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