Fotografia © Estela Fonseca |
João afastou Sofia suavemente, que lhe
mostrou um olhar de desagrado.
-
Deixa! Não vás abrir. Não agora!
A porta continuava maldiçoada pelos punhos de
alguém bruto e de teimosia grosseira. João olhou-a com desaprovação, enquanto
se dirigia ao hall de entrada. Ouviu passos que se afastavam apressados, abriu
a porta, mas só já constatou ao longe um vulto que com toda a certeza seria de
um homem. Ainda conseguiu ver o fato de treino de cor esverdeada e um boné
pendente pelo andar desengonçado da silhueta que se afastava. Fechou a porta de
semblante carregado com a certeza que conhecia aquela figura.
Sofia esperava-o na sala, fingindo estar
naturalmente relaxada e pronta para recomeçar o seu número de cinema de mulher
fatal. Todas as mulheres são várias almas, várias personagens com máscaras diferentes.
Almas que se vestem e despem de acordo com o momento, o lugar ou o homem que
têm à sua frente. A simulação feminina é exímia quando se deseja muito chegar à
linha limite de qualquer objetivo. Talvez por isso muitos homens se assustem
com a desigualdade do quociente da inteligência emocional tão sublime que
distingue os sexos senão, que outra razão haveria para a mulher ser considerada
um ser complexo e complicado?!
João reparou no vestido florido e leve. Sofia
estava bonita. Aliás, a sua mulher é bonita. A habituação do quotidiano e
depois o maldito baú com as cartas timbradas a mofo e amareladas pelo tempo que
trouxe o passado de volta, tinham-no afastado da mulher. Não da esposa. Mas da
mulher! Puxou por isso mesmo Sofia para si de rompante, beijando-a
agressivamente. Sofia respondeu sem medo, mordendo-lhe o lábio até sentir o
sabor a sangue. Num repente voltou uma certa paixão que
há muito tempo João não sentia e que Sofia apenas guardava na memória dos primeiros
anos do seu casamento. E mesmo nesses primeiros anos foi difícil libertar-se da
educação tradicional que a avó lhe tinha incutido, sem desvios às normas dos
bons costumes, que uma mulher de bem e esposa deve ter. Sempre a ouviu dizer
que uma esposa deve exigir respeito na cama, porque «o resto são as meninas de
rua que o fazem». Sempre houve entre as mulheres daquela família uma luta
interior e um complexo recalcado, coletivo, face ao sexo e à entrega do corpo.
Sofia nunca teve qualquer proximidade com o avô, mas a austeridade da avó e
posteriormente a insanidade mal disfarçada da mãe, bem como a frieza do pai,
sempre estiveram presentes, sempre que Sofia tentava contornar os padrões
estabelecidos da família. Uma educação pouco dada a afetos e uma falsa paz
familiar não são bons presságios para uma vida de adulta feliz. Depois veio o
suicídio da mãe e agora o secretismo quase a ser desvendado daquela mala cheia
de explicações que chegou de rompante à sua vida e que a abalaram. Talvez fosse
melhor continuarem a estar guardadas no fosso do que não se deve recordar, as
fotografias mentais do passado de Sofia. Limpou a mente de todo aquele tricô
familiar de pontas soltas e entregou-se a João que lhe sorvia o corpo quente.
Não ouvia palavras de amor mas sussurros de preces indecentes. Guiou-o para as
suas entranhas abrindo as pernas desafiadoras, mas João virou-a bruto e
animalesco, puxando-lhe o cabelo solto e comprido que lhe cobria o rosto e
saciou-se, apercebendo-se da dor com prazer que Sofia demonstrava nos gemidos
fugidos da boca rosada.
Deixaram-se cair exaustos nas almofadas
desarrumadas do sofá, ambos com a mente num turbilhão de imagens difusas. O passado
e as memórias vividas ou insinuadas por outros; os segredos e os preconceitos;
as histórias mal contadas de geração em geração e um presente cada vez mais
sombrio, esbarrado naquelas cartas.
Sofia levantou-se ajeitando o vestido e João
numa sonolência cansada acomodou-se no sofá acabando por adormecer. Acordou
apenas bem cedo pela manhã com o barulho da porta a bater. Sofia saiu com os
primeiros raios de sol. Durante a noite mal dormida tinha tomado uma decisão.
Dirigiu-se até à praia de areia fina. O mar revolto contrastava com a sua
tranquilidade estranha. Incríveis as cores esfumadas do seu mar a contrastar
com o céu rosado a tocar a linha do horizonte. Levantou o vestido branco mas
ainda assim molhou as rendas suaves que debruavam a bainha. Pousou a mala na
areia batida ferozmente pelas ondas e deixou-a partir. Com ela partiam as dores
que ela sabia terem existido mas que não eram suas. Partiram as cartas
amarelecidas com os segredos do tempo que já não valiam a pena a ser desvendados.
O passado ficou irremediavelmente no mar e o presente seria unicamente o seu
amor por João.
Quando regressou a casa já não encontrou o
seu marido. Um bilhete apenas na porta do frigorifico: - Foi fantástico ontem.
Amo-te!
A paz tinha regressado outra vez e Sofia
regressou aos seus afazeres domésticos, só que desta vez de sorriso rasgado nos
lábios. A manhã passou rápido. Apercebeu-se disso quando ouviu ao longe na
Igreja da pequena vila morena, as badaladas melancólicas do relógio centenário,
que chamavam as pessoas para a hora do almoço. Achou estranho João não ter
telefonado a confirmar o almoço como costumava fazer. Ligou-lhe mas o telemóvel
estava desligado. Insistiu mais um punhado de vezes, continuando um silêncio
nada usual.
Seriam umas três horas da tarde quando Sofia
abriu a porta a dois policiais de rosto soturno e voz demasiado delicada. A notícia
gelou o corpo e a alma de Sofia. Emudeceu sem conseguir verter sequer uma
lágrima e obedeceu mecanicamente aos dois agentes. Era preciso reconhecer o
corpo do seu homem que apareceu morto nas areias finas da praia!
Estela
Fonseca
Pronto... passado é passado e quando impede a tranquilidade do presente, o melhor é deita-lo fora. Mas... oh pá... será que o corpo encontrado na praia é mesmo do João?
ResponderEliminarParabéns, Estela!
A Sofia não para de me/nos surpreender.
ResponderEliminarNuma penada, a entrega e o abandono; este da preciosa mala, aquela, do repudiado João.
Teremos ainda marido, numa altura em que a mala se desvanece no horizonte? Onde estará por fim, a verdade?
Parabéns, Estela. Conseguiste, quase no fim, um recomeço.
Muito bom este desembolvimento do conto
ResponderEliminarMas Estela, porquê matar este amor agora? :)
Gostei e muito Parabéns