Estrela
Vou no meu segundo
dia de viagem… meu Deus, será real o que estou a viver?... ou estarei a acordar
de um lindo e maravilhoso sonho?
Na minha mente
ainda bailam as palavras daqueles poemas que eu adoro, escritos por autores de
mão cheia e que imaginei terem-me sido enviados pelo Adriano. Pois, na nossa
relação à distância sempre mostrou um certo sentido poético. Uma pessoa atenciosa,
com palavras doces e de conforto em qualquer situação mais critica… mas será
que o e? Terá ele a sensibilidade e a delicadeza que eu vi na criança que
encontrei lá atrás no tempo? Desde que o conheci jamais amei com tanta intensidade
outra pessoa. Uma forma de amar diferente das convencionais, pois hoje tenho a
certeza de que há muitas formas de amar. Apesar da distância e pouca convivência,
em tudo o que na vida fiz, bom ou menos bom, pensei nele.
Será que se
estivesse com ele a vida seria melhor?
Não sei, mas sei
que hoje vou a procura de um caminho.
Ontem, depois de
muito andar a passos largos, decididos e fortes, percebi que quero mostrar –
mais para mim mesma do que para os outros – a mulher que vai procurar a sua realização.
Realização que lhe traga esperança, tranquilidade e paz no coração.
Neste turbilhão de
pensamentos e com o cansaço, senti-me desfalecer à beira do caminho. Foi então
que ouvi uma voz, que que me chamou "venha, venha comigo”. Amparou-me e
levou-me consigo; foi-me dizendo que era voluntaria na Santa Casa da Misericórdia.
Segundo as suas palavras, era hábito receberem peregrinos na Instituição.
Pela manhã, tinha
indicação para tomar o pequeno-almoço com os utentes. Aceitei o convite com agrado.
Era mais uma experiência dentro da experiência que estou a viver.
A entrada
da sala, um grande cartaz que dizia:
Obras de Misericórdia
Corporais
– Dar de comer a quem tem
fome
–
Dar de beber a quem tem sede
–
Vestir os nus
–
Dar pousada aos peregrinos
–
Tratar os enfermos
–
Visitar os presos
–
Enterrar os mortos
Espirituais
–
Dar bons conselhos
–
Ensinar os ignorantes
–
Corrigir os que erram
–
Perdoar as injúrias
–
Consolar os tristes
–
Sofrer com paciência as fraquezas do próximo
–
Rogar a Deus pelos vivos e defuntos
Depois de ler,
pensei para mim: muito actual! Apesar de as Misericórdias terem sido instituídas
em 1498 pela rainha D. Leonor estes valores continuam a fazer sentido.
Entrei na sala,
estava repleta de seniores. Alguns olharam-me amavelmente, outros nem tanto. As
suas rugas mostravam horas e dias de muito trabalho e algumas amarguras; cada
um guardava no semblante as lembranças de uma vida e parecia que viviam sempre ansiosos
por notícias do mundo que tinham deixado lá fora.
Enquanto as
cuidadoras distribuíam a alimentação, acerquei-me de alguns que me pareceram
mais frágeis. Um deles, de lagrimas a saltarem pelos olhos, dizia "Sabe, o
meu filho tem muito trabalho, não tem tempo para nada" e outro "a
minha filha gostava muito de me ter com ela, mas a casa é muito pequenina"
e ainda outro "se os meus filhos pudessem tinham-me lá com eles, mas têm
muitos filhos…”
E depois o “primo”
de nome António, que por não ter ninguém de família adotou todos os funcionários
e amigos como "primos”, e que me contou a sua vida em meia dúzia de frases
desconexas. “Eu sou filho de latoeiros, que tiveram vida de saltimbancos. Em
pequeno e até já mais velho andei com os meus pais lá pelo Alentejo. Aos seis
anos andava a guardar porcos, dormia com eles nas pocilgas. O meu patrão sempre
me tratou muito mal, mas eu não tinha nada nem ninguém e mantive-me lá até aos
meus 30 e tal anos. Um dia de muita chuva em que me senti todo encharcado de
lama, igual a muitos outros da minha vida, desesperado, tinha um capote que vesti,
e pus-me a andar. Andei durante muitos dias a pé sem saber bem para onde seguia.
Ia pedindo para comer; às vezes davam-me, às vezes não. Até que encontrei uma
vila pequena e sentei-me nas escadas do posto médico. Era de manhã, uma senhora
chegou, estranhou a minha figura triste e encharcada e fez-me perguntas. Depois
trouxe-me para esta casa, que hoje é a minha. – Ó prima, dá-me um beijinho? É que
eu em toda a minha vida poucos recebi.”
Dei um beijo
naquele rosto enrugado, não tanto pela idade, mas pelas agruras da vida. E, num
rompante, o “primo” António levantou-se e desapareceu no corredor de acesso aos
quartos. Voltou alguns minutos depois, e trazia na mão um velho envelope, que
me entregou.
– Quer que eu leia?
– Não, é para a
prima.
– Para mim? Mas
porquê… onde o encontraste?
– Estava sempre no
bolso do meu capote… é uma prenda… porque me deu um beijinho.
Clotilde Morgado Fonseca
Boa semana
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